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O CONHECIMENTO JÁ TRATADO

No documento Indisciplina da arquitectura (páginas 97-100)

1.1 GEOGRAFIA CONCEPTUAL 1 CONTEXTO (DIA PRESENTE)

1.2.4 O CONHECIMENTO JÁ TRATADO

Os planos falham devido àquilo a que temos vindo a chamar efeito de túnel, a não consideração das fontes de incerteza fora do âmbito do próprio plano.201

A refundação proposta em Bolonha relaciona-se com a construção da torre de Babel através do tema da linguagem, pois deve combater o estranhamento das línguas desconformes, razão que teria levado ao colapso da Torre, na falta de uma moldura comum para as palavras incomunicáveis.

Porém, uma interpretação pelo reverso do texto, referida à assimetria de poder e de conhecimento entre os homens, abre mais possibilidades especulativas. O mito figura também o domínio da incerteza, delimitado pela razão, onde a referência narrativa a um deus circunstancial se admite como sinónimo daquilo que os homens não conhecem, ou daquilo que não possam vir a conhecer – por mais que o poder ou a ciência avancem ordens explicativas de possibilidade.202

Sob tal contingência, a parábola adquire um significado oposto, em que a obra de Babel – onde também se pode ler Bolonha – deve ser vista como projecto do homem, destinado a submeter outros homens a uma Ordem, quer resulte esse desígnio de uma aspiração totalitária ou de uma manifestação insensata da liberdade. Ao abrigo dessa interpretação, a Obra ou o Projecto, enquanto representação de unicidade e homogeneização, é desmascarada e confundida: o colapso da construção pode também ler-se como prenúncio de vitória do Homem sobre a Ordem que lhe é imposta e da qual resultam o triunfo da liberdade relativa, da diferenciação, da sublevação, da proliferação das identidades.

O que se faz notar é que a incompreensão perante a benevolência do Projecto, quer se trate de Babel ou Bolonha, começa e acaba no homem, disperso pelo emaranhado das línguas e pelos sentidos que se confundem. A

200 Juan Barja, Julián Jiménez Heffernan, La Hipótesis Babel, p. 57.

201 Nassim Nicholas Taleb, O Cisne Negro, p. 213.

202 “Quanto mais a ciência progredir, mais o homem deverá interrogar-se sobre a sua própria finalidade.

O Deus do ‘como’ desaparecerá um dia, mas o Deus do ‘porquê?’ nunca morrerá.” Amin Maalouf, As Identidades Assassinas, p. 107.

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língua tem a dupla particularidade “de permanecer como eixo da identidade cultural, e a diversidade linguística como eixo de toda a diversidade”.203

De acordo com esta interpretação, a linguagem tanto pode servir como instrumento para a desmontagem do pensamento unânime, como pode funcionar como menor dominador comum intelectual, a bem de uma acessibilidade partilhada. Se uma das vantagens da língua comum passa pela possibilidade de cooperação entre os indivíduos envolvidos na construção, a desvantagem correspondente passa pela uniformização nivelada por baixo, que apresenta o perigo de uma comunhão unanimista na reflexão e na opinião: “a extinção de uma linguagem é portanto a extinção de um modo de ser no mundo, e também, em consequência, de um modo de habitar e de construir”.204

De um dos cenários simbólicos – seja a construção unitária homogeneizada ou o sentido libertador gerado a partir da destruição – poderá nascer a matriz para Bolonha evoluir, consoante a imaginação prospectiva de cada um.

Any serious educational theory must consist on two parts: a conception of the ends of life, and a science of psychological Dynamics, i.e. of the laws of mental change. Two men who differ as to the ends of life cannot hope to agree about education.205

Quando na antiga Mesopotâmia, os homens se fixam tempo “suficiente” no mesmo lugar, as cosmogonias tornam-se mais complexas. Nesse ponto de charneira, onde a terra e a agricultura passam a desempenhar um papel decisivo, “os deuses (da liberdade) que presidiam às viagens são relegados para segundo plano”.206

A viagem, desde então, torna-se numa empresa arriscada, que deve ser pactuada com base em demónios desconhecidos. Por esse motivo, a transitoriedade sempre adquiriu um sentido desestabilizador nas comunidades sedentárias, que passam a temer as agressões, identificadas com a natureza libertária dos nómadas.

Apesar do unânime aplauso que celebrou a inauguração do suporte comunicante prefigurado em Bolonha, há inconveniências importantes na receita: ao pretender fundar uma “comunidade global” sobre um sistema sem resíduo histórico, que admite tudo organizar em função da agilidade dinâmica, o mérito da empresa passa a depender do aproveitamento célere da oportunidade, onde o nomadismo representa manifesta vantagem. Ora, sob o desígnio da velocidade e da produtividade – é sabido que se viaja depressa sem atrito, sem o arrasto do passado – não espanta ninguém a opção pela

203 Amin Maalouf, As Identidades Assassinas, p. 147.

204 Daniel Mielgo Bregazzi, Construir ficciones. Para una filosofía de la arquitectura, p. 113. Tradução

nossa.

205 Bertrand Russell, «Education and Discipline», in In Praise of Idleness, p. 141.

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simplificação operativa dos instrumentos necessários ao conhecimento. Por exemplo, a redução da linguagem ao máximo denominador comum, a que se chega por via da tradução tecnocrática da utilidade por funcionalidade, tem como produto um estreito domínio de significação, demasiado literal e pouco metafórico.

Fig. 27 – Mergulho motorizado do 15ºandar, de um silo automóvel da Marina City para o rio Chicago, no filme The Hunter, 1979. | Fig. 28 – Cisterna manuelina na Fortaleza de Mazagão, El Jadida, Marrocos, 1541 – 42.

Sob a presente hierarquia de prioridades, o homem novo deverá pautar as escolhas pela funcionalidade. A mesma racionalização, que havia questionado a utilidade de bibliotecas seculares, fechando ostensivamente – apropriando a citação de Jorge Luís Borges – “as portas para o passado”. “Diz-se que, quando os subalternos perguntaram a Omar o que deveriam fazer da maravilhosa biblioteca [de Alexandria], onde na altura havia setecentos mil rolos, de poetas escritores e filósofos gregos, este terá respondido: ‘Se o que está escrito neles também está no Alcorão, é porque não são necessários. Se o que está escrito neles não está no Alcorão, é porque são nocivos’.”207 Mesmo sem estar garantida a precisão histórica do diálogo, o episódio alimenta o mito da perda da biblioteca e de todo o seu acervo.

Ao assumir-se a uniformidade e a acessibilidade universal como propósito, tornando superlativo aquilo que é ágil, defende-se tudo quanto tira da mobilidade uma vantagem. A liberdade e a democracia, por exemplo,

207 E.H.Gombridge, Uma Pequena História do Mundo, p. 141. A citação refere-se a Omar,

representante de Maomé (califa), que liderava o exército árabe que viria a conquistar, entre outras cidades da Palestina, Pérsia e do norte de África, a grandiosa Alexandria, por volta de 630 d.C. Teria sido o responsável – intransigente na defesa de uma Verdade que não admitia contraditório – pela destruição da Grande Biblioteca de Alexandria. De qualquer forma, não seria a última vez na História que se queimaria livros.

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começam por ser pequenas fracturas nos interstícios dos impérios sedentários: e por isso nascem no Mediterrâneo, através da viagem e do comércio, com a mudança de estado e de lugar.

Porém, a mesma agilidade que concorre para a mitigação de identidades sectárias, também acaba por convir à pilhagem: isto é, a elegia da universalidade e a correspondente abolição dos limites fronteiriços, torna-se propícia à proliferação da barbárie, onde a prevalência prosaica do mais forte marca o declínio de muitas construções comuns, baseadas em valores outros que não a eficiência beligerante. Ao bárbaro, com efeito, nada serve para além do conhecimento funcional: não há figura que melhor proveito faça dos conteúdos nómadas, em porção suficiente para não atrasar o galope da montada. A planura ideológica que campeia Bolonha adivinha-se ideal para facilitar o avanço dos cascos leves e das lanças certeiras: orientados pela singular visibilidade que as palas concedem à perspectiva das bestas, rumarão em simbiose “proactiva” a uma próxima oportunidade predatória.

No documento Indisciplina da arquitectura (páginas 97-100)