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Capítulo 4: Guilhermina de Azeredo – visão feminina da (des)ilusão colonial

4.3. A condição feminina: a mulher branca e a mulher preta

Num dos paratextos da edição de O Mato (1972), Maria Archer considera a obra de Guilhermina de Azeredo “um estudo psicológico da alma do negro, recortado no mais fino cristal da observação do europeu culto” (Azeredo 1972). Por sua vez, na mesma edição, António Cruz, do Diário de Coimbra, afirma que “como narradora Guilhermina de Azeredo faz reportagem e obra de arte” de uma realidade observada. Entre a realidade e a ficção, Azeredo declara que não se trata de uma autobiografia, mas sim de apresentar ao leitor “a sensação de vida vivida” (Azeredo 1972: 10). José Castro Osório elogia a forma rara como a autora expõe a vida, os costumes e alma dos negros.

Numa nota introdutória ao romance, a autora de O Mato, alerta para o facto de a obra se situar numa época “marcante e agitada de arranque nacional ultramarino” (Azeredo 1972: 10), que é o após da II Guerra Mundial, quando Angola, “terra vulcânica, mas de um vulcanismo activo”, tomou “novos rumos” (Azeredo 1972: 10) com novos problemas sociais e culturais:

No seu mar de milho, não ergueu ilhas fantásticas ao alto para, de repente, as fazer mergulhar em fundos abismais?

E, com o desequilíbrio financeiro, veio a inflação. Pelo que custava hoje dez pediam amanhã vinte ou quarenta. Um mundo de ideias novas, convulsas, noutro, parado, renitente e velho! Daí choques tremendos…

Nos sobados, também sopravam ventos contrários. Ninguém queria ser escravo… (Azeredo 1972: 10).

O Mato gira em volta de Helena, filha do Dr. Brito e enteada de D. Maria, e do empreendimento que a família pretende erguer no mato: uma fazenda na Serra do Sumi. A fazenda provoca, ao longo do romance, a reflexão sobre a colonização portuguesa, sobre o papel do homem e da mulher no espaço colonial, especificamente no “mato”, sobre relações raciais, civilizacionais, laborais e geracionais.

Na narrativa ficcional, a mão-de-obra negra “recrutada” para a construção da fazenda diminui de dia para dia, deixando o mestre-de-obras Constantino furioso e avesso à maquinaria que o patrão Dr. Brito propõe usar – “Era a sua [de Constantino] mania. Homens, homens, muitos homens. (…) As máquinas! As máquinas! Havia lá nada como o

braço humano! Essa era a verdadeira, a única máquina, a mais perfeita máquina!” (Azeredo 1972: 20).

Vagarosamente, a obra prossegue sob o olhar atento da família Brito, sobretudo de Helena, que anseia criar qualquer coisa do nada (Azeredo 1972: 25). O mato, para a jovem mulher, é sinónimo de liberdade: “Gosto disto a valer! Até se respira melhor aqui. Só este ar leve e fresco que nos enche os pulmões! (…) Antes a liberdade do Mato que o luxo da cidade. Mil vezes” (Azeredo 1972: 25). Helena encara a nova flora e fauna como “mundo novos”, “plantas e bichos tão diferentes dos que vira até ali”, da mesma forma observa “os próprios homens com seus usos e costumes que, por serem primitivos e diversos dos seus, nem por isso deixavam de ser muito interessantes” (Azeredo 1972: 27). A opinião maravilhada da jovem contrasta com a da madrasta, D. Maria, que vê o mato como um embuste:

Agora és tu, Lena, uma rapariga inteligente e viajada, que te deixas contaminar pela mesma obcecação?... Aceitas o baixo nível de vida a que o Mato obriga, com a alegria de quem entra num paraíso?... Só de visionários! Pois não vês que daqui em diante teremos por todos os lados unicamente paus e pretos? É simplesmente horrível!... (Azeredo 1972: 26).

Na verdade, Helena passa também pelo “terrível ‘cafard’” ao pensar viver no mato, longe da metrópole, sobretudo de Lisboa, longe dos “bons teatros e cinemas”, da “boa música”, longe da vida “intelectual, risonha e divertida”, como os seus vinte e dois anos podem aspirar. Em Angola, não é viver, existe uma “ânsia desmedida de ganhar dinheiro” que faz esquecer as saudades da terra metropolitana (Azeredo 1972: 40-42). Apesar disso, a flora e a fauna prendem a atenção e ocupam um lugar predominante nos momentos descritivos da narrativa de Azeredo. Viver no mato, segundo D. Maria, é sentir o peso do isolamento e tristeza da vida primitiva de limitados horizontes (Azeredo 1972: 63). Depois de ver passar a doença (a “Espanhola”) à porta, longe dos médicos e dos medicamentos, e depois de presenciar grandes tempestades, a esposa do Dr. Brito vive em “intensa melancolia”. Em contrapartida, a flora do mato deixa as mulheres maravilhadas, sobretudo Helena:

Que lindas as mutatas carregadas de cachos lilases debruando clareiras! E as gardénias brancas picotadas? Os amarílis cor-de-carne com laivos escarlate e as ‘mirábilis’ dos altos, vermelho gritante, de unhas cor-de-açafrão salpicando o mato de alacridade? E tantas, tantas outras flores ugnoradas e sem nome que apetecia colher às braçadas: umbelíferas, rosáceas em cruz… (…) As árvores, nocheiras, sambas, paus- ferro de manchas esbranquiçadas pelos troncos, estavam todas empenachadas ou cobertinhas de penugem macias pelos cimos. Vagalhões de verdura, cobriam a podridão.

Mas mesmo o verde se tornava maluco; escuro e claro, todo marchetado ou borratado. Derramava-se em cataratas… Eram verdes os morros, as montanhas, as baixas e as anharas.

– O mato é bom, agora! – dissera Lena, uma tarde (Azeredo 1972: 66).

A empreitada continua e começam a surgir as primeiras reflexões em torno das questões raciais ou da relação entre brancos e pretos. O preto é considerado pelos homens brancos “uma criança grande”, preguiçoso e ladrão, mas é o próprio preto de hierarquia superior que castiga o prevaricador: “– Não tem vergonha, patalão. Eli rouba sempre; precisa chicote mêmo!” (Azeredo 1972: 29). A função do branco é contrariar a selvageria que reina no mato. Atente-se às palavras que metaforicamente Dr. Brito parece proferir “– Repara, minha filha, que terra parece esperar serenamente… E que espera ela? Sim, que espera de mim, diz? Que a liberte das raízes selvagens, não é?” (1972: 32). Ao que acrescenta poder transformar aquela “paisagem monótona em beleza” e a “paz triste em orgulhosa fecundidade” (Azeredo 1972: 32):

– É só esventrar a terra com as charruas, acordar este solo e sacudi-lo para que se desentranhe em frutos e pão. Lançando os germes de uma vida nova mais útil à humanidade, não aproveitarão todos do nosso trabalho e do nosso sacrifício? A Pátria, os pretos, mulatos e brancos? Ora digam?

– Oh! Pai! Como fala bem! Quem dera que as suas palavras fossem escutadas pelos do Governo! (Azeredo 1972: 32).

Entre o fervilhar de braços, as enxadas em punho, a construção da fazenda avança. À sua semelhança, só de maneira árdua e persistente é que, segundo Dr. Brito, “entrará a civilização em Angola, quando em cada quimbo houver uma escola e o português, branco ou preto, se agarrar à terra como deve ser e der exemplo”, porque “até lá, Angola será sempre o Eldorado, onde meia-dúzia de homens, por assim dizer, buscam a celebérrima árvore das patacas” que já muitos abanaram (Azeredo 1972: 34). Dr. Brito defende junto dos poderes públicos a proteção e o auxílio dos pequenos fazendeiros, mas a resposta é “que é preciso muito cuidado… muita política indígena… a Sociedade das Nações… os outros países”, argumentos menores para a “maior necessidade de todos os povos comerem” (Azeredo 1972: 34). Os entraves ao progresso de Angola são inúmeros, mas os maiores são a burocracia da administração e a falta de trabalhadores (negros). Dr. Brito queixa-se que a burocracia entrava tudo, “requerimentos sobre requerimentos, papel selado e mais papel selado, entrevistas e canseiras sem fim, cambriquites e camisas, rações e sabões, tabaco e medicamentos… tudo muito certo e a que o trabalhador humanamente tem direito”, o problema surge quando há a fuga dos “contratados”, roubando a ferramenta e as mantas.

Lamenta ainda que nos “contratos”, “ai do europeu se falha o sabão! Ao preto só competem direitos” (Azeredo 1972: 35). Aqui a “mãe preta” é acusada de ser a causadora da pouca vontade de trabalhar do homem preto. Segundo o Dr. Brito, “a ideia de que o trabalho agrícola pertence à mulher e ao escravo faz do nativo um ser geralmente avesso ao progresso” (Azeredo 1972: 36).

Uma conversa entre “contratados” demonstra a relação laboral existente, do ponto de vista do Outro, de um quimbar repatriado de S. Tomé (Irunga), um “frente de guias achinesadas” e outros empregados:

– O branco, sim, é que come bem! – disse em quimbundo. Por isso dá tanto trabalho ao preto. Não é para brincadeiras… e é muito duro quando aperta o sol. A esta hora, no quimbo, os parentes estendem-se nas esteiras e dormem ou fazem cortiços à sombra…

– Depois, ele (…) torna-se insuportável. Quer sempre mais terra, mais terra. P’rá quê? A barriga dele não é como a nossa?... Tem mas é grande ‘chipurulo’. Nem dorme a pensar no castigo do preto. Perguntem ao Ventura, o criado dele… diz que o patrão escreve no papel os serviços com que nos há-de moer no dia seguinte… P’rá não esquecer!...

– Que queres? – disse outro – Agora a terra é deles…

– Está bem. A terra é deles e é nossa. Patrão não tira terra do arimo; patrão cava o mato. E quando tira o arimo, se você não ficar no meio das terras dele, paga ou da outra terra bem arranjada. Não rouba nada você.

– Pois sim, mas o preto precisa de descanso. Precisa de comandar as mulheres e os filhos nas lavras; de caçar, de fumar e de pôr os cortiços, se não quiser morrer com sede.

– Você estar a cantar muito, mas espera que o branco ensina-te mesmo a conversa…

– Preto não tem no escravo – resmungou outro. O branco no terra dêli cava o chão. Não tem comida, porque o terra é próbi. Eu viu mesmo, no Puto; eu sábi mesmo. E é por isso qui vem obrigar o preto a trabalhar. Tudo só siriviço! Só siriviço!

– Mas antão que quer você? Trabalho não é escravo. Pra que veio? Não foi p’ra ganhar dinheiro? E o patrão num paga bem? Se não quer, vai embora, homem! Embora, homem! (Azeredo 1972: 81).

As opiniões dos empregados sobre o trabalho divergem, mas Irunga tenta fechar a discussão questionando: “– És mesmo matunto! Então não vês que o patrão está a enterrar o dinheiro na terra? Que fazes ao que ganhas?”. Logo surge a questão da propriedade da terra:

– Mas tu disseste que o mato é do branco e o mato é nosso. Nós já cá estávamos quando o branco veio.

– Não sábis nada, homi! Nós viemos no terra, eles vieram no mar. São ‘calunga’. E esta terra também era a nossa. Quem julga você qui pôs o nome Gandalacaué na Pedra Grande? Os Quimbundos ou os Gandos? Os sèculos dizem que foram os Gandos. E o branco tem mais força. Sábis porquê? Está sempre a trabalhar e tu só tens muito conversa no jango, só quéris dormir… (Azeredo 1972: 81-82).

Para terminar a discussão, Irunga disse em quimbundo, para que todos entendessem: “– O branco junta milho e compra bois; tu compras conhaque, fazes quimbombo e bebes o milho todo. Não tens uma cabra. Não é verdade? E passas fome…Que queres? A culpa é tua. Olha os Gandos… Têm muitos bois…” (Azeredo 1972: 82).

A relação laboral entre branco e preto se não funciona, a culpa é atribuída ao alcoolismo e à preguiça do homem preto. Em comparação com outras tribos africanas, o homem quimbundo demonstra, culturalmente, dificuldades no labor da terra, uma vez que, nas palavras do empregado, “a enxada é para as mulheres e para as crianças e os escravos. Homem não quer enxada mesmo. Só quéri qui deixa ele no quimbo sossegado” (Azeredo 1972: 82).

Igualmente entre os homens pretos surgem as diferenças culturais. Irunga, de S.Tomé, distingue-se dos restantes “irmãos”, que considera “bichos”: “– Bichos? Chamas bichos aos teus irmãos? – Não, patrão, eu não é irmão dêli. Eu ser ‘santomé’. Santomé é gênti mesmo. Santomé sabe… Bicho não sabe nada” (Azeredo 1972: 83). O desenvolvimento de Angola, segundo Dr. Brito, depende de uma estratégia governativa consolidada – “Que se declare de uma vez para sempre o caminho a seguir” – e da mudança de pensamento da população masculina, que insiste continuar a depender da mulher para cultivo de terras.

Também para os brancos, a ida da família Brito para o mato, “para mais de 100 metros de altitude e a quatrocentos quilómetros do litoral” (Azeredo 1972: 46), causa algum espanto na cidade, pois não seria por necessidade financeira que esta “família da alta” se mudara. A coscuvilhice, a inveja ou a curiosidade sórdida apoderam-se dos habitantes das cidades vizinhas, que são capazes de fazer uma visita para verificar “as grandezas que surgiam do seio da terra, como por milagre” (Azeredo 1972: 47). Gera-se a discussão em torno do empreendimento agrícola que só os corajosos se atrevem a fazer. Segundo o Dr. Brito, “se ninguém tivesse a coragem de enterrar dinheiro na lavoura, ainda agora estaríamos a mandar vir os grelos e as batatas da Metrópole”, que é exclusivamente vantajoso para os comerciantes. É desta forma que o empreendedor Brito entende fazer o “decantado Portugal”: trabalhando o solo, dando exemplo a brancos e pretos e ensinando-os (Azeredo 1972: 48). A voz da razão e da justiça encontra-se na figura de Dr. Paulo Brito, que tenta amenizar a relação entre capatazes de obra e os empregados pretos: “– Reconheço que você [Constantino] é um bom empregado, mas nem tudo se consegue com teimosia. E olhe, ser temido é bom, mas a estima dos que estão abaixo de nós é a melhor ajuda no trabalho. E

coisas da Fazenda correrão sempre melhor se você [Constantino] tiver cada vez mais paciência com o pessoal, quer branco, quer preto” (Azeredo 1972: 85). O conflito entre brancos também está presente, sobretudo quando diz respeito às habilitações literárias de cada um: “– Ah! Que se eu [Constantino] pudesse, senhor doutor! Nenhum outro branco poria pé na fazenda [mas] nunca aprendi a ler… Estou dependente do Águas… Isso mais que tudo me irrita”. Mais conflituoso se torna quando um branco se sente “inferiorizado perante tantos pretos que lêem e escrevem” (Azeredo 1972: 86). Já Dr. Brito, quem mais apregoa tolerância entre as raças, não tolera a contratação de homens quiocos: “– Quiocos! Só por escárnio! E que vou eu trabalhar com semelhante gente, não me dizem? Ao fim de dez anos, talvez saibam fazer alguma coisa…” (Azeredo 1972: 94). À chegada do pessoal quioco contratado, Dr. Brito verifica que “lhe tinham mandado vadios e malandros da pior espécie, de que os chefes indígenas procuraram desfazer-se” e teme que o poder governativo pretenda que a Fazenda civilize “a escumalha de uma raça já de si das mais atrasadas do mundo”, pois já “no tempo da borracha, os quiocos viviam quase que exclusivamente das pilhagens e do crime” (Azeredo 1972: 145). Por outro lado, segundo Helena, os quiocos são adversos à “civilização” e “refractários a qualquer influência estranha”, recusam tratamentos médicos, “têm medo de tudo, até das nossas casas… e dos muros do jardim”; também os negros de outras tribos “escorraçam-nos como cães e tudo o que lhes acontece de mau provém deles [dos quiocos]”( Azeredo 1972: 149).

O dia da inauguração da fazenda do advogado oferece um retrato da alta sociedade branca de Angola, assim como os usos e costumes adaptados ao clima africano: “– Achas bem oferecermos um pic-nic ao governador? (…) Não será melhor comermos aqui em casa?” (1972: 95). O homem, o Dr. Brito, dirige os preparativos, embora sejam as mulheres, D. Maria e Helena, as responsáveis pela organização da festa: “– Em África, é assim mesmo! Tudo recai sobre nós, mulheres; as mais pequeninas coisas têm de ser vigiadas, desde a limpeza, aos cozinhados, doces e bebidas” (Azeredo 1972: 96). Num momento solene, cumpre ao governador cortar a fita simbólica da casa principal, onde “em cada coisa se notava elegância” apesar de “tantas léguas da civilização”: cortinas, jarras de flores, bordados, plantas exóticas e europeias, cadeiras de corda da índia e de verga da Madeira, quadros nas paredes, pratas e cristais, atoalhado antigo de Tenerife (Azeredo 1972: 97). A atenção vai para a salinha de leitura, “com uma pequena biblioteca de bons autores portugueses e estrangeiros”, mas sobretudo para o quarto de Helena: “Era tudo branco e cor- de-rosa; as flores das cortinas e as flores das jarras, os cretones dos bancos nas janelas e dos

dois ‘poufs’, os bordados, a moldura do espelho de toilette, e até a cama, uma cama de ferro larga e baixinha com as cabeceiras trabalhadas” (Azeredo 1972: 98).

No decorrer da inauguração, o Dr. Brito elogia o trabalho dos empregados brancos e pretos (os voluntários humbes, camessequeis, hanhas e santomistas), apesar de alertar ao administrador da circunscrição que não pretende pessoal quioco. O problema da contratação de pessoal está longe de ser resolvido pelas instâncias superiores, o alto comissário quer restringir a mão de obra, o que, segundo o fazendeiro, “mata Angola, mata-nos a todos nós, brancos e pretos” (Azeredo 1972:103), pelo que sugere que se faça como os ingleses e reclama os mesmo direitos “em casa” que o estrangeiros: “Porque é que os portugueses não poderão contratar trabalhadores livres, legalizados, pagos e bem pagos, se os próprios Ingleses vêm buscar para as minas do Rand e para o campo levas e levas de Moçambicanos portugueses? E Angolanos?” (Azeredo 1972: 104):

E não vão tantos portugueses contratados para o Brasil, o Canadá, os Estados- Unidos da América do Norte e para a França? Depois da Grande Guerra quantos lá não ficaram? Antigamente até iam galegos fazer as nossas vindimas do Douro e ainda hoje os ceifeiros espanhóis ajudam nas ceifeiras alentejanas (Azeredo 1972: 104).

O advogado pretende o “sonho realizável” de tornar a fazenda numa colónia dentro da colónia angolana, determinando assim o significado de colonizar à semelhança do Brasil. Segundo ele, “Angola será um segundo Brasil, um cadinho onde todas as raças se fundirão” (Azeredo 1972: 113).

Por acaso colonizar não será a palavra apropriada para quem vai ocupar a terra de ninguém? Porque é preciso ver que entre nós tirar a terra cultivada pelo preto é crime grave. E que será colonizar? Não é fundir duas civilizações numa só, disso resultando um todo homogéneo? Cada país terá de criar uma vida que, do ponto de vista moral, cultural e económico, seja reflexo dos que estão e dos que vêm. Olhe o Brasil! (Azeredo 1972: 102-103).

Helena torna-se parte interessada do “sonho realizável” do Dr. Brito. Longe da Metrópole, da qual sente, no dizer de D. Maria, um enorme “cafard”, apega-se ao trabalho e ao estudo agrícola. Esta “masculinização” não impede o sonho de casar, apesar de envolto de vários receios, nomeadamente a concubinagem; porque as mulheres negras devem “ter algum encanto especial” para que os homens europeus troquem a família branca pela família de cor (Azeredo 1972: 124). Muitas vezes a mulher branca “insinuante, instruída e artista” suporta a “pesada cruz” de ver o marido dividido, na mesma cidade, entre um lar branco legítimo e outro preto, ilegítimo. O contrário também acontece, as “amantes brancas”

indignam de igual forma a jovem mulher. Apesar de tudo, mas sem defender o homem branco, Helena compreende que no “meio da gente primitiva e de batuques desbragados” ele sente-se só e por isso procura apoio emocional na “ambassi” preta, não fosse ela “mãe dos seus filhos, que o amparava em tudo, desde cozinhar e coser, conforme podia e sabia, até cavar a terra, sustentá-lo e tratá-lo nas doenças” (Azeredo 1972: 125). A mulher preta é “vítima do homem preto porque tem de o sustentar, vítima do homem branco…porque se sente inferior a ele”, mas o homem branco “ergue-a, dá-lhe personalidade e passadio melhor”, enquanto o homem preto a considera ser inferior; apesar de se libertar “se não lhe dá aquilo a que tem direito” (Azeredo 1972: 128). Segundo a narrativa, as mulheres pretas são “femininas como quaisquer outras, com os mesmos instintos, os mesmos defeitos e as mesmas paixões. Talvez mais ciosas e sensuais, talvez, mas humildes no seu destino exclusivo e deprimente de fêmeas e escravas da terra” (Azeredo 1972: 128-129). Helena lamenta a condição feminina e espera que um dia a mulher negra obtenha “o seu resgate, como o obteve a branca. E será livre!” (Azeredo 1972: 183).

Na visão de Helena, reforçada pela da D. Maria, o homem preto também sofre de discriminação, sobretudo na cidade, onde olham o preto “como criado, ‘chauffeur’, jardineiro e carregador”, somente “pelo lado do seu trabalho e inferioridade de cultura, sem pensarem que [são] homens como quaisquer outros pelo mundo, com carácter próprio e o seu orgulho” (Azeredo 1972: 125). Já na selva, o preto, passando “do cenário civilizado para o meio nativo, transforma-se por completo”, demonstrando uma “personalidade bem vincada”, é mestre-pedreiro, mestre-charruador, mestre carpinteiro, mestre-ferreiro, mestre- capataz, “colaborador assíduo e companheiro imprescindível nas horas boas e más” (Azeredo 1972: 126). As mulheres da fazenda alegam compreensão e perdão pelas falhas que os pretos possam ter, pois na maioria das vezes são fruto da ignorância. A violência contra o povo negro é da mesma forma condenável e a injustiça é desumana. A abertura ao Outro com justiça é advogada pela família Brito, que considera que “criatura que se isole como super-civilizado e se fechem si próprio… perde-se”, acabando por se matar (Azeredo 1972: 126).

Depois de algum tempo de vivência no mato, Helena começa por se interessar pela cultura dos nativos, “um mundo novo inexplorado, um mundo curioso, interessante e vasto”, observa e perscruta a alma dos outros, “uma multidão de seres [que tem] uma vida sua, uma mentalidade sua. Diferente é certo, mas tinha-a” (Azeredo 1972: 139). A descrição é clara:

Ali na selva e em constante convívio com os pretos, começou a interessar-se [pelas] almas primitivas, [que] como primitivos pensavam e agiam. Sofriam, tinham paixões,