• Nenhum resultado encontrado

Indisciplina da arquitectura

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Indisciplina da arquitectura"

Copied!
373
0
0

Texto

(1)

TESE DE DOUTORAMENTO EM ARQUITETURA, NA ESPECIALIDADE DE TEORIA E PRÁTICA DO PROJETO

[IN]DISCIPLINA DA ARQUITECTURA

Deriva ficcional para um enunciado didáctico,

resistente ao absurdo

Daniel Maurício Santos de Jesus

Presidente Reitor da Universidade de Lisboa

Vogais Doutor Pedro Burgaleta Mezo

Professor titular

Escuela Técnica Superior de Arquitetura de Madrid da Universidad Politécnica de Madrid Doutor Jorge Filipe Ganhão da Cruz Pinto

Professor catedrático

Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa Doutor José Duarte Centeno Gorjão Jorge

Professor associado

Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa Doutor Nuno Gabriel de Castro Nabais dos Santos

Professor auxiliar

Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Doutor José Carlos Pereira Lucas Callado

Professor auxiliar

Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa

Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa | 2014

(2)

I ÍNDICE Prólogo 1 Agradecimentos 8 Introdução 10 Método de análise 14

Escala e sentido da observação 15

Composição estilística do texto 17

Sumário 18

1. Enunciado do Problema 20

1.1 Geografia Conceptual 21

1.1.1 Contexto (Dia Presente) 21

1.1.2 Produto e Resto (Aporia) 28

1.1.3 Eficiência 33

1.1.4 Criação Destrutiva 38

1.1.5 A Ilusão Tecnocrática (da Neutralidade) 43

1.1.6 Pretérito Imperfeito 49 1.1.7 Tempo e Valor 52 1.1.8 Figuração 58 1.1.9 À Esquerda da Arquitectura 61 1.1.10 Carta de Princípios 67 1.2 Universidade 76

1.2.1 A Imaginação e a Universidade Pública 76

1.2.2 O Conhecimento Contratado 81

1.2.3 O Conhecimento Maltratado 88

1.2.4 O Conhecimento Já Tratado 92

1.2.5 O Conhecimento Intratável 95

1.2.6 O Conhecimento Partilhável 102

1.3 A Experiência Lectiva da Arquitectura 106 1.3.1 Da Arquitectura: Imaginação e Limite 106 1.3.2 A Especialização como Anti-Arquitectura 109 1.3.3 Prática Singular, Compreensão Plural 113

(3)

II

2. Estudos Precedentes 119

2.1 Enquadramento 120

2.1.1 O Estado da Questão 120

2.1.2 Esteticismo Produtivo 125

2.1.3 “Mies-en-scène”: A Linguagem como Ocultação 130

2.1.4 (Des) Politização Discursiva 136

2.1.5 Língua Técnica e Língua da Tradição 139 2.1.6 Linguagem, Legendagem e Tradução 147

2.2 Disciplina

2.2.1 Interpretação Revisitada de uma Utilidade 154

2.2.2 Âmbito Disciplinar 159

2.2.3 (In)Disciplina e “Pensamento Arquitectónico” 163

2.2.4 Sensibilidade e Conhecimento 168

2.2.5 Resistência: Emancipação e Moral 171

2.3 A Questão Moderna 175

2.3.1 A Arquitectura, da Arte à Política 175 2.3.2 O Determinismo Mecanicista e a Arquitectura 181 2.3.3 Problematização Moderna no Contexto do Ensino 188

3. Construção da Hipótese 197

3.1 Demarcação 198

3.1.1 Propósito 198

3.1.2 Limite para o Discurso 201

3.1.3 Inscrição Externa 204

3.1.4 Experiência Quotidiana do Espaço 207

3.2 Estrutura 209

3.2.1 Dispositivo Analógico Quadripartido 209

3.2.2 Campo de Observação 213

3.2.3 Semelhança: O Método do Coleccionador 217 3.2.4 Diferença: O Método do Imaginador 220

3.3 A Hipótese Ficcional 225

(4)

III

3.3.2 Modelo Ficcional 228

3.3.3 A Ficção e a Construção da Hipótese 233

4. Hipóteses Interpretativas 235

4.1 Hipótese de leitura I: Chasuble 236

4.1.1 A Deriva do Coleccionador 236

4.1.2 Do Fragmento às Categorias 239

4.1.3 Leitura Analógica: Piranesi 242

4.1.4 Metonímica: Faro Como Parte, Do Todo Moderno 245

4.1.4.1 – Categoria 1: Contexto 245

4.1.4.2 – Categoria 2: Fragmentos modernos 248 4.1.4.3 – Categoria 3: Expressão simbólica e

significado

251

4.1.4.4 – Categoria 4: Plasticidade e modelação das superfícies sob a luz

252 4.1.4.5 – Categoria 5: Oposição entre cidade

moderna e cidade tradicional

255 4.1.4.6 – Categoria 6: Disseminação tipológica 257 4.1.4.7 – Categoria 7: Leitura oblíqua, gradações

espaciais e dinâmicas

257 4.1.4.8 – Categoria 8: A figuração urbana baseada

na fachada abstracta

259 4.1.4.9 – Categoria 9: A estratificação do muro 260 4.1.4.10 – Categoria 10: A desconstrução do muro 263 4.1.4.11 – Categoria 11: A relação do plano de

fachada com a tipologia

264 4.1.4.12 – Categoria 12: O pormenor moderno:

invariantes técnicas e construtivas

266 4.1.4.13 – Categoria 13: Expressão e formalização

construtiva

268 4.1.4.14 – Categoria 14: Conclusão parcelar: a

“impossível” representação moderna

269

4.2 Hipótese de leitura II: Ulrich 272

4.2.1 A Medida do Cartesiano 272

4.2.2 A Simbolização do Labirinto 274

4.2.3 Elegia do Espaço Público 275

4.2.4 Espaço Matriz 278

(5)

IV

4.2.6 Conquista do Labirinto pela Razão Cartesiana 285 4.2.7 Soma da Hipótese de Leitura Ulrich

(MP + MV + MA)

292

4.3 Hipótese de leitura III: Bartleby 296

4.3.1 A Impossibilidade do Objector 296

4.3.2 Poética e Disciplina Maquínicas 297 4.3.3 O Controlo Disciplinar pela Máquina 301

4.3.4 Apagamento 304

4.4. Hipótese de leitura IV: Bartlebooth 308

4.4.1 A Imagem do Imaginador 308

4.4.2 Cenografia Silenciosa 311

4.4.3 Casa De Partida, Casa De Chegada 313

4.4.4 (In) Disciplina Didáctica 322

5. Conclusões 326

5.1 Alegoria 327

5.2 Ironia, Colisão e Absurdo 329

5.3 Arquitecturas Filmadas 332

5.4 Caracterização final 338

Bibliografia 341

Anexo I – Sinopse da Disciplina - Arquitecturas Filmadas 361

Anexo II – Sumários - Arquitecturas Filmadas 2012 365

(6)

1

PRÓLOGO

O Doutor é um homem muito instruído. Ainda não escreveu um único livro, por isso pode imaginar quão grande é o seu saber.1

Na comédia A Importância de Ser Earnest2

, Oscar Wilde resume num curto e definitivo parágrafo, o eloquente cónego Chasuble. Mas à margem da facilidade retórica que lhe concede, faz recair sobre a personagem a suspeita sobre o valor dessa erudição… indisputável.

Como todo o acto de nomear remete para uma analogia, a alusão à sobreveste sem mangas utilizada pelo celebrante no ritual eclesiástico – a casula – para nomear o ilustre Doutor desafia a natureza mítica em que se baseia o poder pastoral. O nome em questão, que evolui do francês antigo chesible, ou ainda do latim tardio casubla, não é porém exclusivo do hábito ou vestimenta, mas constitui também sinónimo de casa, afinal e por sua vez, revestimento arquitectónico que delimita o habitáculo primordial. A correlação estreita entre estes significantes, ao abrigo do uso instrumental de uma razão cínica3

, vem sugerir uma hipótese insólita: a de que Chasuble, ou outro Doutor de predicação semelhante, se poderia dedicar com sucesso significativo ao ensino da arquitectura.

O mote, colhido na predisposição irónica com que Wilde figura a sua personagem, serve para glosar o tema da erudição interdisciplinar complexa, que os estudantes de arquitectura enfrentam no contexto da sua aprendizagem. Um longo processo de tentativa e erro, cuja recomposição de saberes depende do voluntarismo de cada aprendiz, acaba por gerar um composto de conhecimento que os arquitectos “inventores da casa” – portanto, sósias reconhecíveis de Chasuble –, designam sintético. E se assim atende, será porque a síntese se dirige a uma finalidade concreta, que passa por publicitar um imaginário e construir a obra de arquitectura que melhor lhe corresponde (onde, a ordem dos factores não é casual).

Animado pelo propósito utilitário, que se afirma no “projecto” enquanto método necessário para “pôr-em-prática”, exige-se ainda do arquitecto uma capacidade narrativa abrangente, que incorpore a “correlação entre todos os factos”. Este requisito holístico, que colide a priori com a própria intangibilidade “do todo”4

, dificulta ao imaginador a tarefa de “comprovar o

1 “The Doctor is a man of uppermost erudition. He has never written a single book, so you can just

figure how immense his knowledge is.” Tradução da edição portuguesa.

2 Oscar Wilde, A Importância de Ser Earnest e Outras Peças, p. 324. Título original: The Importance

of Being Earnest.

3 V. Peter Sloterdijk, Crítica de la razón cínica. Ediciones Siruela, Madrid, 2003.

4 Suspeita-se a arquitectura enquanto “difícil tarefa do todo”, tal como a designa Venturi, por albergar

âmbitos tão distintos – até diametralmente opostos – quanto a imaginação e construção de “objectos de representação individual”, ou a responsabilidade de orquestrar um “suporte neutro comum”, capaz de acolher as infinitas diferenças.

(7)

2

acervo de conhecimento de que faz alarde”5

. Compelido a calcorrear um amplo espectro ontológico, facilmente descobre nas entrelinhas da erudição possível as imperfeições avulsas que forçosamente animam o discurso autodidacta: informação semi-digerida, contradição epistemológica, anarquia especulativa na argumentação.

Sem desvalorizar o original composto, que se percebe contingente ao saber próprio do arquitecto, – muito pelo contrário – subentende-se na descrição de Chasuble a “melhor analogia possível”6

para o inventor constrangido a justificar a sua invenção. Em particular, no caso da variante pedagógica do arquitecto, em que lhe cabe particularizar a acção conducente à obra, ao abrigo de uma razão comum. Porque só assim se garante o efeito reprodutivo que o ensino reclama.

Passe a ironia implícita na comparação, crê-se de facto que o carácter subjacente à personagem Chasuble faz uma correcta apologia da figura arquetípica do arquitecto: o indivíduo que esgrime conhecimento fundado nisto e naquilo, hierarquizado de acordo com a proposição que se lhe impõe, potencialmente isenta de uma sistemática comum entre pares. Esta figuração imaginada de um “folheador talentoso”7

, capaz de reconhecer nas coisas e nas representações evocativas uma natureza parcelar e fragmentária, e que depois anima com o sentido que lhe apraz, nada tem de depreciativo. Pelo contrário, o texto que se segue tentará explicitar razões pelas quais uma “erudição inefável” se impõe ao “domínio impreciso” do ensino da arquitectura. E que esta condição singular compreende, como derivada, a improbabilidade de abarcar de maneira sistemática um sem-número de saberes – distendidos do território analítico da Estática ao horizonte diáfano da Estética. Uma amplitude humanista que o propósito prático da sua acção constrange o arquitecto a percorrer.

A questão primária que anima a reflexão – como delimitar um problema sem estrangular a sua amplitude referencial e generativa – que no uso do livre arbítrio se resolve implicar na tipologia Chasuble é algo com que o próprio autor da tese se debate. Uma tendência para a deriva, contrária às boas práticas requeridas pela investigação, encontra na personagem do cónego/arquitecto um abrigo exemplar: pouco devoto a fidelidades temáticas, sendo caso que matérias variadas despertam o seu interesse, encontra a lógica seguida pelo autor, em busca da metodologia que melhor sirva as análises panorâmicas. No contexto presente, pautado pelo princípio character is action (Scott Fitzgerald), utiliza-se a figuração Chasuble proposta pelo autor – agora apropriada enquanto arquitecto – para interrogar esse homem equivalente “à

5 Le Magazine Littéraire, n.º 487, pp. 12-15.

6 Gilles Deleuze, passim The Fold. Leibniz and the Baroque.

7 A expressão é utilizada por Thomas Bernhard no romance Antigos Mestres, a propósito do homem

que “não lê totalmente”. “Quem lê tudo, não entende nada, disse ele.” (p. 59) Ou: “É uma arte não ler totalmente nem ouvir totalmente nem contemplar totalmente, disse ele.” (p. 80).

(8)

3

resultante das suas acções” (Jean-Paul Sartre), dedicando-se uma particular atenção àquilo que faz, bem como à forma como costuma fazer.

Questiona-se assim o conhecimento do especialista agrilhoado aos imperativos do tempo prático, mas que não obstante se desdobra enquanto leitor teimoso, ao perseguir alternativas que o “perdem no labirinto de uma aventura”8

. Portanto, a predisposição ambivalente que faz de cada livro aberto uma armadilha, quando fragmentos menores se agigantam para despistar o cuidado do leitor, torna-se também protagonista no texto. Essa deriva avulsa, circunscrita no domínio pessoal, constitui um fenómeno comum e tolerável, que a espaços pode até advir pedagógica e socialmente útil: “a forma pela qual nos lembramos dos livros é realmente muito casual”9

.

Acontece que a falta de método surge como um problema, quando reincide no tipo de trabalho que se espera concludente e se obriga a clarificar uma hierarquia e a garantir uma correspondente inteligibilidade – aplicável ao afazer presente, de redacção da tese. Nesse caso, cabe justificar a utilidade didáctica para a errância e demonstrar que o livre recurso à curiosidade subsiste como arquitectura possível para catalisar a aprendizagem. Face às fórmulas impostas pela racionalização economicista, que tomam o residual por arcaico, trata-se de uma forma de resistência, procurar organizar um recorte teórico para a errância, de modo a resgatá-la como possibilidade.

Em sentido oposto, à revelia dos argumentos que favorecem uma compreensão genérica dos fenómenos, cabe admitir as dificuldades inerentes a uma débil delimitação do campo de observação e as razões pela qual esta possibilidade enfrenta uma sustentada oposição académica. A prática que prevalece desaprova a predisposição para a deriva: segundo a lógica consagrada à eficácia, esta constitui uma característica disfuncional para levar a nave da investigação a bom porto. A sociedade modelou rotas predeterminadas e domínios pactuados que reclamam, para os processos de formação do saber, uma correspondência prática no âmbito profissional. De acordo com a premissa, a espiral virtuosa da investigação deve convergir para um cume rarefeito onde, por nada mais haver a tratar, possa concluir-se da benevolência unívoca do procedimento. Portanto, a designada “excelência”, transformada em lugar-comum irremediável para adjectivar o processo, se chega a traduzir uma prática concreta, será a do afunilamento disciplinar.

E no entanto, a bem do contraditório, cabe observar em sociedades pretéritas o desmérito a que era votada toda a actividade especializada e o trabalho dito útil. Uma arquitectura social assimétrica, que esquartelava a comunidade entre serventes e servidos, circunscrevia os afãs de natureza utilitária ao primeiro grupo: a iniquidade das circunstâncias beneficiava alguns, em detrimento de muitos outros subjugados pelo trabalho, que

8 Robert Musil, O Homem Sem Qualidades, p. 347.

(9)

4

asseguravam aos privilegiados a disponibilidade requerida para a deriva e para a reflexão. Ainda hoje, na cultura progressista ocidental, persistem estratificações “naturalizadas” à revelia do pacto social10

: a liberdade implícita do indivíduo encontra-se tolhida, na prática, por gradientes artificiais explícitos. As sociedades designadas de pós-modernas reafirmam-se “disciplinares”11

e os patamares de exclusividade inerentes à estrutura são afinal consequência directa da organização liberal da produção.

Certo é que a errância intelectual, em virtude deste estado dos assuntos, parece colher cada vez menos estima académica: a demanda pela eficácia laboral, pós-fordista, não isentou a Universidade da reconversão das suas práticas e a evolução recente não pode deixar de traduzir senão desprezo pela delinquência de figuras como Russell (Bertrand), Steiner (George), ou Eco (Umberto). [E claro, sem prejuízo de outros enumeráveis, do paradigmático Chasuble, cuja predisposição se ficciona.]

E no entanto, “quando pensamos na História da Europa na primeira metade do século, sabemos que podemos interpretá-la com a ajuda de uma dúzia de grandes escritores modernistas”12

– escreve Clara Ferreira Alves, no artigo jornalístico intitulado A Morte da Cultura Literária. E segue o texto, enumerando “Joyce, Kafka, T.S.Elliot, Beckett, Pound, Pessoa, Céline, Proust, Woolf, Mann, Musil, Ibsen, Pirandello, Genet, D.H.Lawrence, Hemingway… e Orwell (…), e Camus, todos esses escritores que terão modelado o “Cânone Ocidental” (Harold Bloom) e sem os quais não haverá forma de compreender e explicar a modernidade.”

Da perpetuação dessa cultura literária depende também o programa utópico humanista nascido no Iluminismo, incorporado na origem da universidade de Berlim fundada em 1810 por Wilhelm von Humboldt e que viria a determinar conceptualmente o sentido da universidade europeia moderna, nos séculos subsequentes. A linguagem de suporte para essa cultura, que nas palavras do linguista e educador liberal “permite fazer infinitos usos de meios finitos”, encontra-se hoje erodida e debilitada pelo totalitarismo tecnológico (e mercantil), que despreza a “reinterpretação da natureza enquanto processo histórico”13

a favor da reificação do presente. A transposição de um tal suporte histórico para a acção pedagógica espartilhada pelo “economicismo”, requer hoje uma prática combinada de teimosia e temeridade. A combinação de uma ciência objectiva com uma formação subjectiva, necessária ao “processo de desenvolvimento, de cultivo do carácter – Bildung”14

– já não encontra correspondência na enumeração de objectivos ou nas grelhas de avaliação. Escasseia (ou melhor, torna-se

10 No quadro ocidental e democrático, de referência.

11 Michel Foucault, passim Vigiar e Punir.

12 Clara Ferreira Alves, «A Morte da Cultura Literária», Revista, Expresso (7-09-2013), p. 4.

13 Bill Readings, A Universidade em Ruínas, p. 72.

(10)

5

supletivo) o tempo necessário para cultivar uma natureza libertária, tal como era sugerida em aforismos excêntricos, como aquele que se credita a Jean Cocteau: “Cultiva aquilo que os outros te recriminam: és tu mesmo”15

. A apropriação dessa herança literária para a construção de uma base conceptual, a montante do reduto disciplinar, tornou-se, de facto, um exercício solipsista. E no entanto, a radicalização do discurso na experiência particular (do autor) encontra pertinência em Sartre, que recusa o compromisso “intelectual” como vocação excepcional do intelecto e o afirma como mera declinação conflituosa de uma outrora aprumada prática disciplinar. A explicação que dá para a emergência do intelectual [seu] contemporâneo define a origem entre os técnicos do saber prático e, portanto, no comum professor, médico, cientista, escritor… Ou arquitecto. Entrevistado para a televisão canadiana16

, especifica que a transfiguração do profissional disciplinado ocorre quando o exercício prático do ofício faz surgir uma contradição entre as leis desse trabalho e “as leis da estrutura capitalista que rege esse trabalho”17

. Distendendo-se a interpretação, não será incorrecto afirmar que o questionamento procede de uma reacção, que de forma imprevista se vem despoletar “contra algo”, ao invés de resultar de um aprofundamento “a favor de”. E Sartre reforça a premissa, ilustrando a reacção como um “levantar os olhos da mesa”, em busca de uma relação com o universal: a subsequente ampliação de escala abre ao especialista a possibilidade de inscrever a dúvida num sistema lógico, o que resulta na descoberta da chave para a transformação radical, daquilo que começa por ser um território ontologicamente circunscrito.

A descoberta de que o conhecimento e as técnicas que garantem a resposta eficiente no campo delimitado deixam por responder perguntas vitais, faz recuar a dúvida até à alegada caducidade de um conjunto de princípios, que enforma o leito sedimentado da civilização ocidental. E uma vez percebido o suporte literário como resistência omnipresente na conformação desse caudal, torna-se imperativo fazer das leituras consonantes com esse legado objecto de alguma (re)significação. Por isso, contrariando o arquivamento sumário condicionado pela alegada utilidade, sugere-se a religação desta fórmula pretérita de animar a reflexão crítica, com o ensino da arquitectura no presente.

Determinada uma terapêutica possível, com que se presume amaciar o desvio tecnocrático, empreende-se na tese uma demanda pelas possibilidades didácticas que resultam das características partilhadas com Chasuble: sob reencontrada motivação, começa-se por coligir as frequentes manifestações

15 Tradução nossa.

16 V. entrevista de Claude Lanzmann (revista Les Temps Modernes) e Madeleine Gobeil (Universidade

Carlton) a Jean-Paul Sartre, para a Radio Canada : http://youtu.be/Iz76Q6O51bI (a partir de 3:35’).

(11)

6

de desrespeito para com a integridade das narrativas alheias, elegendo de entre as possibilidades a matéria mais significante. Revêem-se as páginas reformatadas por cantos dobrados em ângulo, alude-se aos parágrafos episódicos sublinhados a grafite, revisitam-se enfim livros tornados depósitos de comentários, aqui correlativos, ali marginais à substância do conteúdo. E faz-se reverter estes fragmentos para uma síntese argumental redentora, em que os materiais dispersos submetidos à condição de um ordenamento compreensível e partilhável – arrumados segundo uma arquitectura – se confinam, por desígnio simbólico e utilitário, à forma de dissertação. As derivas acumuladas por livros e filmes, por lugares reais ou por espaços ficcionais, podem assim representar para as personagens símiles de Chasuble um mapa reconhecível, sobre o qual ganham expressão afinidades e discordâncias intelectuais. A hipótese de utilização dessa matéria transformada, com a devida hierarquização dos textos, figurada de modo a manifestar “um certo sentido”, constitui o mote para a dissertação.

Fica por esclarecer a substância argumental coesiva, que se exige para ligar as notas dissonantes do arquivo, segundo uma narrativa com sentido. O reconhecimento da utilidade e oportunidade para a sistematização didáctica dum suporte analógico deste tipo – do qual o autor há muito se faz acompanhar na sua prática lectiva – fornece o dito argumento: leituras ou visionamentos de filmes estimados vêm sendo postos a uso, para o efeito de activar e interpretar temáticas específicas, em contraponto com um dito “conteúdo próprio”18

da arquitectura.

À maneira de périplo por lugares ficcionados, sobre suportes literários ou fílmicos, vêm-se partilhando com os estudantes, em sede da disciplina optativa denominada Arquitecturas Filmadas19

, relações que se pensam significantes, segundo a mediação crítica que a palavra alheia supõe. O filme ou o cinema (se consideramos um plano conceptual amplo, por contraponto com o dispositivo instrumental) são justapostos à tecnologia secular da tipografia, exercitando-se a compatibilização das imagens com a escrita, o que se julga contribuir para uma pertinência do texto, que com o evoluir dos processos tecnológicos vem sendo negada por alguns. De facto, as imagens em movimento que animam o texto, ou sugerem um sentido narrativo, são aqui presentes como mediador disponível entre a linguagem literária que sustenta o pensamento académico histórico e a linguagem das gerações recentes, cultivadas ou aculturadas na imagem. A sequencialidade cinemática

18 A construção do parágrafo pressupõe a discordância prévia com a circunscrição de uma matéria

própria da arquitectura. E nesse pressuposto, a ideia de que a literatura ou o cinema possam considerar-se estímulos externos, supervenientes, que vertem sobre um eventual corpo fundacional da disciplina, colhe um manifesto sentido irónico. A continuação do texto é, em consequência, motivada pela desmontagem deste pressuposto.

19 Disciplina optativa semestral, conjunta aos Departamentos de Teoria e História da Arquitectura e

Projecto, leccionada em parceria pelo Professor Centeno Gorjão Jorge e pelo narrador, desde o ano de 2008.

(12)

7

traduz a possibilidade de uma descendência cultivada em meio digital vir a conceder valor a repositórios de leitura dispersos, cuja motivação se descreve analógica.

Sem receio de subverter o sentido dos textos originais, este escrever a partir de uma relação afectiva com um conjunto de livros e filmes, acaba por firmar uma parceria intelectual com os autores das obras trazidas ao pleito. Uma associação que pressupõe genericamente: “aquele que não cita, não faz mais do que repetir sem saber nem querer”20

. E por isso se subentende, não há melhor e mais consciente forma de dizer.

Fica então sugerida a arquitectura do texto: um discurso indirecto21 , diluído num naipe de personagens tomadas por empréstimo, que prefiguram diferentes métodos de interpretar arquitecturas. E se desde logo se fez presente “um cultivado arquitecto Chasuble”, sucedem-lhe outras figurações adoptadas (e adaptadas) pelo autor do texto. Cada uma prefigura uma interpretação vinculada por “razão própria” e conduz-se como uma sonda, ao encontro de casos que tornam manifesto o estado da arte.

Cabe finalmente, para cristalizar a forma final do documento, observar uma derradeira motivação: além do exaurir de umas tantas páginas (que representam memórias dispersas), pretende-se que a estrutura matriz projectada seja ela própria ilustração da mensagem veiculada. Ou seja, faz-se da arquitectura de observação multíplice um suporte, que serve a agregação de conteúdos díspares sob um sentido comum. Assim tratada, como campo significante que não esgota significados, desenha-se uma estrutura porosa à possibilidade de inventar, desafiando a integração posterior de mais páginas, de outros textos por lavrar... Constitui-se enfim como matriz de enquadramento, cuja amplitude é suficiente para inscrever na actividade da arquitectura a natureza “indisciplinar” que se lhe reconhece.

[Quanto à personagem Chasuble – depois de fornecer o pretexto à deriva inicial – será recuperada para posterior emprego, à conta da sua indisputada erudição. Emprestará à recomposição de um imaginário arquitectónico fragmentado a narrativa de que carece.]

20 Enrique Vila-Matas, Le Magazine Littéraire, nº473, p. 17.

21 Referência – no capítulo “Composição estilística do texto”, que faz parte da Introdução – ao tipo de

(13)

8

AGRADECIMENTOS

A quantos – lidos ou ouvidos – me dirigiram a buscar longe da arquitectura, que habitava despreocupado, aquilo que agora pretendo encontrar. Mesmo quando, num primeiro relance, pareça ter pouco a ver com a problematização erudita do tema da construção. A cada oportunidade de empurrar para longe o horizonte conhecido, invariavelmente, agradecerei.

Quero agradecer o inquestionável entusiasmo do meu filho Miguel, que me ajuda a conservar imaturo – pese embora a insistência de gravidade, que o mundo sério reclama.

E agradecer à Laura a boa disposição com que enfrenta a militância teórica panfletária: quem sobrevoa o inútil com derivas ficcionais precisa de alguém para partilhar a dificuldade extraordinária – pese embora a insistência da gravidade – em pousar os pés na terra.

Devo agradecer aos meus pais – a quem a gravidade não pesa – o apoio insistente: tendo aproveitado a sua inabalável dedicação à descendência para reinterpretar as causas e os efeitos, ficarei não obstante devedor do exemplo, que à chegada nos acaba por firmar.

Agradeço aos meus companheiros do curso de doutoramento em Madrid, Teresa e Hugo, as conversas em viagem, as viagens às tapas, o apoio curricular, enfim, toda uma solidariedade correlativa. Uma palavra particular à Teresa, parceira longínqua de uma solidão acompanhada. A propósito de companheiros, relembro o papel de nuestro hermano Pedro Burgaleta neste enredo: a amizade que nunca regateou perante o meu desajeitado espanhol, a bem da discussão sobre enormes nadas que à arquitectura concernem. A minha passagem por Madrid, onde pude concluir na ETSAM o curso de doctorado, tornaria empírica a leitura de Wittgenstein: “existimos [com efeito] na linguagem” e não há maneira de pensar [agilmente] fora dela. Que é, aliás, razão primária pela qual a tese se viria a redigir em português, depois de migrar a aventura que nasceu espanhola.

Quero agradecer ao Professor Jorge Pinto a resiliência perante as minhas idiossincrasias, no duplo papel de colega e meu coordenador científico da actividade docente na Faculdade de Arquitectura da UL. Desculpo-me pela partilha insuficiente de uma investigação que desmereceu a sua disponibilidade pessoal e institucional, e que, também por isso, está aquém daquilo que poderia ter concretizado. Agradeço-lhe ainda algo de que não desconfia, quando há vinte anos mediou o meu encontro com a personagem Corto Maltese, à espreita nas prateleiras do seu atelier. A consequente descoberta de Hugo Pratt (criador e alter-ego do aventuroso marinheiro) e as derivas imaginárias pela história do século passado despertaram-me para a importância do “inútil” – antes ainda da leitura de As Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar, ou dos ensaios de Bertrand Russell a cultivar o

(14)

9

tema. Pratt acaba por inspirar também uma tendência, que celebra a condição humana na recolecção de interesses insuspeitos em lugares improváveis.

Sobre a relevância das ficções que se acolhem a bordo, importa lembrar a parceria que cedo firmei com a Mafalda: naquelas vinhetas, encontrei uma alegórica medida para o sentido humano do despropósito, que com o tempo se descobre ser algo infinitamente mais subtil que o despropósito em si mesmo. A predisposição contestatária do cartoonista argentino Joaquin Salvador Lavado, vulgo Quino, potenciada em registo infantil, estará ligada à fundação da ínfima parte diferencial que nos separa, na condição humana comum: ainda hoje não me ocorre melhor tirocínio, na importância instrumental da ironia, para inquietar o repouso de dogmas ou premissas absurdas.

Nem a propósito, cabe-me agradecer ao Professor José Callado um enquadramento inicial que me beneficiou, ao acompanhar o seu trabalho aquando do meu ingresso como docente na Faculdade de Arquitectura: o exemplo da sua postura crítica perante o contexto académico constitui, desde então, uma herança indelével.

Agradeço ao Professor Gorjão Jorge o paciente acolhimento didáctico na região fronteiriça partilhada, entre a “sua” Teoria da Arquitectura e a “minha” residência habitual no âmbito do Projecto – a bem da disciplina optativa que intitulámos Arquitecturas Filmadas. Não imagino se o propósito benevolente, de resgatar para o ensino da arquitectura muito do que habitualmente se deixa fora, terá compensado a sua exposição involuntária a impertinências que resvalam da alegada propensão contestatária...

Devo ainda agradecer a amigos vários, que se interessam pelo que ando a fazer, a ler, ou a escrever. Em particular, aos meus alunos, àqueles que viriam a demonstrar interesse por alguma associação improvável de ideias, mas em particular àqueles que reagiram em desacordo veemente a tais proposições: a incredulidade perante o absurdo será sempre, de uma forma ou de outra, boa conselheira.

Quero finalmente agradecer a quem não é referido nominalmente, mas que por se encontrar nas imediações não desistiu de me incentivar, nem deixou de me questionar pela conclusão da tese. Em particular à Helena Romão, cuja expectativa revisionista não viria a merecer resposta à altura do seu profissionalismo: encontro-me, sempre disse, limitado pelo vagar que a composição de um contributo para um assunto inesgotável sempre requer. Não obstante, convida-se à leitura provisória de um remate possível.

(15)

10

INTRODUÇÃO

O homem ético adapta a sua profissão às suas crenças, ao invés de adaptar as suas crenças à sua profissão. É algo que se tem tornado cada vez mais raro desde a Idade Média.22

O caminho escolar para a aprendizagem da arquitectura, inscrito no contexto da universidade pública e descrito a partir de um contributo individual docente, é percorrido pelos estudantes sob uma orientação nem sempre distinguível, baseada numa parte de conhecimento sensível e noutra parte de conhecimento intelectual. O “composto”23

assim gerado totaliza o propósito benevolente de instruir, pela fabricação de formas e de imagens, no sentido da transformação positiva do mundo. Sobre uma tal codificação produtiva, que os aprendizes diligentemente exercitam, escasseiam enunciados a implicar na inventividade uma discussão sobre a vivência pressuposta dos usuários – de modo a estribar a realidade física imaginada. A hipótese da tese nasce da reiterada prática lectiva, que se interroga sobre “possibilidade de ensinar a invenção de um mundo físico, desobrigada do propósito político para a dita prática”.

Como método para decantar o sentido da acção pedagógica, configura-se em contramão, e na fronteira da arquitectura, um sistema de aprendizagem aberto a contributos externos, para benefício do debate crítico partilhável. Ou seja, procura justificar-se a razão prática que torna útil um “sistema indisciplinado”24

, capaz de inscrever, a pretexto da arquitectura, muita da matéria diversificada que lhe concerne. Por isso, conflui no texto um naipe de interpretações divergentes, que explicitam uma maneira única de coser a experiência prática subjectiva à construção académica.

A dissertação interroga também a forma habitual de descrever essa costura didáctica, explorando-se a especificidade do discurso que compromete o aprendiz de arquitecto com a explicitação da obra. Para exemplificar as variantes pela qual uma figura pode traduzir o seu propósito, imagine-se a invenção elementar de um muro: na escola, o muro, que pressupõe uma intencionalidade e uma acção construtiva, começa por existir como linha ficcional. A sua fabricação realiza-se a coberto de um simulacro. Para que não se iluda a verosimilhança entre a linha simulada e o muro pressuposto, organiza-se a didáctica para clarificar recursos instrumentais apropriados à constituição de muros. A direcção costumeira do processo conceptual, com acento nos procedimentos e técnicas necessários à emergência material “daquele” muro, leva a que se menospreze ou

22 Nassim Nicholas Taleb, A Cama de Procusto, p. 69.

23 Leia-se optimismo pedagógico no facto de se ter recorrido à designação química de composto para

caracterizar o que algumas vezes se reconhece como simples mistura.

(16)

11

subentenda a discussão adjacente, sobre a separação implícita por efeito de um qualquer muro.

Acontece que a metodologia corrente – admita-se a validade empírica da constatação – não deixa margem para aprofundar uma intriga desta natureza. Seja porque a herança moderna nos industriou na benevolência automática do pressuposto, seja pela especificidade do meio instrumental que manipulamos, logo se trata de aproximar a débil interpretação à assimptota sinuosa do “espectáculo”25

. Quer isto dizer, que a possibilidade de aprendizagem rapidamente se submete a uma “iconofilia”: as imagens, referidas a protótipos de inquestionada precedência, acabam por se constituir de forma a venerar todos os “santos cuja semelhança aparentam”26

. E no entanto, a comunidade que é hábil a observar a beleza no muro e a emparedar através de um bom feitio plástico, sinónimo de dizer que assegura ao muro filiação capaz face ao modernismo arquitectónico, não se coíbe de aligeirar o problema da especulação sobre o propósito de quem decide murar. Ainda que se trate da externalidade evidente da sua acção, a mesma comunidade instruída na técnica engenhosa de projectar, interroga pouco as consequências para quem acaba murado.

Será então caso que uma relação entre quem ensina e quem pressupõe aprender arquitectura se deva amaciar à sombra apolítica, de maneira a que os muros configurados em “estilo obviamente moderno” constituam condição necessária e suficiente para a sua própria legitimação?

Pode argumentar-se que não será compulsivo tratar o efeito de separação ou conexão pressuposto pela infra-estrutura, para garantir a sua existência material: se é facto que o muro incorpora um significado político de defender ou aprisionar, isso não tem necessariamente que colher correspondência operativa na escala académica onde se explicam a arte, a técnica e a utilidade de fazer muros. Deste ponto de vista, limitada a análise às técnicas que concorrem para a configuração material e sem implicar na fórmula o enunciado individual ou colectivo de um propósito, inviabiliza-se a possibilidade de distinguir um sentido utilitário na acção inventiva. Considerada no seu âmbito estritamente técnico, mesmo a construção mais desumana comporta uma predeterminação racional. Reclama-se pois, como fundamento didáctico, desconfiar a “banalidade da acção técnica”,

25 Tal como é enunciado por Debord, em a Sociedade do Espectáculo: “O espectáculo não é um

conjunto de imagens, mas sim uma relação social entre as pessoas mediatizadas pelas imagens.” Guy Debord, La Sociedad del Espectáculo, p. 38.

26 Se a iconoclastia traduz uma oposição à veneração de ídolos ou de imagens religiosas, a iconofilia

(do grego que significa "venerador de imagem") ou iconodulia, pressupõe a defesa do uso de imagens religiosas, "não por crer que lhes seja inerente alguma divindade ou poder que justifique tal culto, ou porque se deva pedir alguma coisa a essas imagens ou depositar confiança nelas como antigamente faziam os pagãos, que punham sua esperança nos ídolos, mas porque a honra prestada a elas se refere aos protótipos que representam, de modo que, por meio das imagens que beijamos e diante das quais nos descobrimos e prostramos, adoramos a Cristo e veneramos os santos cuja semelhança aparentam.” http://pt.wikipedia.org/wiki/Iconoclastia

(17)

12

apropriando-se a observação que Hannah Arendt27

faz a propósito de um sistema eficiente de má memória: como objecto, contrariar a descontinuidade didáctica entre o como fazer e o porque fazer.

Como é da natureza de toda a construção, materializar e simbolizar relações de poder entre indivíduos ou grupos sociais28

, um projecto de consolidação do conhecimento na matéria respectiva não pode deixar de verificar a correspondência entre a “produção e a recepção” nas obras de arquitectura29

. Porque sem discernir um propósito político, não há como objectivar o contraponto entre aquilo que a arquitectura propõe como projecto de transformação e as consequências vivenciais para os usuários (ou para à comunidade em geral). Esta resultante é demasiadas vezes despistada ou tomada por mera contingência e, talvez por isso, a sua discussão não colhe especial mérito nos processos académicos de síntese, onde prevalecem referidas análises iconófilas.

A estrutura do trabalho advoga por isso como imperativa uma actualização metodológica para o ensino da arquitectura. Ao conduzir do texto por linhas de subjectivação dissonantes, ilustram-se diferentes interpretações possíveis para os significantes da arquitectura: mas ao fragmentar da designada leitura arquitectónica também corresponde um enquadramento justo para essas formas compósitas de análise, de acordo com a particular subjectividade, que se crê responder às circunstâncias presentes. Comum às diversas leituras propostas, cuida-se o facto de cada descrição minimizar a codificação própria do processo de síntese das obras observadas: estas serão, por assim dizer, esvaziadas das condições que as definem como exercícios de excepção, da matéria particular capaz de se esgotar num domínio artístico e metodológico estrito. Ao amaciar a caracterização especializada que é apanágio da crítica corrente, torna-se a interpretação acessível a uma compreensão genérica, beneficiando uma escala alargada de interessados. Manfredo Tafuri, na introdução à reedição de Projecto e Utopia: Arquitectura e Desenvolvimento do Capitalismo, que publicaria pela primeira vez em 1969, escrevia que “os novos temas que se propagam à cultura arquitectónica estão, paradoxalmente, aquém e além da arquitectura”30

, pelo que caberia “definir quais são as funções que o desenvolvimento capitalista retirou à arquitectura”31

.

27 Passe a radicalidade da comparação, com a hipótese enunciada por Arendt no relatório Eichmann in

Jerusalem: A Report on the Banality of Evil, que redigiu para a publicação New Yorker com base no julgamento de Robert Eichmann, que testemunhou em Jerusalém. Não obstante, a analogia é reiterada no documentário de Alain Resnais, Nuit et Bruillard (1955), onde a arquitectura de campos de morte nazis se descreve a partir dos respectivos desenhos de projecto, através de um enunciado neutro da sua razoabilidade técnica.

28 Como substituição da muito discutida conotação marxista que advém da designação de classe.

29 V. Jorge Cruz Pinto, O Espaço-Limite, Produção e Recepção em Arquitectura.

30 Manfredo Tafuri, Projecto e Utopia: Arquitectura e Desenvolvimento do Capitalismo, p. 10.

(18)

13

Sendo o propósito e a acção que conduzem à obra interdependentes, a dissertação argumentará a favor de um recuo para montante da origem posicional de observação do fenómeno – para territórios colonizados pela ideologia – ou em alternativa, a favor de um avanço para jusante, para o âmbito da recepção da obra de arquitectura – de modo a abarcar um “âmbito suficiente de factos”32

correlativos. E defenderá também que, sem forçar esta variação de escala, não será possível levar “as formas a caminhar em relação às palavras”33

, abrindo o discurso à possibilidade de imaginar “formas que pensam”34

.

Na contingência de um sentido político e social imanente às formas, impõe-se à descrição de processos e produtos uma narrativa complementar àquela que anima o ensino corrente do projecto. Desde a “exterioridade”35

, que alegadamente condiciona o ensino de arquitectura, procuram fixar-se os contornos de um equívoco educativo36

, que no presente modo de emprego, tende a aprofundar a disjunção entre as circunstâncias e as aspirações dos indivíduos: o desencontro arquetípico, afinal, que se encontra na raiz literária da tragédia.

Adverte-se, não obstante, que a tese não pretende afrontar a coerência que advém das formas especializadas de enfocar o mundo, quanto mais não seja porque essa constitui ainda a linha de fuga, consagrada no presente, para a utilidade da arquitectura. Por exemplo, não se questiona a benevolência do papel instrumental da disciplina de Laboratório de Projecto na “condução de um processo de invenção simulada de obras de arquitectura”. Nem se pretende negar eventuais vantagens ao disciplinador operacional de uma particular tecnologia ou disponibilidade, que se traduza em vantagem prática do ponto de vista económico.

Acontece que, sem pôr em causa o benefício de segmentar para compreender, se entrevê a vantagem na formulação de uma alternativa conceptual à narrativa vigente. Uma aproximação ao problema do ensino de

32 Ludwig Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus, p. 5. Estabelece uma sistematização

exaustiva que separa coisas e factos, definindo o mundo enquanto totalidade dos factos compreendidos no espaço lógico.

33 Jean Luc Godard, História do Cinema, episódio 3.

34 Idem.

35 Michel Foucault. O Pensamento do Exterior, pp. 15-16. Um “pensamento que se mantém fora de

toda a subjectividade para fazer surgir como que do exterior os seus limites, enunciar o seu fim, fazer cintilar a sua dispersão e dela recolher apenas a invencível ausência, e que ao mesmo tempo se mantém no limiar de toda a positividade, não tanto para lhe apreender o fundamento, ou justificação, mas para redescobrir o espaço em que ela se desdobra, o vazio que lhe serve de lugar, a distância na qual ele se constitui e onde se esquivam as certezas imediatas assim que o olhar as procura –, este pensamento, por referência à interioridade da nossa reflexão filosófica e por referência à positividade do nosso saber, constitui aquilo a que poderíamos chamar em suma o pensamento do exterior”.

36 Que dá prioridade ao adestramento de competências (skills) em prejuízo da transmissão de

conhecimento (knowledge), que diminui a exigência a pretexto de um suposto igualitarismo, que relativiza as implicações colectivas que decorrem das escolhas individuais, que enfatiza a importância do computador muito para além da utilidade instrumental, que glorifica o acesso instantâneo mas não mediado à informação, que despreza por anacrónica a leitura direccionada baseada nos livros.

(19)

14

arquitectura susceptível de fomentar o contraditório, perante a pressuposta benevolência da reprodução linear e irrevogável, de uma dita ideia de progresso. Uma vez desobrigados os aprendizes da formulação de decisões sequenciais, que de alguma forma extravasem a natureza auto-explicativa do parcelamento disciplinar, eximem-se todas as matérias explicáveis na relação intrínseca entre si, da obediência a um nexo suplementar para além do correcto agenciamento interno. E sem este contraponto, que é como escrever, na ausência de um vínculo de sentido para interrogar uma proposição estanque, não se pode desmontar a coerência dos “raciocínios correctos constituídos a partir da premissa errada”: um tipo de objectividade que, à época, pareceu a Locke justificável designar por loucura.

Método de análise

O propósito de acolher leituras diferenciais da arquitectura condiciona a narrativa, implicando-a com um modo de olhar multíplice, que distingue possibilidades de relação entre o observador e os objectos observados. Se a descrição objectual da arquitectura autonomiza “uma face material e sensorial – o significante – de uma face conceptual e formal – o significado”37

, o argumento propõe-se a fixar os termos para esta associação entre significante e significado. Isto é: sob a alegação de que um tal procedimento serve para recompor a totalidade do signo, o recurso à ficção procura cerzir aspectos fracturantes de uma mesma realidade. Trata-se pois de correlacionar no processo interpretativo um estudo do significante, ou do plano da expressão, com o estudo do significado, ou plano do conteúdo. A metodologia adoptada pretende assim demonstrar a operatividade didáctica de um sistema imaginário, em que o carácter do observador é previamente carregado de uma disposição conceptual. E, ao mesmo tempo, aludir a que uma (inevitável) predestinação condiciona não só a forma como o narrador olha e compreende, mas também determina o objecto (o suporte material) susceptível de colher o seu interesse.

A justificação conceptual que Adriano Duarte Rodrigues elabora, no prefácio à obra-mestra de Vladimir Propp (A Morfologia do Conto), afirma um propósito de substituir “a pretensão da exaustividade da amostragem na investigação de inspiração empiricista” pelo maior relevo a conferir “à qualidade do estudo do que à quantidade dos materiais”38

. Isto vem conferir-se na forma como o autor conferir-selecciona e enquadra os exemplos que suportam a sua observação e que, pela distinção na escolha dos “casos de estudo”,

37 Ap. Ferdinand de Saussure, Curso de Linguística Geral, Publ. Dom Quixote, Lisboa, 1971.

(20)

15

diferencia os conceitos de corpus de observação e amostragem39 . A derradeira categoria pressupõe a observação de materiais recolhidos de maneira empírica e aleatória, cuja constituição seria extrínseca ao objecto do estudo, enfim, alheia à teoria e às hipóteses que levam o investigador a escolher um campo de trabalho. Ao contrário, a justificação teórica da noção de corpus, desenvolvida pelos estruturalistas, assenta numa clausura do código enraizado no próprio sentido que o investigador tenta definir: ou seja, garante a partir de certo ponto que a adição de um elemento novo não virá alterar fundamentalmente a estrutura e o modelo explicativo do campo de estudo. As arquitecturas seleccionadas, que adiante se tornam suporte para uma particular observação, constituem um corpus paradigmático para o argumento que se desenvolve e figuram limites de possibilidade para a própria actividade material do arquitecto: assim, o âmbito seleccionado compreende uma variabilidade que se estende do domínio privado, expresso na casa, ao domínio colectivo, modelado na cidade.

Note-se que qualquer dos quatro casos figurados na observação prática não se quer exemplar em si mesmo: não se releva sequer autonomamente, pois o texto procura minimizar as pequenas e subtis condições que, de entre si, os poderia definir enquanto exercícios de excepção. Pelo contrário, seleccionam-se enquanto tipos divergentes, mas confinantes entre si. De acordo com a afinidade que se explicita, entre a configuração do corpus e um quadro ideológico referencial, que baliza – esse sim – a respectiva análise.

A geometria das hipóteses formuladas não pretende solucionar uma irresolúvel quadratura do círculo, o que equivale a escrever que não haverá forma de esgotar as possibilidades de acção do imaginador arquitecto. Não obstante, tenta fixar-se uma aproximação geométrica, entre a circularidade intangível do problema e a moldura referencial definida pelas quatro secantes propostas.

Escala e sentido da observação

A arquitectura correcta do sistema de análise começa por decidir-se na justeza com que se fixa a escala de observação, o que para o caso, e de acordo com o enunciado prévio, não resulta de uma escolha livre. A distância justa para o “afastamento”, ou “focagem”, é definida em função de uma utilidade,

39 Vladimir Propp, Morfologia do Conto, p. 14. “Não é aliás muitas vezes o facto de um elemento se

encontrar em número estatisticamente representativo que lhe confere qualquer privilégio explicativo. Um elemento único, um hapax aparentemente insignificante, pode até oferecer um interesse hermenêutico indiscutível.” Demonstra-se exemplarmente pela parábola dos “1001 dias da existência do peru”, transcrita por Nassim Taleb, in Cisne Negro: será apenas ao milésimo primeiro e derradeiro dia, em que se mata o peru para a ceia, que se desvela o significado para uma relação em que a observação significante de mil dias anteriores, entre o animal e o criador que o alimenta, é inconclusiva para desenraizar o sentido da mútua relação.

(21)

16

que se pretende capaz de articular o lugar de observação com o objecto observado, de modo a compreender “um âmbito suficiente de factos”.

Depois, considerando que o distanciamento define a escala de observação para o discurso, condiciona a amplitude e a nitidez para o detalhe abarcável, a justificação de um sentido vem orientar o propósito. Negando a pressuposta neutralidade científica – este é um ponto-chave do argumento, de que não é possível sintetizar uma verdadeira objectividade nesta escala de associação dos fenómenos – decide-se fundar alicerces num exterior conceptual, recorrendo-se para tal à muleta da ficção. Desde esse lugar inclusivo, procede então o enfoque de eventuais singularidades exclusivas, ditas identitárias.

O percurso proposto comporta portanto a sua geométrica própria: o dispositivo de análise colhe na relativa abstracção comum a referenciação prévia, da qual se parte para incorporar particularidades concretas. Uma tal configuração geométrica da matriz projectada, que se usa para filtrar as motivações e as disposições do ensino da arquitectura, não é neutra. O seu sentido, do geral para o particular, define um partido ideológico próprio, vinculado “à esquerda”.40

Qualquer modelo de ensino, só por omissão pode tomar-se por apolítico, pois sempre acaba por desenhar uma hierarquia, consoante a posição relativa ao lugar de onde se parte, em correlação com outro, onde se chega. A alegada geometria é canhota porque parte do geral para o particular. E opõe-se a outra – que se designaria “de direita” – em que a observação se fundaria na identidade, vinculada ao lugar particular, e desde essa origem exemplar avançaria uma interpretação de quanto se passasse em redor.

O singular determinismo seguido acaba também por contrariar a metodologia unidireccional que caracteriza as análises disciplinares, no sentido de um progressivo aprofundamento dos temas: a redução do domínio de análise corresponde também a uma minimização do domínio de incerteza, que por via da convergência no detalhe e na especialização, acolhe melhor validade académica. Em alternativa, sem iludir o risco de imprecisão implicado na escolha, adopta-se um “empirismo céptico”41

centrado na pertinência política e económica das premissas observáveis: ou seja, organiza-se o contraponto entre materiais de origem sistémica alargada, em detrimento da validação linear de uma proposição disciplinar arrumada.

Pode assim afirmar-se que a viagem que se empreende intersecta um conjunto de sinais, que são evidenciados de maneira arbitrária. Porém, trata-se aqui de uma arbitrariedade inerente à própria matriz configurada, que trata-se explicita de modo a articular os paradoxos residentes. Do itinerário percorrido

40 A explicitação de que, tal como as formas inscrevem uma ideologia, também as ideologias,

reciprocamente, são susceptíveis de uma figuração geométrica, desenvolver-se-á adiante. V. Gilles Deleuze, em L’Abécédaire. http://youtu.be/Ov4rlaWns0c, (…a partir 1:18‘)

(22)

17

resultará uma figura compósita e aberta, que ao invés de delinear a ilusão cientificada de uma arquitectura que não pode senão arranhar certezas teóricas – e cuja fiabilidade duvidosa se impõe à vista e ao uso – prefere sugerir um “genericamente certo, a formular o precisamente errado”42

.

Composição estilística do texto

A experiência lectiva própria (do autor da tese) constitui o magma de onde irrompem as sucessivas proposições. Apesar da consciência de que a validade científica se suporta na neutralidade do referencial, a predisposição assimétrica dos sujeitos ficcionais descritos e interpretados, na terceira pessoa, condensa possibilidades de validação não cartesianas: isto é, quando as experiências descritas se tornam reconhecíveis, podem também generalizar-se conclusões, por analogia. O recurso a um repositório empírico particular e a matéria consequente, que resulta das vivências prática ou ficcional do espaço, adquire valor generativo, que se pode condicionar para reflectir o tema da arquitectura. Será com base numa pressuposta comparabilidade, que se extraem as eventuais conclusões.

As diferenças no estilo discursivo justificam-se para evidenciar a inscrição de um agenciamento de factos aparentemente arbitrário, mas que se torna significante para o domínio colectivo. Ora, posto que aquilo “que se significa”, não tem verificação possível fora de uma moldura ideológica, sem um processo de subjectivação, o ruído da interferência do “eu” torna-se incontornável na definição do método. É neste sentido que a memória constitui matéria de invenção, quando o sujeito se desliga dos factos de onde parte (tomando-os por matéria operativa).

Para o efeito pretendido, o paradoxo de contrapor diferentes maneirismos – ao observar o suporte material e imaterial arquitectónico – justifica-se como desdobramento de complexidades, ainda que cada uma das formas acabe por convergir no “caso particular do autor”. As diferentes “subjectivações” que uma leitura atenta encontrará na tese são, antes de mais, consequência deste escrever numa “terceira pessoa próxima”43

. A narrativa genérica baseia-se no estilo impessoal, pigmentado pelo recurso a um designado “discurso indirecto livre”44

: esta variante corresponde à situação em que a escrita emerge de “dentro da personagem”45

, comprometendo o leitor com o processo de figurar um presumido heterónimo. James Woods, crítico literário, observa a propósito da ferramenta que “assim que alguém conta uma história sobre uma

42 Nassim Nicholas Taleb, op. cit., p. 358.

43 James Woods, A Mecânica da Ficção, p. 24.

44 Ibid.

(23)

18

personagem, a narrativa parece querer acomodar-se a essa personagem, adoptar o seu modo de pensar e falar. A omnisciência (do escriba) rapidamente se transforma na partilha secreta”46

de um estilo, que denuncia a falsa impessoalidade do autor. Acontece aqui que o uso deste “estilo indirecto livre” se torna condição necessária para mostrar coisas através do olhar das personagens. Isso é fundamental para delimitar uma subjectividade na aproximação ao objecto, à qual corresponde também uma interpretação condicionada pela natureza descrita. Mas também serve para, a espaços, diferenciar a interpretação estilisticamente mais neutra do autor.

Sumário

Opera-se segundo a proposição antimoderna47

de que as formas não passam de manifestações possíveis para as regras da razão e não expressam a razão em sim mesma. Com o propósito didáctico de interrogar, no contexto do ensino da arquitectura, a premissa marxista48

de que “tudo o que é sólido se dissolve no ar”, sustenta-se a inscrição externa de uma “legendagem biopolítica”49

sobre as imagens arquitectónicas produzidas na modernidade. Para tal, fabrica-se um composto resistente, tripartido pelo “que se manifesta”, pelo “que se pode descrever” e por um “significar”50

subjectivo, que visa contrariar a cacofonia imagética que medeia a aprendizagem da arquitectura.

A sistematização proposta acolhe experiências vivenciais – memórias de espaços experimentados e analogias baseadas em personagens ficcionais, colhidas na literatura – sob um dispositivo51

integrador comum: o suporte referencial recupera, para a finalidade enunciada, o binómio compreendido nas representações animadas de movimento, ao associar ao espaço representado um tempo e um modo de observação específicos (contexto). Pela intersecção das formas arquitectónicas com as acções humanas imaginadas sobre os espaços, a arquitectura adquire expressão ontológica e vivencial: a inscrição de uma sequência animada, seja de origem narrativa ou visual, sobre um suporte material determinado, resgata o espaço

46 James Woods, A Mecânica da Ficção, p. 24.

47Antoine Compagnon, passim Los antimodernos.

48 “São o constante revolucionar da produção, a ininterrupta perturbação de todas as relações sociais, a

interminável incerteza e agitação que distinguem a época burguesa de todas as épocas anteriores. (…) Tudo o que é sólido se dissolve no ar, tudo o que é sagrado é profanado e os homens são finalmente forçados a enfrentar com sentidos mais despertos as verdadeiras condições da sua vida e as suas relações com os outros homens.” Karl Marx, Manifesto do Partido Comunista in Karl Marx: Vida, Pensamento e Obra, p. 177. Em alternativa: Marshall Berman, passim Tudo o Que É Sólido se Dissolve no Ar.

49 Remete-se para a ampliação do conceito de política, de acordo com o enunciado de Michel Foucault.

V. Roberto Esposito, passim Bios – Biopolítica e Filososfia.

50 Gilles Deleuze, Lógica del Sentido, p. 44.

(24)

19

arquitectónico da sua invisibilidade latente. E como tal, sustenta a configuração de um âmbito crítico – à escala de uma “imagem manifesta”52

, pactuada entre os actores académicos – que abre linhas de possibilidade para a invenção.

Em particular, utilizam-se contradições susceptíveis de descrever e que despontam da colisão entre uma acção, real ou ficcional e o lugar físico que a inviabiliza, experimentado ou representado, como filtros para esclarecer enunciados possíveis. Assim se sugere a hipótese de que tanto as contingências que a montante circunscrevem a invenção da arquitectura, como os correspondentes limites de possibilidade para o seu ensino, a jusante, adquirem particular visibilidade a partir de diagnósticos de erro.53

A identificação de impossibilidades lógicas em processos e produtos que adquirem forma material, sem obstar ao absurdo inscrito na sua concepção, torna-se pois fio argumental narrativo, que propõe percorrer à luz de uma razão irónica, um território disciplinar reconhecidamente impreciso.

“If you scratch a cynic, you’ll find a disappointed idealist.” George Carlin (comediante)

52 Por contraste entre a “imagem manifesta” (Wilfrid Sellars, 1912-1989) que temos do mundo – em

cuja escala se inscreve o referente “arquitectura” – e a “imagem científica”, que está na origem explicativa mas que não corresponde ao campo perceptivo dos sentidos. V. Desidério Murcho, Introdução, p.XIV, in Bertrand Russell, Os Problemas da Filosofia.

53 Segundo Kant, o conhecimento (que denomina “transcendental”) constitui uma estrutura definível

com anterioridade à sua entrada em funcionamento com a experiência. No prólogo à primeira edição da Crítica da Razão Pura enuncia as “condições de possibilidade do conhecimento” como o conjunto de conceitos a priori que são gerados pela própria razão, “com a participação” da experiência.

(25)

20

(26)

21

1.1 GEOGRAFIA CONCEPTUAL 1.1.1 CONTEXTO (DIA PRESENTE)

Tanto que nós pensamos e que falamos e julgamos que somos competentes e na verdade não somos, essa é a comédia, e quando nos perguntamos, como é que vai ser agora? É a tragédia, meu caro Atzbacher. 54

A epígrafe, colhida na prosa “malvista e maldita”55

do escritor Thomas Bernhard, inaugura um desafio ao plano56

que regula o preceito de “bem ensinar arquitectura”. O monólogo,transcrito da “comédia” Antigos Mestres, denuncia o cepticismo com que Reger, professor aposentado, se refere à possibilidade de ensinar. Com base nos sofismas que a personagem sucessivamente descobre, o autor inscreve o texto na categoria literária da comédia, ao subintitular como tal e pela própria pela mão, um libelo ao desígnio universal da educação.

Também na sombra do ensino da arquitectura – cujo método autónomo, “o projecto”, assegura uma relativa indiferença às tribulações do contexto – se oculta um singular mal-entendido, ao abrigo do qual mestre e aprendiz exercitam as respectivas competências, dirigidas à planificação de um mundo ideal e sem resto. A alteração das condições extrínsecas que balizam essa acção, ainda que originária da periferia de uma “alegada competência”, acaba por fracturar a disciplina interna do jogo e impor uma reacção crítica à prática didáctica recente. Em particular, porque se constata que o usual tabuleiro disciplinar, constituído pelos enunciados57

que se produzem em contexto académico a bem da imaginação das obras de arquitectura, ao ignorar qualquer exterioridade, assume como inelutável o estado de coisas prevalecente.

Concede-se ao pressuposto uma fundação precária, pois um alegado estado de emergência parece condicionar todos os discursos e acções possíveis, reclamando mesmo a suspensão temporária da razão, ao abrigo de imperativos técnicos.

54 Thomas Bernhard, Antigos Mestres, p. 249.

55 Referência à expressão que intitula um conto de Samuel Beckett. A afinidade conceptual com Thomas

Bernhard encontra-se na proposição comum de um “fracassar melhor”. Vd. Prefácio de Rui Lage, à versão portuguesa de Mal Visto Mal Dito, Edições Quasi.

56 “Plano”, enquanto incorporação ambivalente de “superfície” e de “projecto”.

57 “Enunciados (…), que parecem ignorar…”: à luz do rigor analítico, apresenta-se impreciso: não

obstante, “enunciado” deve entender-se em sentido filosófico, enquanto “proposição aristotélica”, que se ajusta a uma de duas formas de conhecimento, tal como foram designadas por Henri Bergson. No caso, tratar-se-ia de um “conhecimento relativo”, que por oposição ao “conhecimento absoluto”, baseia o reconhecimento do mundo numa perspectiva particular, adquirida pelo intelecto e pela razão, fatalmente distanciada da coisa em si mesmo. Tratado em referência a Arthur Schopenhauer, significaria que “cada homem toma os limites do seu campo de visão pelos limites do seu mundo”, ou então, sublimado pela poética pessoana de Alberto Caeiro, ler-se-ia: “ porque sou do tamanho do que vejo e não do tamanho da minha altura”.

(27)

22

Por outro lado, a precariedade do suporte descobre contornos que geralmente se ocultam na solidez das formas habitáveis. E a aparência de um tal reverso, não pode deixar de inquietar o reduto que circunscreve “a arquitectura” aos “actos próprios da profissão”. Ao contrário da convenção corporativa, que expressa uma mera deriva prática do conhecimento implicado e reduz a actividade corrente do arquitecto à resultante de determinação técnica, trata-se aqui de resgatar para o plano da discussão a infra-estrutura imaterial (que delimita “o saber arquitectónico”). Desocultar uma natureza conceptual e ideológica, equivale a reclamar um sentido ético para o ensino, do qual depende a possibilidade de formular um diagnóstico partilhável, para um certo estado dos assuntos.58

Assim acontece, afinal, em sentido inverso, pois a pauta que fundamenta os imperativos do poder e a correspondente narrativa dominante, nunca deixa de condicionar as práticas quotidianas da arquitectura.

A regeneração positiva para aquilo que nos constrange carece, antes de mais, de despertar uma atenção mínima ao contexto máximo da economia. Só uma crítica preparatória à matriz socioeconómica, capaz de transcender âmbitos sectoriais e dirigida de forma a evidenciar um correspondente sustentáculo político, permite descobrir em xeque a topografia corrente, em que a produção de arquitecturas se baseia.

A Study of Economics as If People Mattered foi a frase escolhida por E.F. Schumacher, para subintitular o livro Small is Beautiful, pela primeira vez publicado em 1973. Desde essa altura, o texto sustenta diversas expressões minoritárias de resistência ao receituário económico “neoclássico”,59

suporte e catalisador da globalização financeira. O sufixo “como se as pessoas contassem” destitui pela ironia a conveniência humana, apresentada como mero resíduo da intersecção entre o desenvolvimento das técnicas que potenciam a ciência económica e a aplicabilidade desumanizada da correspondente tecnologia. Desde os anos 1970 que o sistema financeiro global incrementa a sua complexidade técnica, em sentido oposto ao estreitamento das possibilidades políticas que balizam a sua aplicação: alegadamente, trata-se de uma questão de inaplicabilidade das ideias ao materialismo estreito que predefine as condicionantes do “real”. O texto de Schumacher expõe uma alternativa plausível à globalização financeira, implicada com a finitude dos recursos materiais, com a sagaz organização dos meios de produção e com a redistribuição correspondente dos excedentes. Ou seja, contrapõe ao discurso dominante uma leitura em que o impacto da acção produtiva humana sobre o ecossistema adquire preponderância e onde as condições vivenciais de diferentes agregações humanas, em particular, são evidenciadas.

58 “State of affairs” (Bertrand Russell). Tradução nossa.

Referências

Documentos relacionados

 Ao clicar no botão Congurar Apresentação de Slides , uma caixa de diálogo será aberta (gura 59), para que congurações sejam estabelecidas, tais como tipo

Para contornar essa característica são utilizados agentes coalescentes (ou plastificantes temporários), que são co- solventes responsáveis por reduzir a TMFF e

Após a realização de todas as atividades teóricas e práticas de campo, pode-se concluir que não há grande erosão do conhecimento popular e tradicional de plantas medicinais, que

Buscando contribuir para a composição do estado da arte da pesquisa contábil no Brasil, a investigação lançou mão de técnicas de análise bibliométrica para traçar o perfil

* Este regulamento técnico foi transcrito a partir do site da ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária)... 2.1 Agentes antimicrobianos - não devem ser detectados no

e declaradas, como se de cada huma fizesse individual mençao e por verdade pedi a Francisco dos Santos Souza que este por mim fizesse, e como testemunha assignasse eu me assigno com

A partir do exposto, este trabalho tem, como objetivo, compreender as representações acerca da peregrinação em honra ao Divino Pai Eterno em Trindade/GO, na perspectiva dos

É através da educação que a sociedade se perpetua, é pela educação que as gerações transmitem as crenças, os costumes, os conhecimentos e as praticas