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LÍNGUA TÉCNICA E LÍNGUA DA TRADIÇÃO Para ser inteiramente moderno, é preciso ser antimoderno

No documento Indisciplina da arquitectura (páginas 144-152)

2.1 ENQUADRAMENTO 1 O ESTADO DA QUESTÃO

2.1.5 LÍNGUA TÉCNICA E LÍNGUA DA TRADIÇÃO Para ser inteiramente moderno, é preciso ser antimoderno

Continua o autor: “desde os tempos de Marx e Dostoiévsky até ao nosso próprio tempo, tem sido impossível apreender e aproveitar as potencialidades

295 Kevin Lynch, A Boa Forma da Cidade, p. 215.

296 Daniel Mielgo Bregazzi, Construir ficciones. Para uma filosofía de la arquitectura, p. 271.

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do mundo moderno sem se revoltar e lutar contra algumas das suas realidades mais palpáveis”. Talvez por isso não surpreenda a ligeireza apolítica com que a “linguagem nova” se afirma hoje, sem cuidar de decifrar quer o significado da novidade, quer aquilo que entretanto se faz da “velha”.

A hegemonia do pensamento sectorial especializado e a prevalência da língua técnica que lhe corresponde configura uma realidade equívoca, cuja expressão combinada contribui para que não se atribua outro sentido à arquitectura senão esse, de ser aquilo que as obras construídas são.

Essa delimitação que se desenha sobre uma “prenunciada morte do humanismo”298

, acompanharia a obsolescência do relato e do livro enquanto suporte para a perpetuação do saber.

Porque a língua técnica se encontra integrada299

no sistema reprodutivo prevalecente, a sua desmontagem depende da observação conduzida a partir de territórios marginais. Nesse sentido, a escola pública de arquitectura poderia constituir-se como parte dessa periferia crítica, ensaiando a possibilidade de reflectir a uma escala abrangente as consequências implícitas na natureza aparentemente objectiva das acções sectoriais. Mas acontece ao contrário do que seria de supor: o humanismo também não parece capaz de resistir através da universidade, ferida na autonomia por incapacidade de se auto financiar.300

Por isso se lamenta a época pós-moderna em défice face às humanidades, e em particular o presente contexto, como vítimas dessa perda. Para além da imposta objectividade que asfixia o livre pensamento, a tertúlia de amadores de cariz humanista ter-se-á retraído em medida equivalente à emergência da profissionalização e do seu correspondente “especialista” – esse “alguém que sabe cada vez mais, sobre cada vez menos”.

De maneira correspondente, os territórios de encontro entre saberes tendem para o esboroamento, tornando-se cada vez mais esporádicos fora do domínio tecnológico, compartimentado por focos de interesse. Admitindo-se que “a palavra, como a linha, é um material de construção [e que] a escrita e o desenho são técnicas construtivas e estados da arquitectura”301

, as áreas de contacto baseadas na partilha de uma linguagem comum representam o solo firme onde fundar a construção.

Ora, a tentativa de compreensão do estado presente da arquitectura, objectivo declarado deste trabalho, obriga a interrogar a forma como os

298 V. Peter Sloterdijk, Regras para o Parque Humano.

299 V. Umberto Eco, Apocalípticos e Integrados.

300 O Estado funcionalista demite-se do encargo e incentiva as instituições públicas de ensino

universitário à realização de parcerias com entidades privadas, como única opção válida para garantir o financiamento. A governação liberal opõe a matriz do Estado mínimo e as contingências presentes, à independência secular das instituições públicas. Nada deve florescer à margem da matriz economicista, que impõe um limite exíguo à utilidade: o “desejo de ser inútil” (Hugo Pratt) tem-se por imoral.

301 José Joaquín Parra Bañon. Pensamiento arquitectónico en la obra de José Saramago. Acerca de la

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discursos e processos reflectem as alterações à natureza da linguagem, que inevitavelmente suportam e condicionam a ideação.

A enunciação do discurso técnico especializado como declinação particular do fenómeno de saturação da “língua técnica”, é feita por Martin Heidegger, na conferência proferida numa escola politécnica alemã em 18 de Julho de 1962. É depois publicada sob o título Língua de Tradição e Língua Técnica, onde são reflectidas as limitações do discurso de natureza científica e tecnológica. Opondo este tipo de linguagem específica à relação secular do homem com a língua, Heidegger afirmava, já em 1962, uma necessidade de repensar essa relação – antecipando um tema que viria a assumir uma importância decisiva à luz da contemporaneidade.

A crise da linguagem referida aos opostos enunciados por Heidegger eclode na modernidade subsequente à revolução industrial, e às transformações radicais que desestruturam no espaço e no tempo, a relação prévia das comunidades com o contexto tradicional que as suportava. Esse esquartelar da linguagem em pólos opostos agudiza-se na viragem para o século XXI, obrigado pela adaptação tecnológica requerida ao suporte electrónico, que se torna na via Ápia para a troca da informação e das ideias.

Justamente, a “nova” linguagem emerge quando a linguagem “velha” é declarada exígua para explicar o admirável mundo novo. Os optimistas limitam-se a imergir os sentidos no código que garante inteligibilidade entre os iniciados, aceitando os benefícios tecnológicos inerentes. A resistência à mudança, não obstante, apoia-se no pressuposto de que um pensar fora da linguagem correspondente ao empobrecimento do pensamento.

Pode não haver propósito consciente de desconstruir ou mitificar o vínculo entre a forma e o discurso, através do uso do jargão ou do neologismo. Pode tratar-se da mera ênfase dedicada ao processo conceptual de projecto, cuja didáctica se sustenta na manipulação de representações gráficas e conceptualizações geométricas. Isto conduz ao emprego de vocábulos mais referidos à representação e ao seu domínio técnico, do que à proposta habitacional que se representa.

Exemplifique-se a afirmação através do caso histórico da novidade técnica que à sua época generaliza a aplicação modernista de amplas fenestrações em vidro, aos espaços de residência e trabalho. Baseados estritamente na retórica do material e na forma que lhe corresponde, não se pode compreender a devassa a que o sujeito se sujeita quando habita o espaço transparente. Pouco tempo decorrerá entre as duas guerras mundiais, para que a transparência se eleve a desígnio formal, potenciada pela retórica dos manifestos modernistas, que exigiam para o homem do seu tempo o acesso irrestrito entre o interior da habitação e o exterior radioso.

Porém, se a reificação das formalizações cristalinas degenera na proliferação do denominado International Style – torres de escritórios em

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vidro, equivalentes de Nova Iorque até Sidney – a conquista material da transparência esconde consequências políticas opacas. A inspiração para os objectos tecnológicos vítreos não inscreve na sua razoabilidade técnica a memória do palácio de cristal de Dostoiévsky e ignora as sombras que o autor projecta sobre o determinismo panóptico do modelo:

Os senhores acreditam no edifício de cristal, inquebrantável para todo o sempre, ao qual não se pode mostrar a língua às escondidas nem fazer uma figa com a mão no bolso. Quanto a mim, tenho medo desse edifício, talvez precisamente por ser de cristal e inquebrantável por todo o sempre e por ser impossível mesmo às escondidas mostrar- lhe a língua. 302

Pouco se discute nos processos de ensino ou divulgação da arquitectura aquilo que Dostoiévsky antecipava metaforicamente desde idos 1864 e a sua aplicação à urbanidade moderna: quais as consequências físicas, mas sobretudo políticas, da materialização do palácio de cristal.

Fig. 45 – Pierre Chareau, Glass House, 1937. | Fig. 46 – Panteão, Roma, fotografia do autor.

Cerca de oitenta anos depois, em 1948, George Orwell encontraria na realidade da sua época analogias significantes para reconhecer o seu tempo “ao alcance do futuro”: daí, publica 1984, conto onde ficciona um futuro securitário, suportado na mesma arquitectura distópica cristalina que perturbou Dostoiévsky. Ora, sendo a eficiência dos materiais e das técnicas inertes à memória do palácio de cristal, só à imaginação dos homens caberá ponderar os custos da transparência em que radicam os desígnios cristalinos de uma nova moral. Sem amarrar a forma e a materialização arquitectónica a

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uma acção humana imaginada sobre o espaço, não há maneira de corresponder a acção do projectista à experiência subsequente de habitar.

A arquitectura remete-nos sempre ao homem concreto que a habita e a usa. (…) Assim sucede que a cor, as proporções, as medidas dos edifícios, são qualidades apreciáveis ‘desde o uso’, porque se incorporam a esse mundo e nele obtêm a sua plenitude. 303

A existência de uma relação dialéctica entre os mundos da invenção e da recepção pressupõe, em ambos os sentidos – respectivamente, através da imaginação utópica ou da observação experimental – a possibilidade de identificar uma ideia mediadora, para que a comunicação entre as partes tenha lugar. Jürgen Habermas, tal como Heidegger, detém-se sobre a questão da linguagem em Técnica e Ciência como “Ideologia”, para explicar a interdependência entre a “acção racional teleológica”, que compreende as acções instrumentais e as escolhas racionais que objectivam o domínio técnico e a “acção comunicativa”. Nesse sentido, amarra a possibilidade de religação entre as expectativas recíprocas das partes, os arquitectos enquanto detentores de uma técnica e os usuários, enquanto beneficiários da sua aplicabilidade, à validade de normas sociais que se fundam “na intersubjectividade do acordo acerca de intenções, e no reconhecimento geral das obrigações”.304

A legitimidade de tal acordo é então condicionada pela “acção comunicativa” entre as partes, e por isso, ainda segundo Habermas, deve constituir-se como “acção simbolicamente mediada”.305

Como tal, na comunicação pactuada entre indivíduos, trata-se de colocar em discussão – mais do que a compreensão do sujeito actuante ou a análise do objecto que torna manifesta essa acção – a ideia que os relaciona.

Segundo parece, a linguagem não pode encontrar um fundamento suficiente nos estados de quem se expressa, nem nas coisas sensíveis designadas, mas apenas nas ideias que lhe conferem tanto uma possibilidade de veracidade como de falsidade.306

Apenas através da mediação linguística, segundo aquele que é o mais fiável sistema universal de produção de sentido, se pode aceder às razões implícitas nas coisas, ao mundo das ideias.307

Já se viu que a possibilidade de reflectir a arquitectura em contexto colectivo obriga a verbalizar o pensamento: sem exercitar o discurso sobre o objecto não há maneira de resgatar para o domínio do pensamento o ascendente cedido à visualidade das coisas.

303 José Ricardo Morales, Arquitectónica – Sobre la idea y sentido de la Arquitectura, pp. 212 - 213.

304 Jurgen Habermas, Técnica e Ciência como “Ideologia, p. 57.

305 Idem, p. 58.

306 Gilles Deleuze, Lógica del sentido, p. 168.

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E ao mesmo tempo que se descreve um estado dos assuntos submetido à tirania psicológica da imagem, percebe-se que apenas através da palavra – considerada ainda um anacronismo significante – se pode distinguir uma imagem da outra. Neste sentido, a linguagem continua a servir o ensino e a aprendizagem no sentido da precisão, ou seja, continua a funcionar como mediador didáctico para filtrar correspondências improváveis entre as imagens e os seus relatos.

Mas não se observava ainda agora que a palavra não aponta apenas para a convergência de sentido, como “também o seu contrário pode ser verdadeiro”308

? O modo ficcional, na literatura, também constitui um território do duplo-sentido, onde as frases se espacializam em imagens nas arquitecturas verbalizadas de Kafka, Borges, Calvino ou Perec – para resgatar, desde logo, alguns exemplos emblemáticos.

José Joaquin Bañon analisa a obra literária de José Saramago para ali indagar a existência de um “pensamento arquitectónico”.309

Percorre, em sentido inverso, o pressuposto de que “a linguagem precede a arquitectura: (…) encontra-se sempre a linguagem na origem do construir, pois a construção requer sempre um consenso”.310 A sua ideia de procurar a arquitectura na sua condição de suporte para ficção de Saramago, neste caso uma ficção literária, constitui um referente para o tipo de desmontagem analógica que se realiza neste trabalho. O recurso à ficção tenta recuperar o “enquadramento humanista” em que o sujeito e o suporte, a acção e o propósito, o espaço e o tempo, coexistem no mesmo plano. Bañon acredita que o pensamento arquitectónico habita o espaço entre a palavra que anima a imagem e a imagem impregnada de palavras. E que a interdependência entre a linguagem e a construção, real ou ficcionada, fica suspensa pela natureza do discurso que se verte sobre o objecto:

Há um estado da arquitectura, um momento no processo de criação (da sua descoberta ou invenção) que pertence ao âmbito da palavra. Talvez na imensa maioria dos processos, independentemente do que se esteja a criar (pensar ou produzir), ainda que não atenda a leis universais ou a princípios que se possam enunciar, intervém de uma ou outra maneira, num momento ou noutro, a palavra.311

A possibilidade de transformação do mundo prefigurada pela arquitectura nasce então nesse propósito pactuado, vinculado à linguagem, que precede a imaginação figurativa particular emanada dos especialistas. Porque essa prefiguração encerra um enunciado utópico – projecta-se no futuro – a proposição arquitectónica requer consensos para ser levada à prática. E

308 O que Fernando Távora apontava, a propósito da arquitectura, serve aqui à palavra.

309 V. Cap. 2.2.3 (In)Disciplina e “Pensamento Arquitectónico”.

310 Daniel Mielgo Bregazzi, Construir ficciones. Para una filosofía de la arquitectura, p. 108.

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reclama uma eventual concordância prévia, também linguística, sobre factos do passado. Com a implicação alargada da actividade a vários recintos disciplinares, a possibilidade de selar esse pacto continua a depender da língua da tradição, que é transversal a diferentes contextos.

No que concerne à utilidade para a “arquitectura” com base no seu recorte actual, a linguagem vem permitir a decantação sucessiva segundo um discurso ético, ou estético, ou político, descrevendo-se para o efeito sequências e séries de actividades do homem, que se percebem relacionadas com o tema que se tenta circunscrever: “é preciso perceber que os limites da acção política são os limites da linguagem”312

.

Os limites referidos circunscrevem uma amplitude divergente, onde ramifica uma relação multíplice entre significante e significado. A imprecisão na correspondência começa por ocultar-se à luz das primeiras interpretações racionalistas, como fica expressa na claridade clínica que emana da primeira aproximação de Ludwig Wittgenstein ao tema da linguagem – no Tractatus Logico-Philosophicus. Seguindo então uma aproximação lógica ao tema, Wittgenstein resumia o problema do sentido através da associação unívoca entre a palavra e o objecto: de acordo com a sua construção cristalina, as palavras encontrariam o seu sentido significando objectos, e portanto, a cada forma, corresponderia o seu sentido. Através da identificação unívoca de um sentido fundacional, a palavra “arquitectura” teria uma tradução conclusiva, através dos edifícios que pontuam as articulações significativas da sua própria história.

Mais tarde, o filósofo virá contrariar o pressuposto anterior de que uma significação única emana de cada vocábulo: uma palavra poderia afinal adquirir vários significados. Isto continuará a não ser válido para todas as palavras, visto que se encontram termos cujo sentido é estrito. Mas aplica-se às palavras que estão na vizinhança temática que nos ocupa, como seriam exemplos “beleza, ética, religião, política, arte… e arquitectura”. Dos seus escritos coligidos post mortem, consultados na súmula Philosophical Investigations313

(1953), retira-se a possibilidade de entender a linguagem como ferramenta, em que a aferição do sentido das palavras se verifica a partir do conjunto de usos que estas comportam.

Ainda de acordo com a interpretação que se faz dos “jogos de linguagem” de Wittgenstein, ao implicar o significado das palavras com a analogia – portanto, sugerindo-se a amarração cúmplice à imagem e aos significados intuídos – sedimenta-se uma estrutura da linguagem de conexões rizomáticas, o que é determinante para fabricar uma concepção da realidade. O oposto, defendido na filosofia prévia do Tractatus, trazia a potência da linguagem concentrada no horizonte finito da imanência e da correspondência unívoca.

312 António Guerreiro, «Ao Pé da Letra», Expresso (3-7-2011), p. 34.

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Ainda em linha com o diagnóstico do estado da questão, observa-se que são os limites da linguagem – a amplitude que se define para o “tabuleiro onde jogam as palavras”, de Wittgenstein – que pactua a relação entre os indivíduos, atribuindo-lhe uma delimitação no espaço e no tempo. Sem este plano instrumental comum torna-se impossível falar sobre as coisas em epígrafe, pois “no que toca à arquitectura, o hábito determina inclusivamente a sua recepção visual”.314

Sob a delimitação disciplinar vigente, sem acautelar um campo próprio para correlacionar uma maior amplitude de causalidade, denuncia-se a dificuldade escolar em inscrever na actividade de projecto uma narrativa referida a um estado dos assuntos. Considera-se essa condição, aliás, necessária para recuperar o sentido da experiência dos utilizadores da arquitectura, já que esta depende de um tempo dedicado a descrever e a interpretar os acontecimentos, através do instrumento da linguagem.

A palavra liga a marca visível à coisa invisível, à coisa ausente, à coisa desejada ou temida, como uma frágil ponte improvisada sobre o abismo. Por isso o uso correcto da linguagem para mim é o que permite aproximar-nos das coisas (presentes ou ausentes) com descrição, atenção, cautela, respeitando o que as coisas (presentes ou ausentes) comunicam sem palavras.315

De uma forma ou de outra, “só a língua permite ao homem ser este ser vivente que ele é enquanto homem”316

: em âmbito real ou ficcional, sempre se contam histórias. Nas praças das cidades do norte de África, nós de convergência dos labirínticos souk, ainda é possível testemunhar o encontro na oralidade entre os contadores de histórias e os seus ouvintes: ali se perpetua a matéria significante que distingue a cultura. E ali se torna manifesta a importância da narrativa e da história, para conferir sentido às imagens e às experiências fragmentárias.

São os contadores de histórias que mais público têm. À sua volta formam-se densos e atentos círculos de gente. Os ouvintes permanecem longo tempo acocorados no chão, em seu redor, escutando os extensos recitativos. Outros ouvintes, porém, de pé, formam círculos exteriores. Também estes se mantêm quase imóveis, fascinados pelas palavras (...) As suas palavras vêm de muito longe. Por isso ficam suspensas no ar, durante muito mais tempo do que as ditas por homens vulgares.317

Nas palavras suspensas da narração inscrevem-se as imagens, os espaços e as memórias, que cada qual figura de acordo com a sua experiência particular – somando-lhe cheiros, paladares, impressões. Em oposição ao

314 “As regards architecture, habit determines to a large extent even optical reception.”Walter

Benjamin, The Work of Art in the Age of Mechanical Reproduction (1936).

315 Italo Calvino, Seis Propostas para o Próximo Milénio, p. 94.

316 Martin Heidegger, Língua de Tradição e Língua Técnica, p. 30.

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lugar-comum que se limita a aceitar “a imagem equivalente a mil palavras”, argumenta-se que neste estado da questão, a explicitação restrita expressa pela forma ou pela sua imagem constrange a viagem imaginária possível.

A narrativa de Marguerite Yourcenar – que empresta a sua escrita às reflexões do imperador Adriano no relato da reconstrução do Panteão de Agripa318

– constitui um paradigma notável para a descrição verbal de uma construção. As palavras empregues amarram a enunciação dos propósitos da obra aos elementos materiais e conceptuais que conformam o espaço. Fazem- no, exaltando um conjunto de ideias significantes, como são exemplo o espaço, o tempo [solar, histórico], a matéria, a luz [e a sombra], o movimento, o simbolismo [deus], ou a representação [a dúvida]. Deixa-se o excerto, exemplar da forma como a linguagem precede a arquitectura, na perspectiva que dá a ler o desígnio, a intenção ou o arbítrio do imperador Adriano e depois dará lugar ao artifício concreto – figurado de uma certa e, por vezes, extraordinária maneira.

Eu mesmo tinha corrigido os planos demasiado tímidos do arquitecto Apolodoro. Utilizando as artes da Grécia como uma simples ornamentação, um luxo acrescentado, tinha remontado, pela própria estrutura do edifício, aos tempos primitivos e fabulosos de Roma, aos templos redondos da Etrúria antiga. Tinha querido que este santuário de Todos os Deuses reproduzisse a forma do globo terrestre e da esfera estelar, do globo onde se encerram as origens do fogo eterno, a esfera oca que contém tudo. Era também a forma daquelas cabanas ancestrais onde o fumo dos mais antigos lumes humanos se escapava por um orifício situado no topo. A cúpula, construída de uma lava dura e leve que parecia participar ainda no movimento ascendente das chamas, comunicava com o céu por um grande buraco alternadamente negro e azul. Este templo aberto e secreto era concebido como um quadrante solar. As horas rodariam naqueles caixotes cuidadosamente polidos por artífices gregos; o disco do dia ficaria ali suspenso como um escudo de ouro; a chuva formaria no pavimento uma poça de água pura; a oração

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