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O CONHECIMENTO INTRATÁVEL

No documento Indisciplina da arquitectura (páginas 100-107)

1.1 GEOGRAFIA CONCEPTUAL 1 CONTEXTO (DIA PRESENTE)

1.2.5 O CONHECIMENTO INTRATÁVEL

Aquilo que é ensinado ou investigado interessa menos do que o facto de ser ensinado ou investigado com excelência. (…) A excelência é como a lógica do dinheiro no sentido em que não tem conteúdo; daí que não seja nem verdadeira nem falsa, nem ignorante nem autoconsciente.

Bill Readings, A Universidade em Ruínas

A hipótese de que exista uma velha precedência, na novidade em epígrafe, adquire agora um contorno espacial. Para compreender como os novos conteúdos correspondem a matéria que se distrai do já tratado, deverá desdobrar-se o espaço habitado em “mundo” e em “imundo”. A categorização artificial que se adopta vem fracturar o conceito unificador de mundo, cuja origem deriva da deusa etrusca Munthu, uma entidade que tinha por função ordenar e ornar. Donde, mundus, adjectivo, aplica-se àquilo que está em ordem, ou bem arranjado e decorado, do qual é apanágio a excelência ordenada que Bolonha publicita. A amplitude unitária que hoje se atribui à expressão, teria sido adquirida por via da tradução romana posterior do termo grego cosmos, para o latim mundus, significando o grande ordenamento universal que a respectiva Declaração sublima para o ensino universitário europeu.

Fracturar a ordem do contrato, para isolar a figura do “imundo” – recolhido na concepção (vagamente metafísica) de Agostinho da Silva208

– serve para representar tudo quanto não encaixa no “unanimismo”, ou seja,

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aquilo que se afigura à partida impensável e indizível, ou gerador de inquietação. Ignorar a complementaridade entre o conhecimento útil e o conhecimento inútil, poderá cumprir uma necessidade higiénica de ocultação, mas não ilude a obrigação de compatibilizar, através da cultura, dois âmbitos indivisíveis do ser. Só a unidade das diferenças traduz um mundo, que mesmo tornado produto mercantil, ainda assim comporta resto.

O conhecimento dito útil predestina-se idealmente para uma acção directa e pode ser agilizado de forma a corresponder a uma aplicabilidade. Ajustada pela particular concepção da realidade positiva presente, a melhor qualidade do adjectivo “útil” é aquela que confere ao substantivo que o precede a possibilidade de quantificação, ao passo que o complementar “inútil” se despreza como resíduo – naturalmente, a erradicar. Por isto, o mesmo contrato que institui medidas disciplinares tendentes a apurar a excelência, subentende o propósito anexo de contrariar toda e qualquer contemplação ineficiente, entendida como desviante.

Um idiota preguiçoso continua sempre a ser um idiota! E um preguiçoso inteligente é alguém que reflectiu acerca do mundo onde vive. Não se trata, pois, de preguiça. É tempo de reflexão. E quanto mais preguiçoso fores, mais tempo tens para reflectires. E é por isso que no oriente, isso se designa por filosofia oriental. A maior parte das pessoas tem tempo. Quanto mais se desce para sul, mais encontramos poetas, magos, pessoas que reflectiram sobre o mundo.209

Ao mesmo tempo que recrudesce a violência com que se disciplinam as derivas inúteis, a degradação ambiental abre espaços alternativos de contestação pública, dirigidos ao refreamento do desígnio artificial produtivista. Afloram ao espaço social e político expressões revolucionárias originais – ecosofia,210

externalidades,211

decrescimento sustentável212 – que levam à requalificação do sentido humanista resistente, dirigido à desmontagem do já sabido. Se os tratados fomentam uma expressão unívoca para a “produção de conhecimento”, há vozes em sentido contrário, que denunciam a degradação da cultura, mediadora da relação do homem com a natureza: e basta um relance à história para recuperar uma valoração do conhecimento na plena consciência da sua finalidade “improdutiva”. É sabido que o sentido crítico conduz o homem a um recife de aporias, que inviabiliza a resolução técnica ou artística dos problemas: desde a Grécia Clássica que a

209 Albert Cossery, Mandriões no Vale Fértil.

210 Félix Guattary, Las três ecologias, p. 8. Segundo Guattary, apenas uma articulação ético-política

que designa por ecosofia, que compreende os três registos ecológicos – meio ambiente, relações sociais e a subjectividade individual – será susceptível de apreender as causas por detrás de uma dimensão regressiva conjuntural.

211 Ao contrário do termo sustentabilidade, que passou a servir para desviar para um domínio

inverificável e impreciso qualquer conjunto de relações de causa e efeito, as externalidades objectivam os efeitos directos de uma escolha política ou económica, em que o mecanismo de acção ou produção não cobre a totalidade das consequências ou efeitos.

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potencial incompatibilidade entre Pensar e Fazer ficou enunciada, ao ponto da própria sociedade ateniense se ter preocupado com a sustentação jurídica, que garantia a separação entre o pensamento e a produção.

Não resulta estranho, verificar que um desenvolvimento no sentido da conquista da liberdade individual, que teria caracterizado o período que vai do renascimento ao dealbar do liberalismo do século XVIII, venha mais tarde a regredir em resposta à “necessidade” de organização do trabalho, fundamental ao industrialismo. Tanto a anulação do conhecimento da história – e da correlativa possibilidade de compreensão dos acontecimentos e das ideias que lhe imaginamos corresponder – como a presunção da impossibilidade de veicular um conhecimento cujo carácter se entendia como relativamente permanente, concorrem finalmente para a aceitação pacífica da ordem presente.

Actualmente, as forças que reclamam a aplicação da bitola tecnocrática, não encontram fulcro no conhecimento arcaico, nem manifestam interesse em questionar a ordem presente. Basta que se certifique pela excelência, cuja condição suficiente passa por excluir do perímetro onde se fomenta o sistema de crescimento económico linear, qualquer tipologia esdrúxula. Isto, à vista das recentes e comprovadas inconveniências dessa mecânica, o que implica uma medida de teimosia no assumir da economia mercantil como vantagem ilimitada.

Será portanto à revelia do conteúdo, que Bolonha expurga o conhecimento intratável. Como tal e para tal, potencia uma formação de natureza técnica, em detrimento da vertente filosófica ou humanista, que se julga desnecessária para alimentar uma máquina de oferta e procura que se tem por irrefreável…

Nessa linha, os planos de estudo passam a privilegiar a capacidade de adaptação às novidades do sistema tecnológico, e para tal, aplica-se o inevitável somatório de aprendizagens leves, rápidas e curtas, “distribuídas ao longo da vida” (repete-se), em prejuízo de uma formação de base pesada, lenta e extensa. Já se alegou que a expressão “aprendizagem ao longo da vida” resulta equívoca no meio do desígnio para a flexibilidade formativa, quanto mais não seja porque os lugares pré-dimensionados na engrenagem produtiva, a que se endereçam os estudantes “sensíveis às necessidades do mercado”, não se costumam compadecer com a contemplação. Donde, advirá superior interesse em fragmentar a aquisição do saber segundo etapas cada vez mais sumárias, optimistas de que a agilidade e a actualização permanente sirva para iludir o fantasma da obsolescência funcional.

Não deixa de ser intrigante, à vista da estrutura flexível e dinâmica, imaginar em que firme pressuposto se fundará a certeza de que todo o conhecimento é dúctil e transitório. Tratar-se-á apenas de um subterfúgio para caucionar o desinvestimento na emancipação dos indivíduos, a coberto da

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alegação que o conhecimento servido hoje não só é improcedente, como em tempo fulminante, devirá inútil?

Sem obstar a que carece reagir às urgências operativas impostas pelas funcionalidades tecnológicas, não se pode iludir o seguinte: o funcional tende a tornar-se rapidamente obsoleto, pela impossibilidade manifesta de acompanhar a fulgurante progressão tecnológica. Pouco se transforma de maneira tão célere quanto a tecnologia e os procedimentos técnicos que lhe correspondem.

Por isso se desconfia da necessidade para actualizar em permanência a significação do ensino e da aprendizagem e se crê que esta urgência fundamentada no conhecimento técnico venha a revelar-se ilusiva: tal como as cidades imaginárias do futuro que figuram em filmes de ficção científica datados, em particular, naquelas que se baseavam no derradeiro vislumbre tecnológico da época, se tornaram rapidamente datadas. A obsolescência rápida de um “presente em bicos dos pés” opõe-se à permanência imaginações futuristas ancoradas às imagens de arquitectura do passado. No capítulo 1.1 constata-se isto, quando a propósito do filme Elysium se alude à equivalência distópica entre um futuro e o presente: uma analogia não se torna significante através do exibicionismo tecnológico, mas através da afinidade com o tipo de degradação material, ideológica e política que, desde logo, nos sensibiliza no presente.

A ilusão de permanência, quer se observe no contexto fugaz da ficção científica ou no contexto resiliente do ensino na universidade, torna-se correlativa ao tema da duração: a rapidez com que as representações do futuro, fundadas no derradeiro suspiro tecnológico, encontram a obsolescência, denuncia o futuro como mero presente que se procura distender de maneira artificiosa. Já a utilização, para o mesmo efeito, das ruínas de um passado comum parece apelar de um modo mais profundo à nossa consciência posicional, tanto no espaço como no tempo: o reconhecimento em contexto ficcionado de lugares onde estivemos, ou permanecemos durante um determinado período, compromete-nos conceptualmente e de forma mais profunda com a nossa possibilidade de superação.

O que agora se descreve de uma maneira genérica, a propósito da delimitação do conhecimento em Bolonha, também colhe no processo de apreensão e conceptualização das imagens de arquitectura. Também a adesão à derradeira contemporaneidade, graças ao efeito de um primeiro impacto sedutor, à moda e às formas tecnológicas derradeiras, do mesmo modo que se constituem enquanto objectos de desejo, também despistam a possibilidade de entender e de criticar. Quando “a diferença entre a má e a boa arquitectura

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reside fundamentalmente no tempo”,213

a presunção de que seja possível ensinar o que muda a cada instante torna-se pouco menos do que numa mera impostura normativa.

O pressuposto que o conhecimento de ontem deixa hoje de servir enferma do equívoco frequente entre as competências (skills), que são algo que se aprende, com aquilo que por ser de relativa permanência – o conhecimento – se pode ensinar (knowledge). Idealmente, a duração de uma formação universitária comportaria o espaço e o tempo suficientes para cumprir conceptualmente este propósito, de familiarização com o conhecimento (knowledge). O que, reitera-se, é diverso do tempo necessário para a formatação de competências (skills), cujo especialização infinitamente complexa e volátil se adquire mais facilmente em contexto directo, profissional.

Fig. 29 – Caspar David Friedrich, Caroline on the Stairs, 1825. | Fig. 30 – Giovanni Battista Piranesi, Tavola VII – Il Ponte levatoio, (559 x 412 mm) in “Carceri d’invenzione”, 1760.

Ao alegar que as imagens tecnológicas derradeiras limitam a duração da ilusão, pretende evidenciar-se a importância para o carácter reactivo da imaginação. A reacção às formas precedentes, que obriga a perscrutar os

213 "The difference between good and bad architecture is the time you spend on it." Afirma David

Chipperfield, citado por Rowan Moore in «David Chipperfield: A Master of Permanence Comes Home», The Guardian (6-02-2011).

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estímulos do passado, é também uma metodologia apontada à (re)descoberta do futuro, que acaba por se objectivar em sentido inverso. A partir de um olhar arqueológico sobre o passado, as visões dos Carceri de Piranesi adquirem uma expressão presente e futura, por contraponto com certas vanguardas arquitectónicas (como o Desconstrutivismo, em voga nos anos 1990), que parecem hoje fatalmente datadas. Ou, de modo análogo, verificar como as representações românticas de figuras humanas ínfimas na escala, contrapostas à imensidão natural do suporte, que Caspar David Friedrich pinta na primeira metade do século XIX, adquiriram o significado do sublime, filtradas pela filosofia existencialista posterior à sua origem.

Os exemplos revelam, por trás de um saber que se diz útil, uma falácia de significação, não descortinável desde o ponto de vista funcionalista. Apesar de ser este conhecimento prático que interpreta em primeira mão o que aproveita à sociedade,214

há que pugnar pela desmontagem crítica dessa evidência, outrora subterrânea. Algo que apenas se pode esboçar fora do âmbito ideológico contaminado pela interpretação moderna funcionalista, a mesma que viria a significar a ideia que entretanto subsiste, da “utilidade” enquanto “funcionalidade”.

A conexão directa da “utilidade” com a “função”, oportunamente traduzida por subsequente avaliação estatística (prometida como científica), traria a legitimidade derradeira e universal aos especialistas que se empenham na validação das arquitecturas conformes. A ciência social tem por desígnio a invenção de um certo tipo de ser humano que consigamos compreender: é baseado em tal simplificação que o rigor estatístico se torna num artifício formidável do poder. Sobre ele repousam os praticantes positivistas ortodoxos, apostados em objectivar o estreito âmbito “proveitoso” da acção, que se traduz na interpretação funcional imediata. Porque, apesar de datada e circunscrita historicamente, a interpretação utilitária ainda se afirma no ensino corrente, traduzida a partir da formulação moderna que fragmentaria o mundo em pequenas porções, para o tentar compreender, sem jamais o conseguir voltar a reconstituir – de maneira aceitável. A estrita ênfase nas competências e na proficiência fragmentária limita-se pois à perpetuação do sistema social, político e económico, que nesta sede se aponta injusto e não perpetuável.

O artifício imaginado para o ensino, em que o conhecimento é articulado favorecendo este tipo de funcionalidade (não será designada, de ora em diante, por utilidade) colide com a estranheza, a inexactidão e a indeterminação que rege a imaginação. A ciência – comprove-se – nunca

214 Uma certa definição da Arte expressa-a enquanto saber inútil. O que pode definir a obra de arte é o

facto de esta não ser concebida e produzida com um propósito funcional. Não sendo por isso que a sociedade deixa de lhe reconhecer importância (até ver). Poucos exemplos haverá, que melhor demonstrem a distorção que se pode gerar entre um pressuposto de funcionalidade e uma subsequente atribuição de valor.

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avançou segundo uma progressão linear, mas por “paralogismo”.215

Isto é, progride de acordo com uma certa errância, que se faz à custa de tentativa e erro, apresentando-se na sua natureza como sistema alternativo que, não se sobrepondo ao sistema social presente, a espaços se intersecta. A “produção” e a “disseminação” de conhecimento referem-se, em suma, a processos não antecipáveis, que incorporam o risco de uma magra correspondência entre o investimento e o resultado obtido. E não se trata apenas da potencial investigação, mas também das reverberações imprevisíveis que o ensino acaba por gerar, no contexto da universidade – entendido como lugar privilegiado para produzir e esgrimir conhecimento.

O que enfim se argumenta, é que carece ao declarado em Bolonha uma conceptualização crítica para a utilidade do conhecimento – inscrevendo o saber num contexto amplo, por exemplo referido à lógica expressa por Bertrand Russell no ensaio ‘Useless’ Knowledge 216

– para se encontrar uma significação mais generativa.

Perhaps the most important advantage of ‘useless’ knowledge is that it promotes a contemplative habit of mind. There is in the world too much rediness, not only for action without adequate previous reflection, but also some sort of action on occasions on which wisdom would counsel inaction.217

Russell refere-se a um tipo de correspondência que não limite o conhecimento ao conjunto de ingredientes susceptíveis de informar uma proficiência técnica, mas que o considere como um bem em si mesmo, importante para que cada indivíduo possa formar uma perspectiva alargada e humana sobre a vida em geral.

Segundo esta perspectiva, a universidade não existe para produzir os melhores servidores do estado, mas para fabricar uma vantagem indirecta: ao invés de servidores, a universidade cultiva sujeitos. “É este o objectivo da pedagogia da Bildung,218

que ensina a aquisição de conhecimento como um processo e não como um produto”.219

Onde, imagina-se que o sujeito possa aprender as regras do pensamento e não um conteúdo de conhecimento específico. Para que assim possa ser, o que se espera de um professor é que transforme a pedagogia em puro processo (segundo Fichte). Ou seja, que em vez da transmissão curta e rápida de factos (que melhor se podem aprender a partir de livros, cuja leitura deixa espaço à

215 Paralogismo: erro de raciocínio, cometido de boa-fé.

216 “Utility and culture, when both are conceived broadly, are found to be less incompatible than they

appear to the fanatical advocates of either.” Bertrand Russell, “‘Useless’ Knowledge”, in In Praise of Idleness, p. 21.

217 Bertrand Russell, ‘Useless’ Knowledge, in In Praise of Idleness, p. 24.

218 Os idealistas alemães do século XVIII e século XIX propõem como modo de reintegrar a

multiplicidade de factos conhecidos numa ciência cultural unificada a Bildung, o enobrecimento do carácter.

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reflexão autónoma),220

espera-se que cumpra dois desígnios: fazer uma narrativa – uma história – do processo de aquisição do conhecimento e pôr em prática um processo análogo, pondo o conhecimento a trabalhar: o que deve ser ensinado “não são portanto factos, mas a crítica – a arte formal do uso dos poderes mentais, o processo de formulação de um juízo”.221

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