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Capítulo 1: Do conceito de cultura ao conceito de cultura no contexto do “Império Colonial

1.2. O Estado Novo e o império colonial português

Eduardo Lourenço (2012) afirma que “a história [de Portugal] não se escreve do passado para o presente, ela vem do futuro e vem do presente”15 e que “o passado é a aurora

do futuro”16, porque a escrita da História implica o peso de uma herança. Consciente desta

herança, é fundamental olhar em retrospetiva o século XX e o colonialismo português (do Terceiro Império), para reinterpretar, para além de outros aspetos, a produção e a receção cultural da época, nomeadamente o(s) produto(s) que constroi(oem) o imaginário nacional português.

Este capítulo pretende, embora de forma sucinta, apresentar o período histórico em que os escritores coloniais, em particular Castro Soromenho, Reis Ventura e Guilhermina

‘grande’ história, sempre ligada à escolha política dos monumentos que se vão erguendo e valorizando no quadro urbano” (Bethencourt 2000: 442).

15 Lourenço, Eduardo (2012): “Nação e Império”. Transcrição da Aula Magistral do curso Portugal e os Pós-

Colonialismos: conceitos, contextos e vozes (1ª edição: 2012/2013). Cátedra Eduardo Lourenço Universidade de Bolonha/ Instituto Camões/ Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.

16 Eduardo Lourenço no documentário Estética, propaganda e utopia, de Paulo Seabra.

de Azeredo, se moveram, ou seja, os anos 30-60 do século XX em pleno período da vigência do Estado Novo. Assim, serve o capítulo para evidenciar a posição ideológica e cultural da ação de António de Oliveira Salazar no que respeita a política cultural dos territórios ultramarinos. Atendendo, em particular, à configuração do império durante a vigência salazarista, aquela afigura-se bipartida jurídica e ideologicamente em duas fases. A primeira, quando Salazar sobe ao poder, designada como fase imperial, onde se privilegia a relação vertical entre a metrópole e as colónias e onde se hierarquiza as raças, sendo a branca “naturalmente” superior e com o dever de civilizar as restantes. A segunda, que emerge do rescaldo da Segunda Guerra Mundial e da revisão constitucional de 1951, pretende aproximar-se dos paradigmas internacionais, mudando a concepção imperial pela ideia de um Portugal enquanto estado pluricontinental com províncias ultramarinas, apoiada pela tese do lusotropicalismo que defende a multirracialidade da sociedade portuguesa.

Antes de passar à questão concreta deste trabalho, pretende-se passar em revista os propósitos basilares que moviam o sistema político de António de Oliveira Salazar. A designação de “Estado Novo”, decalcada da expressão italiana de “Stato Nuovo”, é sobretudo um “fascismo” encapotado que, apesar de tudo, nutre uma relativa simpatia nos meios políticos externos, por ter, soit disant, um caráter “original”. Esta originalidade era afirmada em depoimentos de reconhecidos políticos, intelectuais ou escritores internacionais, editados oficialmente e usados como forma de propaganda política. O poder político salazarista era de tal forma apresentado e com tal eficácia que um dos mais reputados jornais franceses, Le Monde, considerava-o uma ditadura “sábia” ou “paternal”, distanciando-o da designação de “fascismo” atribuída a outras ditaduras (Torgal 2008: 17- 21). O historiador Luís Reis Torgal verifica que o meio académico português ou estrangeiro, quando se intenta uma caracterização de Salazar ou do sistema político que governa, reconhece-lhes a tal originalidade ou singularidade que não se confunde com o sentido geral de “fascismo”. Citando Yves Léonard, Torgal aponta um exemplo de resposta à pergunta “O que foi afinal o Estado Novo?”: “Singulier comme tout régime en tant que phénomène historique, le salazarisme échappe ainsi à une classification simplificatrice qui l’incorporait abusivement à la catégorie des fascismes” (Léonard apud Torgal 2008: 21).

Quanto à pergunta “Quem era afinal Salazar?”, Torgal aponta a inexistência, na atualidade, de uma biografia “descomprometida” ou de um grande estudo de historiador sobre Salazar, apesar de muito se ter escrito sobre ele no tempo dele, sendo a maior obra, ainda hoje fundamental e incontornável, a de Franco Nogueira, os seis volumes de Salazar.

Fernando Rosas) e de uma vasta divulgação biográfica de Salazar por não-historiadores, não se produziu uma memória ‘científica’ sobre Salazar e o Salazarismo, e não se gerou uma memória igual sobre o Estado Novo, o que quer dizer que a Revolução do 25 de abril de 1974 não matou a representação de Salazar e do Salazarismo que foi “alimentada por uma excelente máquina de propaganda, em Portugal e no estrangeiro, e que vem [na atualidade] ao de cimo de forma lenta e sub-reptícia e muitas vezes não intencional” (2008: 23), o que leva, hoje, a um retrato de um Salazar “humanizado”, “paternal”, “severo mas honesto e contrário ao esbanjamento”. Capta-se, assim, o lado “bom”, esquecendo-se do “mau”. Torgal critica esta tendência para amenizar as representações de Salazar e do seu sistema político, pois fica “na penumbra a análise, necessariamente mais difícil de captar, de uma história objetiva” (Torgal 2008: 23).

António de Oliveira Salazar protagoniza o Estado Novo, definido durante os anos 1930 e 1931 e instituído em 1933. O seu percurso académico e profissional, enquanto “técnico” que vem “consertar a máquina” (Ramos 2009: 628), granjeia-lhe prestígio e converte-o em “salvador” da nação. Paulatinamente, depois do controlo do Ministério das Finanças, Salazar toma as rédeas dos problemas políticos e militares, com a retaguarda, claro está, do capital e da banca, da Igreja, do Exército, dos intelectuais das Direitas e da maior parte dos monárquicos. Com Salazar nascia, assim, o Estado Novo definido como “nacionalista”, “autoritário” e “corporativo”, isto é, “um regime assente numa chefia pessoal do Estado, no monopólio da atividade política legal por uma organização cívica de apoio ao Governo, e na articulação do Estado com associações socioprofissionais e locais, as quais se esperava que viessem a estruturar toda a sociedade” (Ramos 2009: 627).

Em linhas gerais, segundo Fernando Rosas (2008), o Estado Novo procura um homem novo, isto é, “‘resgatar as almas’ dos portugueses, integrá-los, sob a orientação unívoca de organismos estatais de orientação ideológica, ‘no pensamento moral que dirige a Nação’, ‘educar politicamente o povo português’ num contexto de rigorosa unicidade ideológica e política” através de “aparelhos de propaganda e inculcação do regime e de acordo com o ideário da Revolução Nacional” (Rosas 2008: 31). Trata-se, sobretudo, de um “projecto totalizante de reeducação dos ‘espíritos’” assente em sete mitos ideológicos ou “verdades indiscutíveis” (Rosas 2008: 32): mito palingenético (mito do recomeço e da regeneração), mito do novo nacionalismo (que o slogan “Tudo pela Nação, nada contra a Nação” resume), mito imperial (missão civilizadora do homem português), mito da ruralidade (espécie de vocação rural da nação), mito da pobreza honrada (uma vocação de pobreza), mito da ordem corporativa (ordem natural das coisas), mito da essência católica

da identidade nacional (religião católica como elemento constitutivo do ser português) (Rosas 2008: 32-34).

No âmbito desta investigação, interessa explanar sobre o mito imperial, que nasce da tradição republicana e monárquica anterior, e mostra a vocação de colonizar e evangelizar dos portugueses, que o Acto Colonial (1930) vem legitimar. Convém referir que a ideia colonial ou a ideia de um Portugal pluricontinental em António de Oliveira Salazar formaram-se tardiamente e a partir de um paradoxo: sem nunca ter visitado África, Ásia ou América (Léonard 2000: 10).