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A IMAGINAÇÃO E A UNIVERSIDADE PÚBLICA Só há uma questão digna de ser pensada: a do modo justo de viver

No documento Indisciplina da arquitectura (páginas 81-86)

1.1 GEOGRAFIA CONCEPTUAL 1 CONTEXTO (DIA PRESENTE)

1.2.1 A IMAGINAÇÃO E A UNIVERSIDADE PÚBLICA Só há uma questão digna de ser pensada: a do modo justo de viver

A razão teórica, cultivada à margem da estrutura conceptual-produtiva, permite integrar factos extrínsecos à hierarquia convencional estabelecida pelo poder. O pacto para a inclusão de um pensamento do exterior, susceptível de filtrar o currículo disciplinar especializado, necessita de uma sede própria, que não dependa de mecanismos exclusivamente dirigidos à reprodução do capital. Nestes termos, a escola pública constitui ainda a potencial excepção institucional a um estado de coisas, onde se encontram reunidas condições suficientes para debater a arquitectura enquanto instrumento para a transformação do mundo. Isto é, a escola constitui ainda o recinto físico e institucional onde se intersectam o espaço e o tempo suficientes, para discutir o que vale ou não a pena legitimar como “imaginação”.

Por outro lado, a evolução do conhecimento científico torna possível aludir hoje a um “homem pré-histórico”, então à mercê de circunstâncias e de arbitrariedades climatéricas ou biológicas, subjugado à imprevisibilidade natural. Essa remota origem, desadequada porque insuficiente face à expectativa de bem-estar, (e segundo uma perspectiva evolucionista) terá constituído o próprio catalisador para a sucessiva transfiguração artificial do entorno terrestre que suporta a existência humana. A identificar-se uma imaginação inicial, por assim dizer, teria por objecto a melhoria da condição

174 Evocação do descentramento historicista descoberto por Marx, através da análise histórica das

relações de produção, das determinações económicas e da luta de classes.

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existencial do indivíduo e da tribo, com base nas necessidades primárias da vida em grupo. A interrogação sobre as condições suficientes e necessárias para essa coexistência em sociedade ter-se-á constituído, desde então, como mote filosófico permanente, transversal a todos os homens e a todas as épocas. Nestes termos, será legítimo admitir que após um longo caminho percorrido, a imaginação do homem dito global e pós-histórico176

não poderá (ainda) ser radicalmente diversa: o desígnio de prosperidade, concorrente para uma condição existencial digna, não se cumpriu, continuando a figurar como possibilidade elusiva para a esmagadora maioria dos membros da tribo humana.

Este benefício incumprido contradiz as teorias que defendem uma generalização “natural” (não conflituante e mais uma vez, pós-histórica) dos benefícios da organização “eficiente” do sistema produtivo. E por isso, não consegue apaziguar a imaginação política alternativa e o desejo revolucionário de transformação. Ao fim ao cabo, a imaginação que em estádio embrionário antecipava as condições para sobreviver e prosperar, não perdeu validade conceptual: “abrigo, comida, vestuário básico, educação de acordo com os talentos e habilidades, cuidados médicos, apoio na velhice, transporte e comunicação”. A estes, juntar-se-á “o apoio jurídico competente sob acusação e o direito à reabilitação e reintegração, em caso de condenação por crime”.177

Enquanto isso permanece por cumprir, a possibilidade de imaginar encontra-se condicionada por este desígnio de ordenamento fundacional, para além dos vínculos políticos que as relações de poder materializam. Para o projecto de um modelo de ensino, cabe definir se a imaginação que interroga a justiça pode, ou deve, situar-se a montante das técnicas conducentes à realização de obras de arquitectura. Ou se, por outro lado, se resiste a definir os seus termos sem compatibilizar a possibilidade de uma imaginação primordial.

O percurso da imaginação, uma vez compreendida e interiorizada a inevitabilidade da coexistência em comum, passa historicamente pela valorização de um contrato social:178

é este pacto, conceptualmente implícito ou normativamente explícito, que torna a ideia de liberdade compatível com um fundamento de justiça social. Apenas a subordinação a um benefício “colectivo” permite compreender que as “instituições, as leis, as restrições e a disciplina moral fazem parte da liberdade e não dos seus inimigos, e a

176 Referido ao enunciado de Francis Fukuyama, teórico fundamental para o neoconservadorismo, que

em The End of History and the Last Man identifica a democracia liberal ocidental como epílogo da

evolução sociocultural humana e a sua forma final de governo.

177 Tedd Rall, Manifesto Anti-americano, p. 15. Dez direitos básicos, de acordo com o autor.

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libertação dessas coisas leva rapidamente ao fim da liberdade”.179

Este é também o argumento que geralmente se contrapõe à liberdade sem amarras institucionais, tal como é justificada pelo ideal liberal, ou seja, afim da possibilidade de existir fora de um quadro normativo de referência.

A imaginação e a correspondente transformação artificial do entorno – tal como estão implicadas na acção do arquitecto – não podem, segundo essa perspectiva, cultivar-se enquanto actividades inócuas ou inconsequentes. Até porque, de acordo com o diagnóstico kantiano, os avanços civilizacionais têm como custo a destruição da condição “natural preexistente”. “A antinomia entre natureza e razão em Kant não deixa alternativa ao sujeito: chegar à razão é destruir a natureza”,180

tal como “atingir a maturidade é esquecer completamente a infância”.

O diagnóstico extremo para o qual factos e opiniões começam a convergir, sobre o impacte e o alcance da destruição natural subjugada pela tecnologia, torna-se assim tema de reflexão fulcral também para arquitectura e deriva na institucionalização de um discurso ecológico, mediado pela palavra “sustentabilidade”. Daí a relevância que se atribui neste trabalho à problematização sobre as formas de organização colectiva e à enunciação comprometida com a dificuldade de passar do “estado de natureza” ao “estado de razão”, sem destruir a natureza no processo. Segundo Kant, “a resposta, resumidamente, é dada pela cultura como processo de educação estética.” A cultura, ou seja, a identificação do “comum”,181

torna-se instrumental para a transição, que “permite passar da natureza à razão sem destruir a natureza”.

Friedrich Schiller, na interpretação que faz derivar de Kant, observa entretanto a educação enquanto processo fundamentalmente histórico: explica que a humanidade não alcança o estado moral pela rejeição da natureza, mas pela reinterpretação da natureza mediante um processo histórico. E em consequência, fornece a resposta institucional ao irrefreável processo de emancipação humanista, ao determinar que a razão deve substituir a crença, o que correspondeu histórica e institucionalmente, à substituição da Igreja pelo Estado. “Para que [a transição] aconteça, torna-se necessária uma instituição intermédia, que tem de ser capaz de dar corpo ao processo da cultura pelo qual o carácter da humanidade se prepara para o

179 Roger Scruton, As Vantagens do Pessimismo, p. 49. O que se escreve subentende a opinião que o

“liberalismo” deva compreender a “justiça social”, o que vem situar a reflexão no âmbito político fundado no século XIX, designado por “liberalismo social”. Convém notar que difere do “liberalismo clássico”, visto que admite como papel legítimo do Estado a interferência nos assuntos sociais e económicos, de forma a assegurar o apoio em caso de desemprego, doença e educação, ao mesmo tempo que assegura a universalidade dos direitos civis.

180 Bill Readings, A Universidade em Ruínas, p. 72.

181 A referência à “cultura como suporte comum” equivale-se aqui à referência da “cultura como

expressão identitária”: sendo aquilo que, excepcional, nos caracteriza e diferencia perante os outros, não deixa de ser também uma condição comum a todos os homens, esse existir na cultura.

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estado da razão (…) e identifica essa instituição intermédia como sendo a universidade.” 182

Na origem do projecto da instituição universitária esteve também um desígnio identitário, baseado na delimitação das fronteiras físicas e conducente ao reforço de uma ideia de estado-nação. Mas a resiliência temporal da ideia, que ultrapassou o propósito inicial de reforço da coesão de uma comunidade política, não compromete a validade da premissa: isto é, reconhece-se ao papel desempenhado pela estrutura, na organização da escolarização pública, suficiente actualidade, à escala global.

Desde logo, adverte-se que se exclui do debate a natureza e o sentido da formação pré-universitária, aceitando-se como a priori a sua finalidade diversa (e propedêutica) face à formação universitária. Apesar de não se defender que a escolaridade inicial se destine “apenas” a garantir a aptidão elementar para a coexistência e a convivência do indivíduo no entorno social (que se afirma cada vez mais complexo), compreende-se que à luz do estado presente dos assuntos, não seja tarefa menor o disponibilizar da matéria necessária para o reconhecimento e a descodificação dos factos e da história, nivelada pelo mínimo múltiplo comum. Não obstante, pela correspondência manifesta com o período de maturação intelectual, argumenta-se a favor da formação universitária enquanto lugar teórico onde o homem se equipa de um arsenal crítico que lhe permite observar e compreender o contexto, adquirindo em simultâneo o instrumentário para realizar a sua conservação ou reconfiguração.

Assumida na sua plenitude, defende-se então para a universidade um papel de catalisador para a formação emancipatória, e como tal, pressupõe-se que deve incorporar o risco de cultivar no indivíduo uma predisposição niilista, tal como se designa a partir do século XIX, a conflitualidade aberta entre a possibilidade e as circunstâncias.183

O ritual de passagem pelo labirinto ontológico, à imagem da demanda simbólica de Teseu pelo dispositivo arquitectónico urdido por Dédalo, deve comportar a possibilidade de incompatibilizar o indivíduo com o sistema relacional precedente. Esse é um risco comum que encontra lugar no espaço universitário, onde o ensino de conteúdos subsiste como o fio frágil tecido por Ariadne, mas de cuja integridade depende a realização plena da democracia.

Ainda nesses termos, a universidade pública configura o lugar universalmente acessível onde se ensina e se aprende. Constitui, na sua forma

182 Bill Readings, A Universidade em Ruínas, p. 72.

183 A personagem Arkádi, no romance de Ivan Turgueniev, Pais e Filhos (p. 29), inaugura a utilização

do termo “niilismo” para designar o homem “que encara tudo do ponto de vista crítico”: “– Niilista – disse Nikolai Petróvich – Isso vem do latim nihil, nada, tanto quanto julgo saber; portanto essa palavra significa um homem que… que não reconhece nada?” “ – Não, não é a mesma coisa. Niilista é um homem que não se curva perante nenhuma autoridade, que não tem fé em nenhum princípio, seja qual for o respeito que rodeia esse princípio…”

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corrente, um legado do século XVIII, referido à influência dos irmãos Humboldt (detalhada no prólogo) e à articulação moderna entre a produção e a transmissão do saber – o ensino e a investigação.184

O contexto académico da universidade pública entende-se aqui ao abrigo dessa correlação e projecta- se tendo em vista a autonomia relativa no uso da razão, como derradeiro espaço aberto à liberdade de pensamento.

Fig. 21 – Ilustração do século XII que acompanha L’Échelle sainte, de Jean Climaque (579-649). A

escada detalha os trinta degraus pelos quais deveria evoluir a espiritualidade dos monges. | Fig. 22 –El

Lissitzky, Tribuna de Lenin, 1930.

De forma análoga à lei, a instituição que desde então se perpetua impõe e obedece a um conjunto de regras e preceitos estáveis, no pressuposto que a relativa permanência dessas regras não é atentatória da liberdade, mas que acaba por se revelar seu garante, face aos circunstancialismos dos assuntos humanos. A codificação da forma serve pois para assegurar a reprodutibilidade do conhecimento analógico relevante, mas também permite sobressaltar a liberdade crítica e intelectual, pondo em questão essa herança. Não há nos opostos designados qualquer paradoxo: são valores complementares, sobre os quais se firma o pacto subscrito entre os que ensinam e os que pretendem aprender.

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