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Principais contributos para o estudo do corpus – o estado atual da questão

Reis Ventura e Guilhermina de Azeredo não têm granjeado lugar no âmbito das investigações académicas nem pela crítica das Ciências Sociais e Humanas, uma vez que os estudos sobre estes autores são escassos ou nulos, existindo somente breves apontamentos em capítulos referentes à literatura colonial. Já Castro Soromenho tem logrado alguma notoriedade pela crítica portuguesa e angolana, essencialmente aquando do “retorno” aos Estudos Africanos que ressurgiram com nova roupagem nos anos 80 e 90 do século XX. Não havendo lugar a uma revisão do estado da arte dos dois primeiros, por falta de bibliografia passiva, há, no entanto, a necessidade de uma revisão bibliográfica do estado da questão em torno de Castro Soromenho. Assim, cabe a este espaço mapear o estado da arte sobre o escritor, referido sempre como um dos precursores da literatura angolana, reivindicado ora como escritor angolano ora como escritor português. Talvez por esta razão, um dos seus primeiros críticos, Manuel Guedes dos Santos Lima (1975), considerou-o um escritor “mestiço”, uma vez que “trilhou os caminhos mentais de um e outro povo [português e angolano]” (Lima 1975: 169); ou ainda, na opinião de Cândido Beirante, um escritor “intervalar” (Beirante 1989); ou então, por que não atribuir-lhe um caráter pós-colonial, se o seu testemunho e pensamento transcende a colonialidade lusotropical da grande maioria de outros escritores de temática africana? Para levar a cabo esta proposta de análise cultural da colonialidade e pós- colonialidade do corpus, pretende-se, neste primeiro capítulo, expor os contributos já apresentados por outros investigadores, para o estudo da obra de Fernando Monteiro Castro Soromenho, por ser este o ponto de partida desta investigação.

Situar Castro Soromenho no panorama cultural português ou angolano (anexo 4) tem sido uma das preocupações dos críticos dos dois países. Oscilando entre a literatura colonial e a literatura angolana, as análises divergem assim como os argumentos. No âmbito desta investigação, a reflexão em torno deste autor parte da apresentação de dados biográficos37 essenciais, por se considerar complementares ao estudo do pensamento

37 Maria Perpétua Morgado Gonçalves (1971), apresenta um trabalho de crítica literária, em que coloca de

parte a relação entre o autor e a obra, sendo esta uma abordagem desnecessária, segundo a autora, uma vez que, “a obra não traduz directamente a personalidade ou experiências do escritor, antes pelo contrário, ela pode ser o próprio fantasma que compensa uma vida negativa”37 (Gonçalves 1971: 1) ou a haver relação

“não é uma relação pontilhista que somaria semelhanças parceladas, descontínuas e ‘profundas’, mas pelo contrário uma relação entre todo o autor e toda a obra, uma relação das relações, uma correspondência

soromenho, tendo em conta o período e contexto político-cultural vivido, o império colonial português. Aliás, é de todo importante a reconstrução da trajetória biográfica uma vez que, no entender de Pallares-Burke, “para se entender um intelectual no seu próprio tempo e discutir o modo como ele pode ter dado continuidade e ao mesmo tempo transcendido o mundo cultural que herdou, é imperativo um esforço de descrever o campo intelectual ao qual ele pertencia” (Pallares-Burke, 2005: 19). Para a biografia dos autores que compõem o corpus, este estudo limita-se a apresentar factos e documentos concretos, assim como a auto-imagem que traçam de si mesmos, sobretudo no caso específico de Castro Soromenho.

Fernando Monteiro de Castro Soromenho (1910-1968), filho de pai português e de mãe cabo-verdiana de origem portuguesa, nasce em Moçambique. Cedo, com menos de dois anos, viaja até Angola onde permanece até aos seis anos, altura em que os pais decidem enviá-lo para Portugal, onde frequenta a escola primária e o liceu até ao quinto ano. Em 1925, Castro Soromenho regressa a Angola onde completa o liceu, na então Escola Primária Superior Artur de Paiva, onde conheceu as lições de Gastão de Sousa Dias, autor imprescindível no conhecimento da história colonial (Faria 2006: 62).

De junho de 1928 a janeiro de 1929, exerce funções numa das agências de recrutamento de mão-de-obra da Companhia dos Diamantes, em Vila Luso, Distrito de Moxico. Passa os oito anos seguintes nos sertões do leste de Angola enquanto Aspirante e, mais tarde, Chefe de Posto do Quadro Administrativo de Angola. Contudo, descontente com tal futuro como “um usurpador obstinado, um falhado, um carcereiro entre degredados” (Faria 2006: 63), dedica-se ao estudo etnográfico dos nativos apesar de padronizado pela cultura colonial. Assim, aos 22 anos de idade escreve os primeiros contos, os quais, compilados posteriormente, deram origem à primeira publicação, Nhári, o drama da gente negra (1938).

O escritor, ao contrário da maior parte dos colonos, lia, estudava e inquietava-se com a ignorância, pois sabia que “as suas raízes não estavam no passado mas na meta que procurava alcançar” (Faria 2006: 63). Estes doze anos de vivência em Angola são, no entender de Mário Pinto de Andrade (1968), essenciais da existência do escritor. É a partir daqui que a obra soromenha se constrói na manifestação dos dramas da comunidade africana durante a ocupação portuguesa e na forma como a colonização pode des-civilizar o colonizador. Pinto de Andrade depreende que Soromenho capta na sua juventude

neste sentido, a autora desta investigação não prescinde de alguns dados biográficos de Castro Soromenho para elucidar a génese da obra.

imagens de uma África colonizada para as denunciar, posteriormente, numa postura amadurecida, mas irónica e apaixonada:

la partie essentielle de son existence se déroula en Angola, parmi les Loundas et Quiocos. Toute son œuvre porte témoignage des drames de ces communautés africaines aux prises avec l’occupation portugaise. Pour avoir été lui-même un fonctionnaire de l’administration coloniale, il sut démontrer le mécanisme par lequel la colonisation en arrive à déciviliser le colonisateur. Dans les circonstances historiques de son temps, il ne pouvait que capter les éléments de cette réalité pour ensuite la dénoncer. Castro Soromenho: une ironie profondément humaine, une passion sous-tendue par l’ardente clameur de l’Afrique (Andrade 1968: 36).

No ano de 1936, Castro Soromenho põe fim à carreira administrativa e fixa-se em Luanda, onde é jornalista no Diário de Luanda e colaborador do Jornal de Angola. Ainda neste ano, publica a coletânea de contos, Lendas Negras, nos Cadernos Coloniais (número 20). Em 1937 abandona África com doze anos de vivência angolana junto dos Lundas e dos Quiocos, e ruma até Portugal.

Em Portugal, aquando da sua chegada, o jornal Humanidade acolhe o escritor e é, pouco tempo depois, nomeado chefe de redação. Ainda neste ano, viaja até ao Brasil como correspondente especial deste jornal38, o que lhe permite privar com diversos intelectuais

brasileiros. Em 1938, de regresso ao país, o escritor-jornalista não tem vínculo efetivo na imprensa portuguesa, pelo que trabalha como correspondente do jornal literário D. Casmurro do Rio de Janeiro. Nos meios jornalístico e literários lisboetas, Soromenho conhece outros pares, “quase todos mais velhos e desenraizados, agrupados em torno de um ideário anarco-sindicalista” (Faria 2006: 63), tais como Ferreira de Castro e Julião Quintinha.

Castro Soromenho abandonou o jornalismo para se dedicar exclusivamente à literatura de ficção e à investigação histórica e etnológica. A atitude intelectual do escritor perante a ditadura, que governa Portugal e as Colónias, salienta-se por uma crítica frontal, escalpelizadora, tanto a nível social como a nível cultural, com particular incidência sobre a realidade coletiva dos povos africanos, questionando os tabus do etnocentrismo cultural europeu e, sobretudo, os do colonialismo português. O regime de Oliveira Salazar veio a ordenar a apreensão de obras suas, nomeadamente Terra Morta (1949), pela polícia política e força-o ao exílio, primeiro em França (Paris), depois nos Estados Unidos e por fim no Brasil. A obra soromenha ganha projeção além-fronteiras, sendo traduzida e

38 Meses mais tarde, o jornal é suspenso pelas autoridades portuguesas e o seu director Viana de Almeida

publicada em França, Alemanha, URSS, Grécia, Argélia, Hungria, Checoslováquia, Itália e no Brasil.

Em França, em 1962/64, o escritor trabalha como leitor de português e espanhol na editora Gallimard e colabora nas revistas Présence Africaine e Révolution. Nestes anos, Castro Soromenho viaja até à União Soviética (1962 e 1963, convidado para o Congresso da Paz) e até à Argélia; e escreve o seu último romance, A Chaga, concluído em 1964 e que será publicado postumamente no Brasil. Frequenta ainda um curso de Sociologia na Universidade de Sorbonne com Georges Balandier39.

Ainda durante o exílio francês, Castro Soromenho frequenta a casa do seu amigo angolano Inocêncio da Câmara Pires que é, na época, o “assumido embaixador dos movimentos de libertação em Paris” (Faria 2006: 62). A residência de Câmara Pires é o ponto de encontro das individualidades que fogem de Portugal e das Colónias, principalmente aquelas com relações com o Movimento Popular de Libertação de Angola – MPLA. Pela residência passam Agostinho Neto, Marcelino dos Santos, Mário Pinto de Andrade, Carlos Serrano, Paulo Teixeira Jorge, entre outros. À época em que escreveu esta trilogia, Castro Soromenho vivia em exílio, longe da metrópole e da colónia Angola, mas acompanhando aqueles que constroem a imagem do país africano enquanto nação com o subsídio da literatura. Na verdade, Soromenho é considerado um “curioso caso no terreno da nacionalidade” africana (Chaves 2005: 87) pelos traços biográficos: apesar da estadia por diversos de países, Castro Soromenho optou por Angola, em particular a região da Lunda, como marca de identidade e onde vai focar o seu olhar de escritor. Mas a obra de Soromenho não se circunscreve somente à africanidade ou angolanidade.

Em A formação da literatura angolana (1851-1950), onde reflete a par de outros assuntos sobre a literatura colonial, Mário António Fernandes de Oliveira (1997) refere “a singularidade da obra de Castro no quadro daquela literatura de onde não deve sair e único lugar onde pode ser compreendida” (1997: 230). No entender do autor, Soromenho situa-se “exactamente no plano da literatura colonial” embora “as leituras dominantes das suas últimas obras o coloquem na linha dos escritores portugueses mais próximos do

39 Em 1964/65, o escritor trabalha como investigador de literatura científica portuguesa sobre África no

CNRS (Centre National de Recherche Scientifique), na secção de África Negra do Museu do Homem, sob orientação de Michel Leiris39, antropólogo e escritor francês, responsável pelo Departamento de África do

Museu de Etnografia do Trocadero (Paris), mais tarde designado por Museu do Homem. Nos Estados Unidos, e de passagem, leciona na Universidade de Wisconsin e integra a comissão para a seleção de material para o curso de Língua Portuguesa e Literatura Luso-Brasileira e rege o curso de Literatura Portuguesa, na ausência do professor catedrático Machado da Rosa. No Brasil, na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de São Paulo, é um dos membros fundadores do Centro de Estudos Africanos.

anticolonialismo” (Oliveira 1997: 229). Não deixa de ser verdade se se tiver somente em conta as obras da primeira fase de cariz etnográfico, tais como Imagem da Cidade de São Paulo de Luanda (1939). Também o facto de ter sido repetidamente premiado pelo Concurso de Literatura Colonial, promovido pela Agência Geral das Colónias (AGC), e, como afirma Oliveira, “porque se apresentou a concurso, um concurso dedicado a uma produção literária que teve quase exclusivamente a ver com a circunstância colonial angolana” (1997: 230), faz com que alguns críticos o circunscrevam unicamente à literatura colonial. Convém referir que a segunda fase de Soromenho, a partir de 1949, aquando da trilogia de Camaxilo, só se concretiza “em consequência directa do que lhe ficou na retaguarda” (Margarido 1980: 238). Por isso exige-se, para uma classificação mais certeira, uma visão global da obra, onde parece existir uma evolução e um amadurecimento intelectual e moral por força de circunstâncias exógenas.

A obra Castro Soromenho, um escritor intervalar (1989), de Cândido Beirante, apesar de estar inserida no âmbito dos estudos literários e de praticar uma análise literária baktiniana, é um trabalho que se revela essencial para dar início à presente investigação. Crê-se que a análise elaborada por Beirante – na perspectiva do conceito de intervalaridade ideológico-estética – pode ser complementada pela análise a que este trabalho se propõe, o que vem enriquecer os estudos sobre Castro Soromenho, enquanto autor textual e sujeito pós-colonial.

Em primeiro lugar, importa expor o conceito de “literatura intervalar” que sustenta a tese de Cândido Beirante explanada na obra supracitada. Para o crítico, apoiando-se em Jan Mukarovsky, uma obra de arte possui sempre “uma dupla inscrição: uma no plano dos valores estéticos e outra no plano dos valores não-estéticos, a que redutivamente chamamos ideológicos (…); os valores ideológicos e estéticos reenviam-se e entrelaçam- se mutuamente em circularidade”40 (Beirante 1989: 18). Da mesma forma, qualquer texto

literário é intervalar no que respeita àqueles valores, uma vez que “oscila pendularmente – como lembra Aguiar e Silva – ‘através da tensão dialéctica instaurada pela necessidade de realização do código – necessidade de comunicação – e a necessidade de transformação, de negação e destruição parcial desse mesmo código – necessidade de informação estética” (Beirante 1989: 19). Parafraseando Umberto Eco, Beirante refere ainda que todo texto literário é, na sua essência e função, intervalar: “o texto é uma

40 A este propósito, Cândido Beirante aprofunda a “dupla inscrição” da obra de arte relembrando ainda

máquina preguiçosa que requer do leitor um árduo trabalho cooperativo para preencher espaços do não-dito e do já-dito, espaços, por assim dizer, deixados em branco” (Beirante 1989: 19). Aqui o papel do leitor é preponderante uma vez que existe cooperação entre o emissor e o recetor, onde o que é importante não é tanto a intenção do emissor, mas sim o que o texto manifesta e no que nele o leitor incorpora depois da leitura.

Apesar de a teoria de Cândido Beirante estar assente nos propósitos de Umberto Eco, Aguiar e Silva e Roland Barthes (entre outros), é em Mikhail Bakhtin e em Julia Kristeva que o autor vai encontrar a aceção de texto mais elucidativa: a concepção do texto como diálogo, ou seja, “todo o texto se constrói como mosaico de citações, todo o texto é absorção e transformação dum outro texto” (Kristeva apud Beirante 1989: 22). Por outras palavras, o dialogismo, como defende Bakhtin, entre dado texto e outros textos, “torna-o um eco ressoador” destes (Beirante 1989: 22), isto é, a noção de ideologema e intertextualidade – “A grande função do ideologema, graças ao modelo tabular da intertextualidade, é situar o texto no macro-texto da história e da sociedade” (Beirante 1989: 22). Assim, ideologema é “como uma pilha atómica donde irradia o carácter intervalar da unidade e diversidade da obra: única e irrepetível, mas, concomitantemente, múltipla e aberta a diferentes leituras pessoais e epocais” (Beirante 1989: 22). Em síntese, segundo Beirante, toda a obra “pode ser vista como resposta do seu criador, homem de um dado contorno social, aos estímulos ideológicos e estéticos da sua sociedade” (1989: 44).

Na tentativa de situar o escritor Castro Soromenho, Beirante faz uma aproximação ao texto soromenho nos aspetos ideológico e estético, antes de abordar o texto como texto semiológico, cultural, verbal e como narrativa. Para o efeito, afasta a possibilidade de qualquer intenção biografista do autor, visto que no enquadramento dos estudos ideológico-estéticos é inevitável a ausência do autor do texto. Citando Robert Escarpit, “a partir do momento em que a obra é publicada – o autor não pode modificar nem rectificar o seu teor, nem controlar o seu percurso, nem definir os destinatários, nem verificar a sua recepção, nem dirigir a leitura e a interpretação” (Escarpit apud Beirante 1989: 87). A mesma ideia de concepção da obra é firmada por Wolfgang Kayser, Michel Butor e ainda Julia Kristeva. Por exemplo, Butor considera que “não é o romancista que faz o romance, é o romance que se faz sozinho, e o romancista não é mais do que o instrumento da sua vinda ao mundo, o seu parteiro” (Butor apud Beirante 1989: 88).

Posto isto, o autor de Castro Soromenho, um escritor intervalar procede, em traços gerais, à descrição do corpus de Soromenho categorizando-o em três temáticas

coincidentes com os três momentos da dialética: tese, antítese e síntese. A tese, de conteúdo negrista atomizado de exotismo, diz respeito à vida dos negros antes da colonização na Lunda, com as obras Nhari (1938), Lendas Negras (1939), Noite de Angústia (1939), Homens sem caminho (1941), Rajada e outras histórias (1943), Calenga (1945) e ainda textos de caráter jornalístico ou etnográfico; a segunda temática é a antítese da primeira, ou seja, é a exaltação do pioneirismo heróico dos brancos em contexto colonial, com os textos principais Imagens da Cidade de São Paulo de Luanda (1939), A aventura e a morte no sertão (1943), Sertanejos de Angola (1943), A maravilhosa viagem dos exploradores portugueses (1946-1948) e A expedição ao país do oiro branco (1944). A síntese, a terceira temática, corresponde à “negação e superação das temáticas anteriores” apresentada nas obras Terra Morta (1949), Viragem (1957) e A Chaga (1970). Beirante é perentório na atribuição do epíteto de intervalar à obra soromenha – “pode atribuir-se o qualificativo de mestiça, culturalmente falando. Obra, pois, intervalar, por ser de quem é, escrita onde foi e, sobretudo, pelo conteúdo e expressão ideo-estética” (Beirante 1989: 89). O autor relembra outros escritores com o mesmo perfil, tais como Ernesto Marecos, Cordeiro da Matta e Maia Ferreira, onde se encontra “uma mestiçagem estético-literária, a nível sintáctico, fono-morfológico e, principalmente a nível lexical com os empréstimos recíprocos” (Beirante 1989: 90) de que resulta o angolonês, por exemplo. Aponta ainda, como sendo os precursores de Soromenho, Alfredo Trony, Assis Júnior e Óscar Ribas, cujo interesse pela problemática africana é comum.

Cândido Beirante dá enfâse aos últimos romances de Soromenho – Terra Morta, Viragem e A Chaga – que, além de revelarem uma linguagem intervalar, “constitu[em] o reverso do ‘romance do colono’, reclamado pela crítica lisboeta, nas recensões às da primeira ficção soromenha” (Beirante 1989: 712-713). De facto, verificando o percurso literário do autor entre a primeira publicação (Nhari, drama de gente negra) e a última (A Chaga), a obra alterna entre a “africanidade incipiente” e a “angolanidade dolorosa” (1989: 713), onde a denúncia do sistema colonial português se evidencia nas “personagens europeias ‘problemáticas’” (1989: 713). Desta intervalaridade surge a indefinição do lugar do autor nos panoramas literário e cultural ora de Portugal ora de Angola. Contudo, Castro Soromenho afirma que tudo quanto escreveu “de válido é africano, como africano é o seu autor”, apesar de ter escrito a grande maioria da sua obra em Portugal:

Africano nascido em Moçambique, mas medrado em Angola desde mal saído do berço, a Angola devo a minha vida de escritor. Quando em 1937 abandonei Angola, estava longe de vir a ser um escritor. Interessado em jornalismo, profissão que exerci largos anos, dele me ocupei. Foi aqui em Portugal que nasceu o escritor, depois de reviver a minha vida de Angola, fazendo tábua rasa de ideias feitas e dando-me conta de erros de interpretação originados pelo clima social vivido desde a infância numa sociedade em formação, heterogénea pela sua natureza, sem outras raízes que não fossem os seus interesses circunstanciais, e sempre marginal (Mourão 1960: 152).

Manuel Santos Lima reitera este “engajamento africano de Soromenho que se assume inequivocamente como escritor angolano e não ‘escritor moçambicano’ ou ‘escritor português de temática ultramarina’. Jamais ele desmentirá essa atitude” (Lima 1988:6), mesmo em circunstâncias políticas adversas na libertação de Angola, onde não lhe foi reconhecido “um lugar, o seu lugar” (1988: 6). Mas afinal qual é o seu lugar?

Ainda de acordo com Cândido Beirante, a obra soromenha “ocupa um lugar ou o elo intervalar na cadeia da produção literária angolana, entre o melhor da literatura colonial de temática angolense e a actual literatura angolana” (Beirante 1989: 715). Ora esta (de)limitação temporal torna-se demasiado vaga e ambígua nos tempos atuais41.

Onde acaba a literatura colonial e onde começa a literatura angolana?42 A ambiguidade

persiste.

O meio literário português dos anos 30 e 40 era atento aos problemas coloniais. Segundo António Faria, “havia escritores que enfrentavam a ignorância, a iliteracia, o fracasso inevitável, escrevendo romances com temas coloniais” (Faria 2006: 63), na esperança de se criar uma tradição literária no campo colonial. O Concurso de Literatura Colonial, promovido pela Agência Geral das Colónias, vem legitimar essa tentativa de tradição, mas o resultado é restrito a um pequeno grupo de escritores, no qual Castro Soromenho também está incluído43. Apesar de Soromenho ter sido premiado com Nhari

(1939), Homens sem caminho (1942) e Rajada (1943), não o impediu de ter visões contrárias à propaganda colonial e ao Estado Novo, o que o torna intervalar porque é um “homem ‘dividido’ intimamente entre a perspetiva europeia e a visão africana que

41 Segundo Pepetela, numa entrevista concedida a Rita Silva Freire, publicada na Revista Caju a 30 de

dezembro de 2011, a literatura angolana ainda não atingiu o auge esperado e poucos são os escritores que