• Nenhum resultado encontrado

O contexto histórico-cultural: O Estado Novo e a questão colonial

Capítulo 1: Do conceito de cultura ao conceito de cultura no contexto do “Império Colonial

1.1. O contexto histórico-cultural: O Estado Novo e a questão colonial

Por muito tempo, “um dos problemas fundamentais do país foi o facto de Portugal ter sido um país de ‘duas nações’, os ricos e os pobres, se não mesmo de ‘duas raças’”

(Wheeler e Pélissier 2011: 40). Houve, durante séculos, uma clivagem quer de classe quer cultural entre o povo e as elites. O povo mostra-se indiferente às ações patrióticas geradas pela elite, que geriu a nação nos momentos de expansão, de declínio, de regeneração e, novamente, de declínio (2011: 41). A passividade das massas em relação à inovação, em especial daqueles que permanecem nas atividades tradicionais, muitas vezes desiludiu “os grandes sonhadores de Lisboa” (2011: 40). Os poucos que emigram têm como único objetivo fazer fortuna e regressar ao país. Por isso se afirma que os portugueses não são “dados ao imperialismo” (2011: 40). O português tem um comportamento paradoxal, como afirma Douglas Wheeler evocando o historiador Ralph Delgado, ele é “plástico, humanitário e até mesmo convertido à civilização indígena, o colono português; mas, simultaneamente, devastador das populações negras por legitimidade mercantil” (2011: 40).

A elite pouco sucesso teve nas tentativas de reformas, o que causa uma de falta de confiança e autoestima. Viajada, instruída e sensível à suposta superioridade dos restantes países europeus, a elite esforça-se, quase em vão, em fundir a tradição com as ideias novas do exterior. Os “cafres da Europa”, epíteto de António Vieira, vivem com falta de unidade e ordem subsequentes da miséria financeira e cultural, o que provoca no país um sentimento de hipernacionalismo que pode funcionar até como um “mecanismo de sobrevivência” (2011: 41). Daí se pensar ser necessário “um líder forte para vencer o sectarismo e unir o país”, considerado “pequena Turquia do Ocidente” (Wheeler e Pélissier 2011: 42).

A elite portuguesa nunca esteve de acordo quanto ao “valor do colonialismo como forma de sobrevivência nacional” (Wheeler e Pélissier 2011: 44). A maior parte dos sucessivos regimes procurava “encontrar nas colónias uma riqueza e um prestígio de que não gozava, e o colonialismo tornou-se, desde 1928, uma forma de apoio aos grupos que se encontravam no poder” (2011: 44).

Daí ser imperioso, não só repensar os anos 30-60 e o colonialismo português (do Terceiro Império), como retornar à produção e receção cultural da época, essencialmente em contexto colonial, sob um olhar analítico distante, mas objetivo. Tal como afirma Eduardo Lourenço (2012), “a história não se escreve (…) do passado para o presente (…), ela vem do futuro e vem do presente”, porque a escrita da História implica o peso de uma herança, ou seja, ser herdeiro de uma história de um “pequeno país” que já conheceu vários avatares13.

13 Lourenço, Eduardo (2012): Nação e Império. Transcrição da Aula Magistral do curso Portugal e os Pós-

Colonialismos: conceitos, contextos e vozes (1ª edição: 2012/2013). Cátedra Eduardo Lourenço Universidade de Bolonha/ Instituto Camões/ Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.

Este capítulo pretende, embora de forma sucinta, apresentar o período histórico em que Castro Soromenho, Reis Ventura e Guilhermina de Azeredo se moveram, os anos 30- 60 do século XX, ou seja, durante a vigência do Estado Novo; e, ainda, dar enfâse à questão colonial referente ao Império Africano na mesma linha de tempo. Importa aqui evidenciar a posição ideológica e cultural da política de António de Oliveira Salazar no que respeita aos territórios ultramarinos no intervalo de tempo 1933-1968, passando também pela ação do “resgatar as almas” da nação portuguesa.

O projeto “Estado novo”, ao contrário do que se possa pensar, não é uma “realização progressiva e linear de um modelo previamente definido por Salazar” (Ramos 2009: 634), daí a instabilidade governativa, isto é, as sucessivas mudanças nos ministérios, onde o único que se manteve foi Manuel Rodrigues, Ministro da Justiça. O governo de Salazar inicia-se com o núcleo central composto por Albino dos Reis, do ministério do Interior, Manuel Rodrigues, da Justiça, Duarte Pacheco, das Obras Públicas, e Armindo Monteiro, enquanto ministro das Colónias.

A construção da imagem colonial faz parte do processo da memória da expansão marítima portuguesa. A memória dos Descobrimentos está inscrita no património cultural material e imaterial: nos monumentos, na paisagem urbana, nos nomes de ruas e pontes. Segundo Francisco Bethencourt (2000), esta memória foi modelada, recriada e transmitida ou readaptada de geração em geração quer através da memória coletiva quer através da memória erudita (2000: 442). Tal como se afirma em História da Expansão e do Império Português, coordenado por João Paulo Oliveira e Costa, a “Expansão Portuguesa é como que um caleidoscópio multiforme e de cores sempre em mudança conforme o ponto de observação, que hoje tem inúmeras leituras possíveis” (Costa 2015: 11-12).

De acordo com Bethencourt, em “A memória da expansão”, a plasticização ocorreu da organização de comemorações, da representação portuguesa nas exposições nacionais, universais e coloniais. A recriação partiu da experiência dos portugueses ao longo dos tempos nas terras colonizadas. A memória da expansão foi (e é) também mobilizada para as grandes discussões polémicas acerca da Guerra Colonial e em torno da descolonização. O ensino da História também permitiu (e permite) a transmissão e a readaptação da “pequena” e da “grande” História (Bethencourt 2000: 442). Neste sentido, o historiador, sem incorrer na oposição artificial entre memória coletiva e memória erudita14, afirma que estes dois

tipos de memória se contaminam: a memória coletiva apropria-se de temas e ideias consagrados pela história erudita e a memória erudita investe cientificamente no esclarecimento de problemas levantados pelas diversas conjunturas políticas e sociais. Apreender a memória coletiva não é tarefa fácil, pois é, por definição, “flexível, maleável, adaptável, plural e multifacetad[a] que impede uma abordagem única no tempo e no espaço”; por outro lado, o processo da memória coletiva não é contínuo e espontâneo, e procede, na maioria das vezes, “por esquecimento” como se “a remoção de tópicos consagrados durante décadas, mas que perderam pertinência, pudesse dar espaço à emergência de outros mais úteis e funcionais” (2000: 442). Bethencourt reforça ainda a ideia de que “o próprio passado pode ser objecto de uma bricolage simbólica intencional” e defende que a memória coletiva se fixa “em função de determinadas conjunturas políticas e sociais, que seleccionam pontos focais do passado em função das necessidades de explicação e orientação do presente” (2000: 442).

Pensando no processo de contaminação entre memória coletiva e erudita, pode-se observar que a reapropriação do conceito “lusotropical” por parte do governo de António de Oliveira Salazar não se afasta daquele decurso.