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Capítulo 2: Cultura e império: a construção da imagem do Império

2.3. A negritude como contestação à hegemonia cultural

Paulatinamente, como forma de combater a subalternidade, começam a surgir movimentos de contestação às ideias e ideais hegemónicos do sistema colonial, genericamente designado como movimento da negritude. Cabe, de momento, traçar a formação do movimento da negritude para que se entenda, num segundo momento, a formação da negritude no contexto da África lusófona, que é, grosso modo, a resposta imediata e antitética ao lusotropicalismo.

Em França, o movimento da negritude decorre indubitavelmente de um processo de assimilação em contexto de colonização. Este procedimento supunha assimilar as elites coloniais africanas, isto é, os colonizados que num primeiro momento se esforçam por se identificar com o colonizador, com o intuito de ascenderem nas sociedades colonial e metropolitana. A concretização do processo de assimilação passa assim por uma alienação total da cultura de origem. No entanto, este processo causa um turbilhão identitário, na medida em que os “assimilados” se apercebem da “inautenticidade cultural e humana” (Venâncio 1992: 7) em que tinham mergulhado. De facto, como o constata Venâncio, os “assimilados” são, por um lado, “olhados com desconfiança pelos africanos das sociedades tradicionais”; por outro, não são “aceites na sua plenitude de homens livres e pensantes pelas sociedades colonial e metropolitana” (Venâncio 1992: 7). Dá-se assim o “início de um processo de consciencialização que passa pela reivindicação da autenticidade cultural do seu status com os meios de expressão que o colonizador lhes legara: o idioma e a faculdade de se expressarem literariamente nele” (Venâncio 1992: 7).

A negritude, enquanto movimento reconhecido, nasce assim de um fervilhar emocional e intelectual de um grupo de estudantes e intelectuais africanos que vivem à

época em Paris antes da II Guerra Mundial. Este movimento surge no seio da política colonial francesa quando a assimilação era de facto uma política de aculturação imposta e rigorosamente seletiva, o que proporcionou na comunidade negra um conflito de lealdades nos restantes colonizados. Contudo, na sociedade branca, o negro assimilado era, apesar de tudo, sempre objeto de desprezo. Na verdade, a colonização francesa exigia que a elite negra renunciasse à cultura de origem, dando lugar à aceitação, em princípio, das normas impostas pela cultura ocidental. Pratica-se, desta forma, uma intolerância cultural por parte do colonizador. Assim, o negro torna-se assimilado inteletualmente, mas nunca socialmente. A assimilação cultural não obtém o sucesso pretendido no seio da comunidade negra, pois, como afirma Senghor, depressa se tomou consciência que se poderia assimilar a cultura europeia, mas nunca se livrar da cor de pele negra:

Très tôt, nous avons pris conscience au fond de nous que l’assimilation était un échec; nous pouvions assimiler les mathématiques ou la langue française, mais nous ne pouvions nous débarrasser de nos peaux noirs ou nous défaire de nos âmes noires. Et, par conséquent, nous nous sommes lancés dans une quête fervente du Saint Graal : notre âme collective (Senghor apud Irele 2008 :43-44).

No ano de 1987, Aimé Césaire proferia o discurso sobre a negritude, “Le discours sur la Negritude”, na Conferência Hemisférica, organizada pela Universidade Internacional da Florida em Miami. Segundo o autor, o termo nasce de uma realidade étnica. Contudo, essa realidade não é tão-só de ordem biológica, pois não se trata unicamente da cor da pele de um grupo, mas sim da soma de vivências de uma comunidade que sofre opressão, exclusão e discriminação. Para Césaire, negritude não é uma filosofia nem uma metafísica nem uma pretensiosa concepção do universo. É uma forma de viver a história na história: “l’histoire d’une communauté dont l’expérience apparaît, à vrai dire, singulière avec ses déportations de populations, ses transferts d’hommes d’un continent à l’autre, les souvenirs de croyances lointaines, ses débris de cultures assassinées” (Césaire 2011 : 82). A negritude é na sua essência uma tomada de consciência da diferença, enquanto memória, fidelidade e solidariedade. Por outro lado, a negritude resulta de uma atitude ativa e ofensiva do espírito, ou seja, o conceito é a recusa da opressão e o combate à desigualdade. Para Césaire,

La Négritude a été une forme de révolte d’abord contre le système mondial de la culture tel qu’il s’était constitué pendant les derniers siècles et qui se caractérise par un certain nombre de préjugés, de pré-supposés qui aboutissent à une très stricte révolte contre ce que j’appellerai de réductionnisme européen (2011 : 84).

A negritude não foi um impasse histórico, pois tinha um caminho pretendido, um processo de consciencialização: “Elle nous menait à nous-mêmes. Et de fait, c’était, après une longue frustration, c’était la saisie par nous-mêmes de notre passé et, à travers la poésie, à travers l’imaginaire, à travers le roman, à travers les œuvres d’art, la fulguration intermittente de notre possible devenir” (Césaire 2011: 85). Césaire admite o conceito entre os campos da literatura e da especulação intelectual, mas sempre diferente da discussão atual sobre o racismo, na procura da identidade e na afirmação do direito à diferença.

Neste âmbito, o conceito de negritude é inicialmente uma veemente tomada de posição de um grupo de intelectuais negros, nomeadamente Léopold Sédar Senghor e Aimé Césaire, perante os problemas raciais advindos da colonização francesa. Não obstante, a ambiguidade do termo fez-se sentir pela multiplicidade de pensadores que davam voz, em contexto colonial, ao mundo negro. Jean-Paul Sartre, com a obra Orphée Noire (1948), propõe uma interpretação do neologismo lançado por Aimé Césaire dentro dos parâmetros da filosofia existencialista. Neste sentido, para o existencialista francês, o conceito de negritude define-se como ser ou estar no mundo do Negro, isto é, o homem negro assume a sua condição de homem subjugado pela História para afirmar-se com um projeto libertador. Daí o conceito revelar-se por vezes ora como um movimento político, ora como um movimento literário ou ainda como um termo que agrega e resume a herança cultural da África negra e a sua representação no Novo Mundo, no mundo europeu.

Em Portugal, o contexto histórico-cultural e político do Estado Novo ou, como afirma Maria Carrilho, o “obscurantismo fascista reinante” não permitiu um diálogo esclarecedor sobre o movimento da negritude, antes houve obras “a favor da negritude”, isto é, “uma produção poético-literária nas colónias que durante o período que precedeu a luta de libertação nas colónias, se ligava, pelos seus conteúdos, ao movimento negritudiniano” (Carrilho 1975: 39).

A formação da negritude africana na poesia de língua portuguesa foi largamente discutida por Pires Laranjeira em A Negritude africana de língua portuguesa (1995), onde se considera que a negritude foi sobretudo uma “codificação estético-ideológica cifrada no tecido textual, uma corrente compartilhada pelo núcleo mais importante de uma geração [de 50], integrada num movimento cultural e político de grande alcance” (Laranjeira 1995: 497). Esta geração de 50 era composta por um grupo de colonizados de grande diversidade cultural, intelectuais africanos que estudavam em Lisboa, Coimbra, São Vicente, São Tomé ou Lourenço Marques, empenhados no combate político assumido ao colonialismo e à

degradação da condição humana do negro através da escrita (da poesia ou ensaio) “tendente a apoiar reivindicações de emancipação” (Laranjeira 1995: 497).

Mais do que um movimento literário, a negritude foi sobretudo um movimento cultural que se manifesta nas narrativas dos mais diversos campos – político, social, cultural, literário – que indubitavelmente estão em constante cruzamento.

Diferentes da literatura colonial, as narrativas da negritude incluem, segundo Pires Laranjeira, “um conjunto de propriedades nunca antes reunidas” (Laranjeira 1995: 501), como a introdução de falares locais, de personagens representativas dos colonizados35, de

distinção de classes sociais e de uma cultura que valida o processo civilizacional africano, ou seja, os autores dos textos negritudinistas “deslumbra[m]-se com a tradição dos povos africanos e o discurso traça um universo de referências no qual os colonizados se reconhecem à escala continental ou pluri-continental” (Laranjeira 1995: 501) que visa a reconstituição cultural do passado rural e urbano africano anterior ao colonialismo europeu, a fim de restituir uma identidade cultural perdida àqueles que pertenceram à diáspora ou sucumbiram à aculturação ou assimilação. Nas narrativas negritudinistas, o homem africano já não é representado de forma reduzida e o branco já não possui o poder, a palavra ou a racionalidade em exclusivo como se verifica na literatura colonial ou na literatura precursora (Laranjeira 1995: 502). Crê-se que a negritude de língua portuguesa surge com o livro de poesia Ilha de nome santo (1942), do escritor Francisco José Tenreiro, seguido pelas narrativas Terra Morta (1949) de Castro Soromenho e Natureza Morta (1949) de José Augusto França.

Como já foi dito, há um consenso em dividir a obra de Castro Soromenho em duas fases, antes e depois de Terra Morta. Todavia, não se verifica uma quebra entre elas ou, como afirma Gonçalves, “o facto de serem os lundas a principal personagem e o facto de se referir sobretudo à decadência mais do que a ascensão do império que constituíram, vai trazer uma unidade à obra”, caso contrário, se optasse pelo quiocos, “perderia aquela coerência que permitiu transitar para a sociedade colonialista sem haver um abismo entre os dois períodos da produção do escritor” (Gonçalves 1971: 101-102). Depois de Terra Morta, o escritor dá conta da situação do negro como colonizado, e “continua a história de um povo [negro] que começou por possuir um grande império e foi decaindo lentamente até à sua absorção total” (Gonçalves 1971: 102). Há assim uma ligação estreita entre as duas

fases, no que concerne o tratamento da personagem negra na narrativa soromenha. Depreende-se que esta ligação “parece corresponder a um processo muito mais profundo que vai afinal unir o autor a um movimento que apaixonou não só escritores como sociólogos: a negritude, isto é, ‘descoberta dos valores culturais da civilização negro- africana’” (Gonçalves 1971: 102).

A negritude pode ser entendida como um movimento político de libertação, como um processo ideológico de aquisição de uma consciência racial, como também, no campo cultural, a tendência de valorização de toda a manifestação cultural de matriz africana. O contributo de Castro Soromenho verte essencialmente na esfera cultural, ou seja, na valorização destemida da cultura africana, concretizada de forma mais evidente aquando do exílio francês, onde o contacto com a elite intelectual do movimento da negritude se intensificou (Césaire, Senghor, Roger Bastide, Mário Pinto de Andrade, entre outros) e com a escrita das três últimas obras; em Soromenho encontra-se também a ousadia de contradizer o que parece consensual nos escritores coloniais, a visão utópica de um império, revelando- se manifestamente um escritor pós-colonial avant la lettre.

Pode-se afirmar que o escritor, apesar da brancura da pele, embrenha-se no espírito africano através das suas próprias memórias de ex-aspirante colonial para recontar as tradições orais e as estórias que ouvira dos habitantes do sertão da colónia portuguesa, Angola (anexo 2). Assim, Castro Soromenho é dos poucos36 autores da literatura africana

de língua portuguesa que dá voz às personagens silenciadas pela história da colonização: os escravos e as mulheres.

Castro Soromenho, na sua primeira fase literária, oscila entre a literatura e a etnografia. Em certas obras, aparecem, não raras vezes, anotações em rodapé para esclarecimento do leitor sobre o léxico ou explicação sobre a civilização negra, o que denota algum pendor etnográfico. Isto acontece sobretudo nas obras vencedoras do Concurso de Literatura Colonial. No entanto, esta tendência esvai-se à medida que o próprio escritor amadurece.

A obra de Soromenho valoriza-se pela “recusa do escritor em oferecer ao leitor um espectáculo agradável e poético de civilizações desconhecidas”. Gonçalves não menciona que a obra a que Simões se refere foi premiada pela Agência Geral das Colónias, uma instituição que pretende dar a conhecer o exotismo da sociedade negra ao europeu. Levanta-

36 A par dos escritores Pepetela, Uanhenga Xitu, José Eduardo Agualusa, Arnaldo Santos e Manuel Pedro

se a questão, por que razão lhe é atribuído o prémio? Mário Sacramento, uma fonte da mesma autora, reitera o facto da “recusa do exotismo como curiosidade de ‘bouquinistes’ ou alimento de imaginação em férias” (Sacramento apud Gonçalves 1971: 55), o que contradiz Roger Bastide quando afirma ser “um romance poético”. A análise de Gonçalves (1971) carece de correlações que podem enriquecer a hermenêutica literária ou cultural do universo criativo de Castro Soromenho: os prémios atribuídos às obras da primeira fase são importantes para entender a obra, enquanto processo criativo e reprodução do universo extratextual que a envolve, como os propósitos da criação do Concurso de Literatura Colonial e a propaganda ideológica (do sistema colonial) a que os escritores concorrentes estavam associados.

É desta forma que Castro Soromenho se aproxima dos pressupostos da negritude, mas é sobretudo o paradigma da “pós-colonialidade” que parece aflorar no panorama cultural da época. Num primeiro momento, através da trilogia de Camaxilo rompe com os pressupostos ideológicos contemporâneos da literatura de língua portuguesa ultramarina, e num segundo momento, através do exílio advindo desta rutura, alia-se de forma assumida ao movimento da negritude francesa. O exílio francês permite cultivar o saudosismo da “terra natal” ou das raízes africanas do escritor, tal como se verifica em muitos outros poetas e prosadores que viviam fora da terra africana. Assim, como afirma Pires Laranjeira, “O interesse e saudade pela terra e pelo povo foram o mote propulsor de um desejo de poesia de cujas entranhas sairia a Negritude” (Laranjeira 1995: 94).

Paulatinamente, e sobretudo a partir da publicação de Terra Morta, Castro Soromenho sublinha a predominância do negro nas suas narrativas enquanto personagem e ator da cultura africana, num momento histórico e cultural em que tal não acontece, isto é, no Estado Novo (ainda) colonizador. Esta consciencialização da cultura negra é propiciada pela interligação cultural que Soromenho estabelecera com outros pensadores e activistas políticos da negritude, tal como Mário Pinto de Andrade, ou pela interligação literária com o movimento do neorrealismo português. Castro Soromenho, pelo viés do discurso literário, nas suas derradeiras obras, profetiza as consequências da crise imperial que já se prenunciava. Soromenho desenha no seu discurso as fraquezas do contexto sociopolítico que originara, a seu tempo, a situação sociopolítico e cultural do pós-colonial e pós-25 de abril em Portugal. Se se considerar que toda a ficção literária é forçosamente histórica (Saramago 1999: 5), a trilogia soromenha em apreço é ela própria produto da história dos tempos conturbados do fim da colonização portuguesa ou do tempo que precede (e se