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Capítulo 1: Perspetiva de investigação – estudos culturais e estudos pós-coloniais

1.3. Portugal: que pós-colonialismo(s)/pós-colonialidade?

Em Portugal, e atualmente, há já um conjunto de autores e trabalhos que dá corpo à crítica pós-colonial numa perspetiva literária ou interdisciplinar; são eles, por exemplo, Boaventura Sousa Santos (2001, 2003), Manuela Ribeiro Sanches (2005, 2006), Margarida Calafate Ribeiro (2004), assim como José Carlos Venâncio (1987, 1992, 2000, 2005) e Paulo de Medeiros (2006). Os trabalhos de referência são “Entre Próspero e Caliban: colonialismo, pós-colonialidade e inter-identidade” (Santos 2001, Santos 2003), Uma história de regressos. Império, guerra colonial e pós-colonialismo (Ribeiro 2004), Descolonizar a Europa. Antropologia, arte, literatura e história na pós-colonialidade (Sanches 2005), ‘Portugal não é um país pequeno’, Contar o império na pós- colonialidade (Sanches 2006), Excepção Atlântica. Pensar a literatura da Guerra Colonial (Vecchi 2010), Malhas que os impérios tecem, Textos anticoloniais, contextos pós-coloniais (Sanches 2011). Parte destes trabalhos, na maioria coletivos, vem colmatar uma lacuna na abordagem do pós-colonial: a perspetiva portuguesa (Santos 2001, Ribeiro 2004, Sanches 2006, Vecchi 2010). Paulo de Medeiros, no texto “Apontamentos para conceptualizar uma Europa pós-colonial” (2006), defende uma “atenção particular às especificidades históricas dos vários colonialismos” (do britânico, do francês, do espanhol, do português), pois acredita que, no caso português e referindo-se ao estudo sobre literaturas de expressão portuguesa, a “adesão aos preceitos da crítica pós-colonial anglófona implica uma redução do seu potencial inovador” (Medeiros 2006: 348). De facto, Medeiros afirma que grande parte dos estudos sobre a situação pós-colonial europeia é feita no âmbito da academia anglófona (Reino Unido e ex-colónias), dando o exemplo de trabalhos de fundo, como Empire: A Very Short Introduction (2002), de Stephen Howe ou Postcolonialism: a Very Short Introduction (2003), de Robert J. C. Young, onde as referências ao império português são rudimentares, referindo-se apenas a Portugal como “uma das nações envolvidas no processo colonial, sem avançar um único pormenor” (Medeiros 2006: 344). Ora, para se abordar as dinâmicas coloniais e pós- coloniais da Europa, ter-se-á de conhecer e compreender a singularidade histórica de cada país e ligá-la ao todo europeu.

Boaventura Sousa Santos, no estudo sobre os processos identitários no espaço- tempo da língua portuguesa, “Entre Próspero e Caliban: colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade” (Santos 2001, 2003), dá conta daquela singularidade e analisa “as

impregnaram os regimes identitários nas sociedades que dele participaram, tanto durante o período colonial como depois da independência das colónias” (2001: 26). O autor apresenta a “especificidade” do colonialismo português, que não é mais do que um desvio à norma oferecida pelo colonialismo britânico, tornando o português duplamente subalterno:

A subalternidade do colonialismo português é dupla, porque ocorre tanto no domínio das práticas coloniais, como nos discursos coloniais. No domínio das práticas, a subalternidade está no facto de Portugal, enquanto país semi-periférico, ter sido ele próprio, durante um longo período, um país dependente da Inglaterra, em certos momentos, quase uma ‘colónia informal’ da Inglaterra. (…) No domínio dos discursos coloniais, a subalternidade do colonialismo português reside no facto de, a partir do século XVII, a história do colonialismo ter sido escrita em inglês e não em português (Santos 2001: 26-27).

A subalternidade ou a “especificidade” do colonialismo manifesta-se essencialmente na economia política, numa situação semiperiférica, mas também “nos planos social, político, jurídico, cultural, no plano das práticas quotidianas de convivência e de sobrevivência, de opressão, de resistência, de proximidade e de distância, no plano dos discursos e narrativas, no plano do senso comum e de outros saberes, das emoções e dos afectos, dos sentimentos e das ideologias” (Santos 2001: 27-28). Para além de se manifestar em vários planos, também se manifestou durante muito tempo, o que “redundou numa estranha suspensão no tempo, numa anacronia que, aliás, havia de revelar-se dupla: por ter existido antes e por ter continuado a existir depois do colonialismo hegemónico”; o que vai interferir com “sociabilidades e identidades, tanto do colonizador, como dos colonizados”, porque “a colonialidade das relações não terminou com o fim do colonialismo das relações” (Santos 2001: 29).

Para Sousa Santos, o pós-colonialismo apresenta dois sentidos. O primeiro é a de um marco histórico que sucede à independência dos países colonizados e onde se analisam, essencialmente, as questões económicas, sociológicas e políticas dos novos Estados; o segundo é “um conjunto de práticas (predominantemente performativas) e de discursos que desconstroem a narrativa colonial, escrita pelo colonizador, e procuram substituí-la por narrativas do ponto de vista do colonizado” (Santos 2001: 30). Nesta segunda perspetiva, o pós-colonialismo reveste-se de um “recorte culturalista”, inserindo- se nos estudos culturais, linguísticos e literários, onde se analisa os sistemas de representação e os processos identitários. Aqui há “uma crítica, implícita ou explícita, aos silêncios das análises pós-coloniais” (Santos 2001: 30) do primeiro sentido.

Falar em pós-colonialismo é falar, em liberdade, de liberdade, anulando binómios e dicotomias de hierarquia vertical do tempo colonial. A horizontalidade do debate pós- colonial oferece, na contemporaneidade, uma riqueza cultural que aponta cada vez mais para uma maior aproximação sociocultural dos países de língua portuguesa; uma releitura do passado eficaz e descomprometida assim o permitirá. O passado de um “império”, revestido de “exceção” e tapado por uma cortina “lusotropical”, é hoje tema ainda em discussão, pela ligação que tem ao presente e certamente ao futuro. Aliás, tal como afirma Miguel Vale de Almeida, “a revisitação das narrativas coloniais portuguesas – do estado, dos saberes, das artes, das pessoas – é um empreendimento fundamental para compreender como se configura a comunidade de sujeitos e cidadãos debaixo da República Portuguesa hoje” (Almeida 2006: 367).

Falar em pós-colonialismo é falar de memória, mas também do esquecimento. Ao pensamento da pós-colonialidade importa sobretudo equilibrar a consciência do passado, corrigir silêncios e tornar visíveis elementos pertencentes aos campos colonial e anticolonial que permitam uma discussão crítica em equidade. Estimular o debate em torno dos “passados” do império colonial é, no contexto português, “propiciar os meios para uma reflexão mais fundamentada sobre o que somos e queremos ser” (Sanches 2011: 13) numa sociedade da denominada “era da globalização”. De acordo com Manuela Ribeiro Sanches, a situação pós-colonial alimenta-se precisamente de “um novo modo de se entender o passado e o presente, olhando-os de um modo alternativo, numa revisitação, porventura, incómoda – e, por isso mesmo, tanto mais necessária – de um imaginário” (Sanches 2006: 8) fundado em circunstâncias históricas concretas, mas que os regimes discursivos também ajudaram a construir, tal como a literatura, a história ou a antropologia, responsáveis pela criação de “comunidades imaginadas” e, em parte, pela construção da identidade cultural do povo português.

Falar em pós-colonialismo é reinterpretar lusotropicalismos que porventura ainda pairam naquelas comunidades imaginadas. Falar em pós-colonialismo é desligar a memória cultural da nostalgia, causadora de vícios nefastos à interpretação cultural (Medeiros 2012: s/p). Segundo João Leal, “cada nação assenta num consenso centrado não só sobre o que recordar mas também sobre o que esquecer” (Leal 2006: 79). Se observarmos o pós-colonialismo português, uma das ideias estruturantes que os portugueses têm de si mesmos, segundo o antropólogo, pode ser resumida à expressão “somos pequenos, mas já fomos grandes”, ou seja, “a nostalgia do Império é uma das

nacional”, assente numa “espécie de hipermnésia” no que se refere à época dos Descobrimentos (Leal 2006: 78).

1.3.1. As vozes do silêncio e do esquecimento

O pós-colonialismo é construído pelas vozes dos ex-colonizadores e dos ex- colonizados, dependendo sempre de várias perspetivas e lugares. Houve (ou ainda há) uma tendência, por parte dos estudos pós-coloniais, de demonizar o passado imperial, num “processo de culpabilização dos poderes coloniais e uma admiração excessiva por tudo o que parece opor-se-lhe” (Medeiros 2006: 340), o que leva a uma valorização dos produtos culturais oriundos das ex-colónias em detrimento de produtos culturais “metropolitanos”, apesar do passado comum, como é exemplo a história do “retorno”. Paulo de Medeiros alerta que, numa interpretação cultural na perspetiva pós-colonial, não se pode ignorar “a complexidade das relações coloniais, a multiplicidade de experiências coloniais e a sua diversidade temporal e geográfica” (Medeiros 2006: 340).

Para além da perspetiva dos territórios ex-colonizados, surgem, depois de um longo silêncio ou (tentativa de) esquecimento, outras perspetivas enredadas na teia da situação colonial. Assim, traumas e fantasmas do império colonial português dos “refugiados da história”(Marcus apud Ribeiro 2006: 62) são alvos de revisitação, do ponto de vista do “colonizador” ou “retornado”, de que Caderno de memórias coloniais (2009), de Isabela Figueiredo, e O retorno (2012), de Dulce Maria Cardoso, são exemplo; sem esquecer também toda a literatura da Guerra Colonial. Na voz de Rui, jovem nascido e criado em Angola, a autora de O retorno apresenta a vivência traumática do fim do “império”, no pós-25 de abril, de milhares de portugueses emigrantes e filhos de emigrantes: “Foi esquisito pisar na metrópole, era como se estivéssemos a entrar no mapa que estava pendurado na sala de aula (…) ou então nas fotografias das revistas, nas histórias que a mãe estava sempre a contar, nos hinos que cantávamos aos sábados de manhã no pátio da escola. (…) Agora somos retornados” (Cardoso 2011: 76). A verdade, segundo Fernando Assis Pacheco, é que, como se lê em “Desversos” (2003), “Trinta anos depois continuo revoltadíssimo/ V.ª Ex.ª foi de uma grande falta de chá/ nem eu precisava de Angola – Nunca!/ nem Angola de mim – o que hoje parece claro” (2003: 34). Por outro lado, Isabela Figueiredo, em Caderno de Memórias Coloniais, vem refutar, contundentemente, a teoria lusotropicalista nas relações de poder colonial: “O negro

estava abaixo de tudo. Não tinha direitos. Teria os da caridade, e se merecesse. Se fosse humilde. Esta era a ordem natural e inquestionável das relações: preto servia o branco, e o branco mandava no preto” (Figueiredo 2009: 24). De igual forma, a autora denuncia o colonialismo português, caraterizado de “inocente” ou de “exceção”, evidenciando episódios de violência e exploração por parte do branco que era “controlar o trabalho da pretalhada, a pô-los na ordem com uns sopapos e uns encontrões bem assentes pela mão larga, mais uns pontapés, enfim, alguma porrada pedagógica” (Figueiredo 2009: 24).

Se o silêncio do regresso foi necessário, porque “a culpa, a culpa, a culpa que deixamos crescer e enrolar-se por dentro de nós como uma trepadeira incolor, ata-nos ao silêncio, à solidão, ao insolúvel desterro” (Figueiredo 2009: 134), urge agora quebrar a “estátua de culpa” e exorcizar o demónio do império colonial português. O caminho está traçado. A pós-colonialidade reside numa interrogação permanente do colonial, enquanto facto “passado-presente” da contemporaneidade pós-independências. O pós-colonial pode ser entendido como tempo histórico cronológico, pós-independência dos países colonizados, ou pode ser considerado uma postura crítica do colonialismo ou a rutura com a histórica única, reconhecendo que a colonização, tal com defende Aimé Césaire, não é evangelização, nem empreitada filantrópica, nem vontade de fazer retroceder as fronteiras da ignorância, da enfermidade, da tirania, nem a expansão de Deus, nem a extensão do direito (Césaire 2010:18). Os novos tempos exigem uma reflexão em torno de conceitos, contextos e vozes que fazem parte do pós-colonialismo português, caraterizado por um património cultural “de rastos e de restos”8.