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A Chaga, a chaga (sempre) viva do império: do branco ao mulato

Capítulo 5: Castro Soromenho – o dissidente do lusotropicalismo

5.3. A Chaga, a chaga (sempre) viva do império: do branco ao mulato

[Os colonos] Sonham com o regresso à sua terra, à aldeia natal, a Portugal.

– Como? Tu também dizes Portugal…

– Quando se chega diz-se metrópole, depois Portugal. Aqui a realidade impõe-se. Isto é África. O resto é propaganda (Soromenho 2008b: 207).

Livros sobre África é que não leio. O retrato que fazem do colono é ridículo. Aquilo é lá gente! Tudo serve para

a propaganda. Agora chamam-nos de cafres da colonização, mas levam os colonos a Portugal, prestam homenagens públicas aos “heróis do Império”, condecoram-nos, exibem-nos nos cortejos… uma fantochada (Soromenho 2008b: 153).

A Chaga (2008b), obra póstuma de Castro Soromenho, representa um fragmento cultural de Angola, Camaxilo, definida como “duas povoações e um só nome” (Soromenho 2008b: 8) e que se afigura, em certa medida, uma sequência temática das duas obras precedentes, Terra Morta (2008) e Viragem (2008a), o “tempo de miséria” e o “tempo de náusea”, respectivamente, como sintetiza Santos Lima (1975: 57). Em Terra Morta, o escritor apresenta a base temática que corporiza a sua trilogia, sendo a denúncia da coisificação do homem negro e a degradação do homem branco, e subsequentes deformações das relações humanas (entre negros, brancos e mulatos) na sociedade decadente de Camaxilo, outrora comercialmente rica e portentosa; em Viragem, e em sequência da miséria apresentada na obra anterior, o branco e o negro vivem em prisão social no Cuango, isto é, ao colonizado resta-lhe a fuga ou o suicídio, enquanto o colonizador padece de podridão da consciência. A Chaga é o “tempo de balanço” e o “tempo de remorso”, onde são ajuizadas políticas como o utracolonialismo, o anticolonialismo e o fascismo67 (Santos 1975: 58), reveladas pelas atitudes dos personagens. Trata-se, antes de

mais, de fazer um balanço da colonização e de constatar o fracasso do projecto colonial, onde nem o mulato, o elo que poderia unir pretos e brancos, sobrevive: “Só nos filhos mulatos salvaríamos o homem que se perdeu em cada um de nós”.

Dividida pela Camaxilo de cima, onde se encontram “a gente do governo, civis fardados”, e pela Camaxilo de baixo, reservada às “lojas dos colonos”, esta povoação serve de cenário para contrastar as posições do velho e do novo colono e ainda do branco e do negro que povoam o mesmo lugar “há um ror de anos sob o mesmo céu ardente e sobre a terra perfumada de acácias” (Soromenho 2008b: 8).

Ali vivem o negro Gunga, numa “teia de raiva, sempre em chaga viva”, e o colono velho Albino Lourenço, um “branco ladrão”, segundo o primeiro (2008b: 8-9). A ação centra-se no pessoal da Administração: o administrador Albino Lourenço, Joaquim Mota, António Alves, Afonso Nogueira e a mulher Paulina, sendo estes últimos três personagens que transitam da narrativa Viragem (2008a).

Na obra de Soromenho, o mestiço, embora em menor número, ocupa um lugar importante na problematização e desmistificação do império português, sobretudo sob o ângulo das relações raciais. Em A Chaga, através dos personagens brancos, dá-se conta da situação referente à miscigenação fruto do império, onde “anda muito sangue meu [José Paulino] no corpo de filhos de Angola. Cá pra mim fazer filhos mulatos é que é colonizar, colonizar à portuguesa, como a gente fez no Brasil, por esta África toda e até lá nas Índias” (Soromenho 2008b: 148). A premissa parece ser “onde um português chega nasce logo um mulato. É por isso que todos dizem que somos os maiores colonizadores do mundo. Enchi [José Paulino] muita barriga por estes sertões, do Quimbundo ao rabo da Catanga. Até plantei um filho na barriga de uma baluba” (Soromenho 2008b: 148). Há também vozes críticas em relação a esta forma de “colonizar”, considerando que “o Depósito de Degredados de Luanda deu muitos colonos. Se calhar ele [Manaus] era um deles (…) foi o campeão da fornicação, disso podia gabar-se. – Colonizou… como tu dizes…” (Soromenho 2008b: 149).

Se em Reis Ventura o mestiço é sobretudo o elo de ligação entre as raças e um exemplo a seguir, já em Soromenho a miscigenação é uma situação trágica e ambígua, desconsiderada pelos negros por ser de pai branco e desprezada pelo branco por ser de mãe preta. O mulato é “por excelência a coisa indefinida, o estorvo” (Santos 1975: 100). Ainda assim, como demonstra Reis Ventura num ideal lusotropical, os mulatos nascidos sob o teto paterno têm mais vantagens em termos sociais e culturais. A visão soromenha difere, verificando-se que o mulato sofre da mesma rejeição do negro, apesar da protecção paterna que o isenta de trabalhar como o outro. Obedecendo às visões do branco e do negro, Soromenho foca o mulato sob duas perspetivas: como ele é e como ele se julga. Cabe ao branco José Paulino, em A Chaga, representar a atitude negativa do colono português face ao mestiço, que se opõe à visão positiva de Albino Lourenço: “Só nos filhos mulatos, afirma Lourenço, salvaríamos o homem que se perdeu em cada um de nós” (Soromenho 2008b: 112). O branco Lourenço, ainda assim, considera que o futuro do mulato passa pelo regresso à mãe, intuindo que é mais difícil separar um filho da mãe que do pai, apesar de branco. A brancura do pai não livra o mestiço dos preconceitos. Os próprios pais são racistas pela cor que os filhos herdaram da mãe, como o demonstra Pancário, em Terra Morta, ou José Paulino, em A Chaga: “Eu tenho filhos mulatos e quero-lhes bem, que diabo, são meus filhos, mas confesso que é gente ruim” (Soromenho 2008b: 91). Já Lourenço atribui a culpa desta “ruindade” aos próprios brancos: “A culpa é nossa (…) Os brancos estão sempre a

gostam deles porque são filhos de branco e julgam-se superiores a toda a gente. Vaidosos e invejosos lá isso são (…) têm as suas razões. Ninguém gosta de viver escorraçado” (2008b: 91). Apesar da situação instável, os mulatos preferem o lado branco, acabando por haver rutura quer a nível linguístico como a nível cultural com o lado da mãe negra. Opinião contrária tem o velho Lourenço em conversa com Vasco Serra, uma espécie de alter-ego de Castro Soromenho, que estima que se deve fazer do mulato homem do povo africano, pois só assim poderia haver redenção. No entanto, “com o nosso exemplo aprendeu a desprezar o negro. Creia-me, Sr. Serra, será com o negro que ele um dia se encontrará. Ele também é desprezado pelo branco. O mulato regressa à mãe, porque a mãe é da sua terra, do seu povo. A mãe é a África” (Soromenho 2008b [1970]: 153).

Na sociedade colonial, o branco domina quer política quer economicamente, pelo que representa a autoridade máxima; eles são funcionários da administração colonial comandados pelo administrador a quem compete estabelecer e ordenar as relações entre brancos e pretos. Mas há também, na evolução ou transformação da situação colonial, o conflito entre os colonos velhos (portugueses metropolitanos) e os colonos mais novos (ou nascidos em Angola, ou seja, “brancos de segunda categoria, e da Huíla… são como mulatos” (Soromenho 2008b [1970]: 40)), tal como afirma o administrador Santiago da Silveira em A Chaga “Nunca nos devemos esquecer que nesta grande família portuguesa, formada por brancos e negros, nós, portugueses da Europa, somos a elite.” (Soromenho 2008b [1970]: 39). Esta distinção dá-se conta nomeadamente no tratamento dos negros (Beirante 1989: 110) que Castro Soromenho apresenta em Terra Morta. A narrativa expressa a mentalidade e o comportamento entre colonos velhos e novos, sobretudo na forma como o outro, o negro, é perspetivado. O secretário da administração é censurado pelo chefe de posto pela sua brandura para com os negros: “É por essas que hoje se vêem negros voltarem-se contra os brancos. Quando eu vim para cá, nem levantavam os olhos. Agora é o que se vê… E qualquer dia correm-nos à porrada” (Soromenho 2008a [1949]: 19). Em A Chaga a divergência de opiniões em relação ao trato dos negros provoca conflitos entre brancos e hierarquias – “Enquanto eu for administrador, não admito que seja espancado um sipaio ou capita, em frente dos indígenas. Eles são os nossos auxiliares, os soldados do quadro administrativo” (Soromenho 2008b [1970]: 36). Aqui, apesar de a violência ser consentida, considera-se que, na hierarquia administrativa, o cofió deve ser respeitado tal como uma farda portuguesa, o que legitima afirmar que os portugueses tratam bem os negros – “Oxalá todos fossem tratados, até em certos sítios da Europa, com a humanidade com que tratamos os nossos negros [afirma o secretário da administração]”

(Soromenho 2008b [1970]: 37). Preconizando-se uma “nova mentalidade” em relação ao homem negro, o quadro administrativo do “novo colono” “tem de lutar primeiro que tudo contra os velhos processos coloniais e proteger os negros deles próprios. Proteger e civiliza- los é o nosso lema” (Soromenho 2008b [1970]: 39), lema da propaganda paternalista da última fase da colonização. A partir daqui, sobressaem as posições fascistas e antifascistas mais ou menos declaradas. A título de exemplo, sobressaem as personagens fascistas, como o administrador Santiago da Silveira e o chefe de posto Deusdá, em A Chaga, que atribuem a “difamação” da Alemanha aos comunistas:

– (…) Eu até já ouvi dizer que há campos de concentração, de escravos, lá prá a Alemanha.

– Na Rússia, quererá o senhor dizer. A Alemanha é um país civilizado. – Lá está, Sr. Administrador, a propaganda dos comunistas – disse Bonifácio Pereira.

– Claro, claro. A nós, Sr. Deusdá, o que nos interessa é o que se passa dentro da nossa casa. Há espiões espiões por essa Angola fora, sobretudo nas missões protestantes. E quanto a essa balela de campos de concentração na Alemanha, ria-se de quem lha disse porque é comunista ou parvo (Soromenho 2008b [1970]: 37-38).

Opõem-se àqueles Joaquim Américo, personagem de Terra Morta, que fora obrigado a refugiar-se em Angola, mas principalmente Vasco Serra e Eduardo Sales, em A Chaga, que demonstram esperança na resistência russa e algum otimismo na evolução da segunda Grande Guerra.

O sonho utópico da colonização faz também parte da mentalidade do colono que se radica em Angola, após a independência do Brasil: “isto é terra do futuro. Aqui é que há-de ser o nosso Brasil. Quem fez aquilo [Brasil] ainda tem alma para fazer isto [Angola]” (Soromenho 2008 [1949]: 12). Por um lado, a prosperidade do Brasil limitava-se a alguns – “Esses tipos [familiares brasileiros no Brasil] exploram-nos como se fôssemos negros. (…) Não há português que não tenha no Brasil um parente, um tio. O meu irmão José morreu lá, sem nunca ter passado da cepa torta” (Soromenho 2008 [1970]: 17), por outro, África também já foi considerada uma “mina”, sendo agora preconceituosamente denominada de “uma mina, sim, mas uma mina de pretos” (Soromenho 2008 [1970]: 17).

O branco é provocador de rancor – “Branco ladrão!”, sussurra e aperta os dentes com raiva. (…) vinte e cinco anos de raiva impotente contra o colono que lhe roubara a negrinha Caçula, a quem começara logo a chamar Alice” (Soromenho 2008 [1970]: 8) – e de conflito entre negros – “Gunga ficou preso naquela teia de raiva, sempre em chaga viva pela troça que dele faziam os sipaios, capitas e serviçais dos europeus” (Soromenho 2008 [1970]: 9). Segundo Arlindo Barbeitos, no que respeita o fenómeno de assimilação, o

português visa sobretudo a demarcar-se do negro e não a integrá-lo na comunidade branca (Barbeitos 2009: 334). Os portugueses veem o mulato como um resultado abençoado da colonização (Ventura, Azeredo), enquanto que o negro encara o mulato como uma herança “amaldiçoada” da violência vivida em tempo colonial (Soromenho).

Em jeito de conclusão, se nas duas primeiras obras da trilogia Soromenho não manifesta o seu juízo de valor sobre os factos históricos ou sociais, em A Chaga verifica-se uma tomada de posição crítica em relação ao contexto que envolve as personagens da narrativa: o colonialismo português. É também com aquela obra, que Terra Morta e Viragem ganham sentido. Segundo Maria Perpétua Gonçalves (1971), nestas três últimas obras as personagens e as situações são traçadas de acordo com a atitude do escritor em relação à sociedade (1971: 6). As personagens estão ligadas essencialmente ao passado ou ao presente histórico e revestidas de uma crítica realista. No entanto, Soromenho coíbe-se de apresentar o homem branco ou negro do futuro nem cria o “herói africano”68, como se

poderia supor tendo em conta a sua ideologia político-cultural de oposição ao regime de Salazar. Para Gonçalves, parece que Soromenho recusa de forma voluntária em descrever o homem ideal que poderia resolver as problemáticas apontadas, ou seja, não há “personagens irreais” construídas a partir de um padrão ideológico, pelo que não se trata de uma obra panfletária, mas antes de uma análise inteligente e profunda da realidade africana (Gonçalves 1971: 8).

Como já foi oportunamente referido, a primeira fase da escrita de Soromenho apresenta fundamentalmente a sociedade tribal, onde o branco é uma personagem residual, referida vagamente e sem qualquer interferência na vida do homem negro. Depreende-se que o escritor parta dos dados recolhidos durante a vivência em Angola para descobrir ou melhor conhecer a cultura do povo negro, ou seja, apresenta a história da fundação e da decadência do império dos lundas, as crenças, as tradições e os valores adjacentes à vida da sociedade negra. O universo africano é o centro das narrativas soromenhas escritas até Terra Morta. O autor não é só um “curioso” da sociedade africana, embora haja críticos que considerem que a obra de Soromenho não interesse o leitor europeu, como verifica Maria Gonçalves, relembrando as palavras “preconceituosas” de João Gaspar Simões: “a vida que tal romance [Homens sem caminho] nos mostra nada tem de comum com a nossa”

68 Só em A Chaga surgirá, no decorrer do enredo, uma ténue linha que parece anunciar o futuro do homem

negro ou branco. Gonçalves afirma “Nenhuma delas ultrapassa o seu próprio tempo. Nenhuma tem energia suficiente para superar as condições do meio em que vive. São personagens mergulhadas no quotidiano medíocre, sem aspirações mais amplas que a sua própria ascensão pessoal (Gonçalves 1971: 8).

(Gonçalves 1971: 54). Pelas palavras de Simões, infere Gonçalves, parece haver uma não- aceitação da centralidade do negro tão objetiva e concreta, o que contraria as estruturas literárias ocidentais, isto é, a exotização da cultura desconhecida ou a tentativa de mistificar o “negro selvagem”.