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A Viragem no Império: a situação feminina e a morte na cultura popular

Capítulo 5: Castro Soromenho – o dissidente do lusotropicalismo

5.2. A Viragem no Império: a situação feminina e a morte na cultura popular

Ainda que integre a Trilogia de Camaxilo, Viragem (Soromenho 2008a) diverge no

espaço da ação; esta desenrola-se no posto de Cuango (Angola), onde as protagonistas são duas mulheres, Paulina e a avó D. Joana. Desde logo, a novidade neste romance está na centralidade de dois sujeitos subalternos femininos do universo colonial. A elas, juntam-se o chefe de posto, António Alves, substituto do marido de Paulina, Afonso Nogueira. A narrativa relata a vida e as peripécias destes colonos portugueses em terras angolanas, cuja procura do “Eldorado” se torna numa desventura. É através das personagens de Viragem que Castro Soromenho apresenta uma nova forma de ver o mundo africano e o mundo dos brancos no mesmo lugar e no mesmo contexto. Dar visibilidade à subalternidade (a condição de mulher branca, negra ou mulata e do negro) assume desde logo a viragem na apresentação da situação colonial portuguesa, longe se ser uma situação “poetizada”.

Uma das primeiras peripécias das duas mulheres é o contacto com o negro e com a cultura tradicional negra. Na posição de superiores na hierarquia colonial, Paulina e D. Joana gozam de um estatuto que lhes permite cultivar um poder particular na vida doméstica que travam diariamente. Paulina, por ser esposa do chefe de posto Afonso Nogueira, que se tenta curar de uma doença em Malange, ocupa o lugar central da casa. Ao seu dispor e como intermediário entre brancos e negros, existe o sipaio Chipanda, que por ordem dos brancos castiga e maltrata os negros, ultrapassando por vezes os limites, o que enfurece os restantes serviçais do posto. A título ilustrativo, destaca-se o castigo do moleque Jusa por ter provocado D. Joana, pois “nada arrancava gargalhadas tão gostosas aos moleques como aquela velha brigona a dizer palavrões à neta” (Soromenho 2008a: 18). Jusa fora obrigado a capinar a estrada com a enxada mais pesada, escolhida propositadamente pelo sipaio Chipanda:

O rapaz começou a capinar, todo curvado, a espinha a fazer arco, a cara a um palmo do chão, tão curto era o cabo da enxada. O sipaio não o largava um momento, cruel nos gestos e nas palavras, e pisava-lhe os calcanhares para que andasse depressa. Quando dava mostras de fadiga, com a ponta do chicote tocava-lhe ora nas pernas ora no dorso nu, luzidio de suor, e acompanhava cada movimento com berros; depois fazia estalar no ar o cavalo-marinho, tudo para que Paulina o ouvisse bem e soubesse que estava a cumprir à risca as suas instruções. E queria também que toda a gente sentisse a sua autoridade, principalmente os nativos ao serviço do posto (Soromenho 2008a: 21) (sublinhado da autora).

Chipanda ganhou a farda de sipaio por ter denunciado ao chefe de posto vários indígenas refractários ao pagamento de impostos e por isso alvo de troça por parte dos outros negros. Episódios como o do castigo de Jusa faziam com que o sipaio aparecesse “de semblante alegre e mão pesada” (Soromenho 2008a: 21), o que, por outro lado, era condenado pelas mulheres brancas: “Esse sipaio que desapareça já da minha vista! (…) Selvagem! Nem para os seus são bons, estes cães de má raça” (Soromenho 2008a: 23). Demonstrando um tratamento muitas das vezes contraditório, as mulheres acabam por mostrar condescendência para com os súbditos – “Sempre com essas conversas com os negros. A avó esquece que é uma branca./ – São de carne e osso como nós – retrucou D. Joana, agastada” (Soromenho 2008a: 43) –, embora a condição de branco obrigue, nem numa condição de lei, a inferiorizar o negro. Ainda que se verifique a inferiorização do negro nos diálogos ao longo da narrativa, não é contudo esta a posição do narrador. Aliás, o autor/narrador procura desvendar e denunciar as relações sociais de desigualdade e de justiça que decorrem da situação colonial, quer do colonizado quer do colonizador. Senão veja-se o desespero de António Alves, o chefe de posto substituto: “A África… Neste cu do mundo só há solidão e febres. É horrível esta sensação de se estar vivo neste tempo morto. É como se um homem só tivesse passado, só vivesse no passado, com a alma enterrada no passado e o corpo vivo em febre e suor. Eu quero viver, viver!” (Soromenho 2008a: 49).

Já o desespero de Paulina é duplo: por ser mulher branca em terra africana. Quando lhe pareceu que África poderia ser o “caminho da libertação”, ao chegar a Angola o seu sonho desvaneceu-se: “A terra sim, era nova, mas a gente branca era a mesma” (Soromenho 2008a: 55). A mesquinhez e a coscuvilhice tacanha faziam da vida e do corpo da mulher branca uma prisão. Se quisesse ganhar a vida de forma independente, sem contrair matrimónio, o “homem branco só olharia para ela com olhos carregados de desejos. ‘Selvagens! São piores que os negros’” (Soromenho 2008a: 56). Por outro lado, imaginar- se à sua mercê, sozinha com a avó “na terra dos negros ‘selvagens’” (Soromenho 2008a:

57), aterrorizava-a. Do cenário, o melhor era mesmo casar: “Casada teria outra vida, com direitos garantidos como mulher de funcionário público, e se enviuvasse não ficaria abandonada de todo; pelo menos ser-lhe-ia devida, e também à sua avó, passagem de regresso à Metrópole” (Soromenho 2008a: 57).

Os sentimentos de raiva e de rancor são uma constante nas personagens femininas brancas, excedendo-as o aspirante António Alves. D. Joana, cujos comportamentos são constantemente parodiados pelos serviçais, vive em constante ira para com os negros, embora com laivos de condescendência.

D. Joana, a “velha branca”, suspira pela vida que tivera em Luanda, enfatizando a diferença entre o mato e a cidade de Luanda:

Em Luanda é que se vive bem. Todos os dias o criado da pensão me lia o jornal. O Alberto era um bom rapaz. Um preto de Cabinda, esperto como um branco. E não era abusador, não é verdade, Paulina?

Paulina sorriu-se e disse:

– A África seria boa sem pretos, sem mosquitos e sem bichos… A senhora o que queria era uma África sem África… (Soromenho 2008a: 63).

A vida no mato não está facilitada, pelo que o chefe de posto Afonso Nogueira teve de ir para Malange onde, segundo D. Joana, há bons médicos: “Aquilo já não é sertão. Se fosse aqui ou nessas terras para cima, é que seria o diabo, sem médicos, sem remédios, sem transportes rápidos, sem coisa alguma” (Soromenho 2008a: 41).

Em menor destaque situa-se a mulher negra e a mulher mulata, cuja situação se resume na fala de Maurício, já no final da narrativa:

– Não me fale de mulatas, Sr. Nogueira, que até fico de morrer! Cada sarilho, senhores! Por causa de uma ‘cabrita’ tive de fugir de Banguela e nunca mais lá voltei. Eu tenho experiência. Para borrega a negra é melhor. Com mulatas a coisa fia mais fino, o pai é branco, mete civilização, encrencas, o diabo! De negras ninguém quer saber, a gente pega e larga, vai cada um para seu lado e não há queixas, qual tribunal, qual nada! Não se briga, tudo é como cada um entende. Coisa limpa, tudo ao natural como Deus manda… (Soromenho 2008a: 223)

A exploração sexual do corpo das negras tem maior relevância em Terra Morta, personificada no aspirante Vasconcelos, recentemente instalado na povoação de Camaxilo, e no secretário Silva, homem desumano e sem escrúpulos. O aspirante, usando da prepotência característica do funcionário branco, compra uma jovem negra ao pai a troco de um cobertor e de uma quinta de sal; Silva violenta as negras e abusa das jovens mulatas. Por estes factos, Américo confronta-se forma irreversível com o secretário Silva, levando o

primeiro a tomar partido do Outro, provocando admiração por parte dos negros: “Povo! Nasceu o coração do branco” (Soromenho 2008: 217).

A cultura popular africana aparece episodicamente ao longo de toda a narrativa, mas ganha relevo na análise cultural da obra. É através do fenómeno da aculturação, isto é, por meio do contacto cultural, que se denota, em certa medida, choques culturais em todas as atividades humanas. A cultura popular africana choca com a dos brancos, principalmente por ser de caráter mito-simbólico. A identidade europeia, de cariz racionalista, não se coaduna com o caráter esotérico de que é revestida a cultura banta.

A referência a rituais divergentes da cultura europeia surge essencialmente para demonstrar o quão rejeitada é a cultura do negro e incompreendida a do branco. A incompreensão mútua prende-se, marcadamente, com a forma de lidar com a morte. O fim da vida “não só não aterroriza nem inibe os negros como, pelo contrário, lhes permite uma realização humana integral, quer individualmente quer como membros da colectividade” (Beirante 1989: 313). Já a forma do branco encarar a morte provoca no negro uma perplexidade e um total repúdio. É o caso da falta de batuque nas cerimónias fúnebres do branco: “Branco é assim: morre branco e fica maluco (…) É porque não faz batuque.” (Soromenho 2008a: 177).

O episódio representativo deste choque cultural é descrito após a grande tempestade que se abate perto da circunscrição e que provoca grandes inundações nas margens do rio Cuango e muitas vítimas, entre elas o avô do moleque Jusa:

– Como sabem que ele morreu? – perguntou Paulina.

Ninguém o tinha visto morrer, mas todos afirmavam, que estava morto em qualquer parte no fundo do rio (…).

– Ele vai aparecer – disse Jusa a chorar, dirigindo-se a Paulina. – Precisa voltar no rio, senhora.

– Onde estão as minhas galinhas? – interrompeu-o de chofre D. Joana. – Depois voltas ao rio. Onde é que as puseste? Todo este tempo no rio e eu aqui sem saber das minhas galinhas. (…)

– Traz primeiro as galinhas e arranja a capoeira. Deixa lá que o teu avô vai aparecer. Não te esqueças do pato. O teu avô estava muito velho, com os pés prá cova. Anda, vai buscar as galinhas (Soromenho 2008a: 28)

Quando o corpo do velho Ruanda apareceu, os populares negros iniciaram os rituais de celebração da morte: “Todas as aldeias mandaram os seus melhores tocadores de atabaque, porque o povo do rio queria que a festa do seu morto fosse grande e deixasse fama em toda a região” (Soromenho 2008a: 34). O ritual prossegue pela noite dentro, ao toque do tantã, dos batuques e das canções: “Os pescadores e barqueiros chegaram nas suas canoas e

em pequenas jangadas de junco, com centenas de archotes a abrirem caminho na noite negra, cantando tristes canções em memória de Ruanda, ‘pai dos canoeiros do Cuango’ e famoso contador de histórias” (Soromenho 2008a: 34).

O rio Cuango ganhara o epíteto “nosso pai Cuango” por ser tão temido e respeitado. A aldeia, onde vivia o avô de Jusa, era habitada por pescadores e barqueiros. Um deles, Murique, o “único homem do rio que vivia na terra longe” (2008a: 34), ora nas colinas ora nos acampamentos dos caçadores, ousa cortar “a roda do batuque e, pondo-se ao lado dos tocadores do atabaque, levantou os braços e gritou, mais forte que a voz dos tambores, mais forte que o canto do povo, injúrias contra o rio ‘maldito’ que ‘bebeu o sangue do seu filho’, o sangue do seu irmão Ruanda” (Soromenho 2008a: 35). Logo é interpelado por um jovem pescador que fez das palavras dele o mote para uma nova canção: “O pescador cantou o amor dos homens pelo grande rio cheio de segredos e mistérios, ora bom para o povo que dele vivia, oral levantado em cólera contra o homem e a terra” (Soromenho 2008a: 35). Para pedir perdão pelas palavras injuriosas de Murique, o jovem pescador atribui a “morte de Ruanda e todas as desgraças que o rio causara à cruel e inexorável vontade de Cassone, o deus da tempestade, e a Zambi-iá-meia, o deus das águas, contra os quais os rios, a terra e os homens nada podiam” (Soromenho 2008a: 35).

Todos os negros participam na festa, inclusive aqueles que o “homem nu do sertão” repulsa. “Até os capitas, o sipaio Jacinto e o Augusto Mulambo, cabo dos sipaios, aqueles com saiotes de pano às riscas, o dorso nu e cofió vermelho no alto da carapinha, estes com fardas de cotim sal-e-pimenta, todos descalços” (Soromenho 2008a: 36) mal terminam os trabalhos escapam-se até à aldeia dos pescadores.

O ruído dos zambumbas e o vozear das canções chegam, “num som arrastado e monótono” à casa das duas mulheres, que se amedrontavam em pensar “[n]esses negros bêbados por aí à solta” (Soromenho 2008a: 36), sobretudo naqueles que roubaram a granja e principalmente “num capita que ela mesma esbofeteara poucos dias antes de Afonso Nogueira ir a Malange e que a olhara com tanto ódio que a fizera estremecer por um momento” (2008a: 36). Neste episódio, onde se verifica haver um equilíbrio numérico nas referências culturais do colonizador e do colonizado, a cultura africana ocupa pela primeira vez um lugar de centralidade, para demonstrar a recusa do europeu em aceitá-la:

Durou dez dias e dez noites batuque do Ruanda – batuque de choro cantado que deixou fama em todo o sertão do Cuango e foi falado em terras distantes. Mas muito mais tempo teria durado se o aspirante Alves não tivesse mandado os sipaios pôr termo à ‘batucada

infernal’ e enterrar sem mais delongas o corpo podre do Ruanda, que, envolvido em cascas de árvore, era velado numa palhota ao fundo do terreiro (Soromenho 2008a: 42).

A tentativa de intromissão da cultura europeia, por intermédio dos sipaios, nomeadamente no ritual da morte, enfurecia os grandes da tribo: “Os nativos recusaram-se a dar o corpo à terra, como exigia o cabo dos sipaios Augusto Mulambo, negro de outra terra, um estrangeiro, porque Ruanda fora um dos grandes filhos do rio e o seu corpo ao rio teria de ser dado” (Soromenho 2008a: 42).

O culto da Mãe-África foi uma das armas que os intelectuais angolanos usaram, no período que antecede a independência das colónias, para se afirmarem cultural e politicamente frente à governação imperial portuguesa. Também Soromenho, verificando- se já em Terra Morta, vai incluindo nas suas narrativas elementos culturais africanos de luta de afirmação, ora para dar lugar ao negro ora para denunciar as práticas desumanas do império colonial português. Tal como afirma Donizeth Aparecido dos Santos, “esse símbolo, sufocado durante séculos pela assimilação cultural europeia, retornou com força no imaginário literário angolano no período de pré-independência, destronando qualquer outro símbolo imposto pela colonização” (2007: 28-29), o que se denota, embora de forma pontual, na obra Viragem de Castro Soromenho.

Viragem é um projecto de refutação do império colonial português que teve início em Terra Morta e culmina com maior intensidade em A Chaga. Convém salientar, que da primeira para a segunda fase soromenha, o escritor introduz as personagens colono e administrador, para dissecar o problema colonial. Não quer isto dizer que tenha relegado as personagens africanas para segundo plano, antes pelo contrário, o autor equilibra a função quer do branco quer do negro, pois só assim atinge o objetivo de denunciar a situação colonial portuguesa.