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A cidadania no Ultramar português

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Academic year: 2019

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Cristina Nogueira da Silva

Constitucionalismo e Império

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NOTA PRÉVIA 5 INTRODUÇÃO 7

1. O indígena na literatura colonial dos finais do século XIX-início do século XX

13

2. O indígena nas políticas coloniais da Monarquia constitucional ... 32

3. Colonialismo e anti-colonialismo no pensamento político dos sécs. XVIII/XIX. 52 3.1. O pressuposto da “civilização”. ... 61

3.2. Direito Internacional e colonialismo. ... 65

3.3. Silvestre Pinheiro Ferreira anotando Vattel. ... 69

3.4. Economistas e colonialismo : a utilidade das colónias. ... 72

3.5. Pragmatismo, nacionalismo e utilitarismo ... 76

3.6. O “anti-colonialismo” de Jeremy Bentham. ... 79

3.7. A Revolução francesa e a representação política das colónias ... 89

3.8. A Revolução liberal espanhola e a representação política das colónias ... 93

4. O modelo vintista positivado. ... 96

4.1.Uma unidade instável: uma Nação de terras descontínuas, distantes e diversas96 4.2. Os laços da liberdade. ... 99

4.3. Uma unidade instável: a desconfiança e o “ciúme”. ... 103

4.4. Especificidades ultramarinas: diversidade de interesses, diversidade de normas. 109 4.5. Especificidades “intra-ultramarinas”: África e Ásia ... 111

4.6. A unidade da Nação e o contratualismo federal: Nação, Pátria(s), Indivíduos114 4.7. Conclusão ... 119

5. Unidade e diversidades no primeiro texto constitucional português ... 124

6. O dogma da unidade e da representação política do ultramar na Carta constitucional e na Constituição de 1838 ... 125

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6.3. Os conhecimentos locais. ... 132

6.4. Conclusão: a representação política como símbolo ... 136

7. A cidadania das populações do ultramar no direito constitucional português do século XIX 143 7.1. Estado Nação e igualdade dos estatutos pessoais ... 143

7.2. Direitos naturais, direitos políticos, direitos civis, nacionalidade ... 146

7.3. Direitos políticos e cidadania no constitucionalismo português. ... 159

7.4. Direitos civis e cidadania ... 163

7.5. O estatuto político e civil das populações do ultramar. ... 165

7.5.1 Os cidadãos portugueses do ultramar... 167

7.5.2 Cidadania portuguesa e catolicidade ... 183

7.5.3 O Código civil de 1867 e os “usos e costumes” dos povos nativos. ... 212

7.6. Conclusão ... 232

8. Em transição para a cidadania. ... 234

8.1. Os escravos ... 237

8.1.1. A escravidão nos textos constitucionais portugueses ... 237

8.1.2. A doutrina jurídica portuguesa e a escravatura. ... 245

8.1.3. Contexto político-ideológico das discussões constitucionais sobre os escravos 252 8.1.4. Aplicações pátrias. ... 265

8.2. Os Índios ... 287

8.2.1. A independência do Brasil e a obliteração constitucional dos “nativos” ... 299

8.2.2.A alienabilidade do território ultramarino e o consentimento das populações 305 8.3. “Missões civilizacionais” ... 308

8.3.1. Um paradigma iluminista ... 313

8.3.2. Um paradigma utilitarista ... 315

9. Os “quase cidadãos” ... 321

9.2. Vassalos e cidadãos. ... 321

9.2.1. Estrangeiros atípicos: os sobados ... 325

9.2.2. O direito internacional: “entre civilizados”, “sobre incivilizados” ... 328

(4)

9.3. Graduando os cidadãos: os libertos. ... 354

9.3.1. A discussão vintista ... 357

9.3.2. A condição dos libertos na Carta e na Constituição de 1838 ... 367

9.3.3. A condição dos libertos no Acto Adicional de 1852 ... 368

9.3.4. As leis eleitorais. ... 376

9.3.5. A doutrina jurídica... 377

9.3.6. O sentido liberal da palavra liberto ... 380

9.3.7. O estatuto dos libertos como estatuto civil. ... 382

9.3.8. Cidadania constitucional e menoridade civil ... 390

9.3.9. De libertos a ingénuos ... 392

9.3.10. Ingenuidade e vadiagem ... 399

9.3.11. Conclusão ... 402

10. Diferenças “intra-ultramarinas”: América, África, Ásia... 406

10.1. Constituição de 1822 ... 406

10.2. A Carta Constitucional e a Constituição de 1838 ... 411

10.3. A “especificidade ultramarina” na Constituição de 1838: antecedentes 414 10.3.1. “Assimilacionismo” e “especialização” nos anos ‟30. ... 414

10.3.2. A Madeira e os Açores não são “ultramar” ... 420

10.4. Constitucionalização da diferença ultramarina e des-constitucionalização do ultramar (Constituição de 1838, legislação de 1842-43, Acto Adicional). ... 422

10.4.1. Os fins explicitados: distância/ urgência/ conhecimento. ... 424

10.4.2. A Constituição e o princípio do “governo limitado” ... 425

10.4.3. Os direitos políticos dos “povos” do ultramar. ... 427

10.4.4. A universalidade do governo representativo e dos direitos ... 429

10.4.5. Os “cidadãos ultramarinos” e a participação política ... 431

10.4.6. A representação ultramarina no Parlamento como álibi ... 432

10.4.7. Outras formas de participação política ... 434

10.4.8. “Missão civilizacional” e assembleias legislativas ... 436

10.4.9. Os fins ocultos da “especialidade” das leis. ... 438

(5)

10.4.11. Conclusão ... 446

11. Assimilacionismo legislativo ... 455

11.1. Execução progressiva dos Códigos ... 455

11.2. Aplicação da legislação metropolitana ao ultramar ... 457

11.3. Adaptação dos Códigos ... 460

11.3.1. Codificação administrativa ... 461

11.3.2. Codificação penal ... 463

11.3.3. Leis de organização judicial ... 466

11.4. Administração da justiça ... 472

11.4.1. Especialidade na administração da justiça no ultramar ... 479

11.5. Administração civil ... 491

11.5.1. Divisão administrativa do território ... 491

11.5.2. Os órgãos locais da administração ... 495

11.6. Legislação eleitoral ... 506

12. Conclusão ... 517 Bibliografia 527

NOTA PRÉVIA

Este livro corresponde, no essencial, à dissertação de doutoramento defendida na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa no ano de 2005. A sua organização interna é praticamente a mesma, sendo apenas de destacar a recente elaboração da introdução, a revisão formal do texto, para a sua edição, e algumas actualizações bibliográficas, resultantes de leituras entretanto feitas e cuja incorporação no texto original se revelou importante. Como a explicação da organização do trabalho está feita na referida introdução e no capítulo inicial, vou aproveitar este espaço para agradecer às pessoas que me acompanharam e me apoiaram durante e a realização do trabalho que conduziu à publicação deste livro.

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perspectivas teóricas a partir das quais esses temas podem ser compreendidos estão presentes nas páginas deste trabalho. Foi ele quem me chamou a atenção para um dos lados mais sombrios do pensamento liberal contemporâneo, o da sua convivência com o imperialismo e a colonização. Sem, contudo, me ter feito desistir de olhar para o lado mais luminoso daquele(s) pensamento(s), a força expansiva dos conceitos, neles inventados, de liberdade individual e de igualdade, e mesmo o seu apelo a um esforço (na aparência contraditório) de reconstrução racional do mundo.

Ao Professor Valentim Alexandre, pela sua disponibilidade e também pelas críticas que nunca deixou de tecer aos textos que lhe fui enviando. Sem essas críticas e sem as coordenadas definidas pelo seu conhecimento sobre a história do Império português na época contemporânea e os seus diversos contextos temporais e geográficos eu ter-me ia enredado ainda mais na(s) lógica(s) internas da narrativa doutrinal e política. São muitos os riscos que esse enredo comporta: a subtracção simplificadora dessas narrativas aos contextos políticos e sociológicos sem os quais elas passam a ser descritas de forma acrítica e, no limite, a legitimação dessas narrativas e dos comportamentos que lhes estiveram associados.

É dispensável referir que, apesar de orientadores, não são responsáveis por eventuais desorientações que o trabalho comporte.

Agradeço também à Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa e aos seus fundadores, Diogo Freitas do Amaral e Carlos Ferreira de Almeida, por terem concebido uma Faculdade de Direito onde pessoas como eu, com formação em História, primeiro, em História e Sociologia do poder, depois, puderam encontrar o seu lugar. E também aos colegas das várias disciplinas, jurídicas e não jurídicas, por me terem ajudado a conhecer um pouco o mundo, antes muito distante, das formulações jurídicas. Particularmente ao Rui Pinto Duarte, também pela atenção com que leu alguns dos meus textos. Ao Armando Marques Guedes, por ter partilhado comigo as suas preciosas e inesgotáveis informações bibliográficas, que muito enriqueceram as aulas que fui leccionando enquanto investiguei e redigi esta dissertação. Ao Miguel Poiares Maduro, pelas muitas discussões, mesmo aquelas em que estivemos em desacordo, mas, principalmente, pelo carinho e pela amizade. À Teresa Beleza, pela amizade e empatia, que também resultaram da proximidade dos nossos interesses científicos.

Aos funcionários da Faculdade, pela sua simpatia e competência, e sobretudo ao sector mais ligado à informática, em particular ao Dr. António Delfino, por ter perdido algumas horas de um fim de tarde a consertar um longo texto que eu não conseguia fazer passar do écran do computador para o papel.

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muitas das ideias que me ocuparam a mente durante a redação desta tese, e agradeço-lhe muito o carinho, a paciência, a acutilância das suas observações, muitas delas mediadas por experiências concretas da sua vida.

Também, por razões próximas das anteriores, agradeço à minha família, ao Joaquim, e, particularmente, aos meus pais, aos meus sogros e à minha irmã, a Ana Isabel. Sem eles teria

sido impossível ter terminado este trabalho. Sobretudo “graças” a outros dois membros da família, os mais pequenos e os que, para minha felicidade, ocupam o lugar maior na minha vida, o João Rafael e o André.

Dedico este livro aos meus pais e à memória do meu tio, Victor Manuel Duarte Silva

INTRODUÇÃO

O tema deste trabalho é o estatuto das populações (sobretudo as nativas, mas não só) dos territórios colonizados pelos portugueses no século XIX, a sua posição formal face à cidadania. Para o desenvolver, procurei responder a algumas questões que considerei fundamentais para conhecer essa posição. Procurei saber, nomeadamente, que direitos políticos e civis foram reconhecidos a essas populações ou por elas conseguidos, se participaram politicamente e como (se estiveram ou não representadas no Parlamento metropolitano, se se fizeram representar em assembleias locais), se as Constituições oitocentistas lhes garantiram direitos iguais aos dos portugueses da metrópole, ou se, pelo contrário, admitiram a vigência de

“princípios de excepção” no seu governo e na definição dos seus estatutos pessoais. Se, no caso das populações nativas, elas puderam regular as suas vidas de acordo com formas jurídicas tradicionais, se essas formas foram respeitadas ou apenas provisoriamente toleradas pela administração colonial. Finalmente, se foram percepcionados como pessoas com algum grau de

“sentimento de pertença” à nação portuguesa. Procurei também saber se os territórios que habitavam eram partes “iguais” do território nacional ou se, pelo contrário, eram percebidos como territórios diferentes, que deviam ser governados de forma diferente. A investigação em torno destas questões colocou-me perante um problema mais vasto da historiografia sobre o colonialismo oitocentista, o de saber como é que o liberalismo de oitocentos e as suas categorias

– direitos fundamentais/constitucionais, cidadania, nação, governo representativo e limitado, separação de poderes - conviveram com o problema do governo das populações e dos territórios colonizados.

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um dos lugares a partir do qual escrevo estas linhas – é também o mundo “pós-colonial. Neste, os antigos “ultramares” (designação que se usou para descrever o conjunto heterogéneo de territórios e de populações que o mar separava das “metrópoles” europeias) estão agora na(s) Europa(s) e a(s) Europa(s) nos “ultramares”, fazendo com que o pluralismo cultural e ético das comunidades políticas (também as que resultaram dos processos de independências que acompanharam as descolonizações) se tenha transformado numa questão pensada à escala “global”. Reflecte-se, por exemplo, sobre a melhor forma de encontar princípios jurídicos e politicos capazes de transcender essa diversidade, mas também sobre o risco, inerente, de esse objectivo ser traído pela atribuição de validade universal a valores particulares 1? Reflecte-se também sobre a possibilidade de fazer coexistir a diferença cultural, ética, religiosa, numa mesma comunidade política, sem, com isso, fragilizar a sua coesão, a sua “unidade moral”, sem se correr o risco de uma “retracção comunitária para o particularismo”2. A estas reflexões associam-se outras, sobre as vantagens e as fragilidades de modelos mais diferenciados ou modelos mais unitários de cidadania. O reconhecimento da importância da diversidade cultural deve resultar no reconhecimento, pela lei do Estado, de direitos especiais a grupos minoritários3? Podem estes governar-se pelas suas instituições e tradições sem se correr o risco de essa “acomodação multicultural” resultar na fragilização de direitos individuais dos cidadãos que são membros

“subordinados” desses grupos?4 Ou, pelo contrário, é preferível optar por modelos mais unitários de cidadania? Por políticas de integração que promovam padrões mínimos de homegeneidade cultural, capazes de fortalecer os sentimentos de pertença e identidade considerados susceptíveis de manter coesas as comunidades políticas, sobretudo as nações. Correndo-se, neste caso, o

risco de suscitar fenómenos de “culturalismo reactivo”5. Reflecte-se, fiinalmente, sobre a possibilidade de construir uma cidadania transnacional, um “cidadão cosmopolita”. Mas, nesse caso, fundada em que valores, em que direitos, e garantido por que instituições?

1 Por exemplo, o “falso universalismo do universalismo moral do liberalismo”, nas palavras de Bo

Strath, “The State and its critics”, in Quentin Skinner & Bo Strath, States & Citizens, History, Theory,

Prospects, Cambridge, Cambridge University Press, 2003, p 186. Uma proposta para uma descoberta

“multicultural” de valores universalizáveis pode encontrar-se em Boaventura Sousa Santos, “Por uma concepção multicultural de direitos humanos”, in Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 48, 1997, pp. 11-32.

2 V. Bo Strath, “The State and its critics”, cit., p. 186.

3 “Group-differentiated rights”, na terminologia de Will Kymlicka em Multicultural Citizenship,

Oxford, Oxford University Press, 1995, p. 6 e ss., onde procura demonstrar que o reconhecimeno desses direitos, que o autor organiza numa tipologia detalhada, constitui uma exigência das sociedades liberais e

não, como defendem os seus críticos, uma forma de enfraquecer os direitos individuais (“A compreehensive

theory of justice in a multicultural state will include both universal rights, assigned to individuals regardless of group membership, and certain group-differentiated rights or «special status» for minority cultures”, p. 6).

4 V. Ayelet Schachar, Multicultural jurisdictions, Cultural Differences and Women’s Rights,

Cambridge, Cambridge University Press, 2001, p. 3 e ss., onde se faz a exposição dos riscos que comporta

este fenómeno que a autora designa por “paradox of multicultural diversity”.

5“«reactive cuturalism, […] a response aimed at group self-preservation which takes as its goal the

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Como disse, todas estas questões apenas evocam os problemas que se colocaram à

“administração colonial” dos séculos XIX e XX. Não constituem uma reposição dos mesmos problemas, nem as questões colocadas, como as respostas encontradas, poderiam ter sido as mesmas. Em primeiro lugar, porque o contexto colonial em que problemas da mesma natureza se colocaram já não existe. Depois, porque a cultura dos direitos e os conceitos de cidadania eram diferentes. Finalmente, porque era também outra a sensibilidade à – e até a consciência da - diversidade cultural. Com iremos ver, a ideia de garantir a homogeneidade dos comportamentos e valores das comunidades políticas foi tão forte na cultura política de oitocentos que, na verdade, dificilmente se podia ter concebido outra forma de integração que não fosse a integração do

“igual”. Assim, se, hoje, a ideia de integração comporta, quase sempre, um certo grau de reconhecimento das diferenças culturais - ainda que não haja acordo quanto a esse grau, que

pode ir da “indiferença”, nos “difference-blind citizenship models”6, à sua protecção positiva -, no

século XIX ela comportou sempre algum grau de apagamento das diversidades culturais, de absorção pelo “colonizado” dos valores culturais do “colonizador”, de uma certa assimilação7.

Antes de o mostrar, nas páginas deste trabalho, vou tentar explicar porquê, nas restantes páginas desta introdução.

*

A estrutura universalista do pensamento liberal oitocentista, na sua matriz iluminista, permitiria pensar, em abstracto, que, nos primeiros anos do século XIX, pelo menos, a resposta às questões formuladas nas primeiras linhas desta introdução – que foram debatidas nos Parlamentos da época, tendo aí gerado perplexidades e silêncios, mas também algumas decisões inesperadas – teria sido positiva. No entanto, por motivos pragmáticos, mas também de natureza conceptual, a resposta oitocentista foi muito mais complexa.

6 V. Idem, ibidem, p. 6.

7 Sobre os diversos processos descritos pelo conceito de assimilação e a descrição dos problemas

dessa forma de integração cultural nas sociedades contemporâneas v. L. Za, “Assimilacion”, in Dictionary of

Race, Ehtnicity & Culture, ed. Guido Bolaffi, Raffaele Bracalenti, Peter Braham, and Sandro Gindro,

London, Sage Publications, 2003, pp. 19-21. Formalmente, os termos assimilação ou assilimacionismo

designaram, quando aplicados às situações coloniais, políticas nas quais as colónias seriam governadas de forma semelhante à metrópole e/ou os povos culturalmente diferentes que habitavam os territórios coloniais passariam, depois de sujeitos a uma “aprendizagem civilizacional”, a ser cidadãos europeus. A assimilação

podia ser parcial, quando se admitia que os indivíduos nativos se tornassem cidadãos do Estado colonial desde se pudessem considerar, pelo seu comportamento, educação, grau de conhecimento da língua do

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Na verdade, o postulado do indivíduo como “sujeito de direitos, independentemente do tempo e das circunstâncias” teve alguns efeitos de inclusão relativamente às populações nativas

dos territórios não europeus. A referência ao indivíduo “livre e igual”, se, por um lado, facilitou a

ocultação de situações de desigualdade real tornou, por outro, mais difícil legitimar as desigualdades formais, gerando as perplexidades de que falei atrás e alguns dos efeitos de inclusão de que falarei neste trabalho. O tema da escravidão foi, quanto a esse aspecto, exemplar: a impossibilidade teórica e filosófica de acomodar o estatuto do escravo às categorias do pensamento setecentista e oitocentista tiveram um lugar importante na explicação dos processos abolicionistas que, lentamente, foram acabando com a escravidão nos territórios colonizados pelos europeus.

Houve, no entanto, ao lado de previsíveis dificuldades de natureza prático-institucional mas também da ausência de vontade política, nos momentos em que o tema foi discutido, uma dificuldade conceptual em incluir na cidadania o conjunto daquelas populações. Em primeiro lugar porque, tal como sucedeu com outras metrópoles, dificilmente os portugueses de oitocentos podiam incluir na sua “comunidade imaginada” o conjunto dos povos nativos de África, da América e da Ásia. A Nação portuguesa era, para os políticos e juristas do século XIX, identificada como uma comunidade orgânica, um conjunto de pessoas ligadas pela mesma língua, cultura, genealogia e pela mesma religião8. Era também uma comunidade afectiva, baseava nos laços que ligavam os cidadãos portugueses à comunidade, a privilegiar os sentimentos de amor, fidelidade, e de implicação moral, facilitados pela convivência histórica e inter-geracional. No ultramar, onde viviam, como afirmavam os deputados portugueses, pessoas com hábitos, costumes, religião, e raças diferentes, não era fácil saber quem podia ou não podia ser português. Essas incertezas e indefinições reflectiram-se na doutrina jurídica, na legislação produzida na metrópole e nos regulamentos produzidos nas províncias ultramarinas, fazendo com que na metrópole portuguesa nunca se tenha sabido, em rigor, quem eram (e quantos eram) os portugueses que viviam no ultramar português. A esta dificuldade acrescentou-se uma outra, relacionada com a natureza

elitista e culturalmente conotada do conceito oitocentista de cidadania: a “autonomia individual”, a

condição que o pensamento liberal oitocentista exigiu, em geral, para que alguém, europeu ou não europeu, acedesse ao exercício pleno dos direitos, não era uma capacidade inata. Considerava-se

que ela só emergia num certo “estado de civilização” ao qual as leis do progresso histórico

conduziriam, mas em tempos diferentes, o conjunto da humanidade. O fim desta História, era,

como se mostrará, um fim cosmopolítico, uma federação de povos finalmente “iguais”, partilhando

valores e culturas materiais semelhantes. Nessa altura, os princípios da “liberdade, das luzes e da

razão da Europa” espalhar-se-iam por todos os continentes, como anunciaram muitos intelectuais

8 V. José Sobral, “Nações e nacionalismo – algumas teorias recentes sobre a sua génese e

persistência na Europa (ocidental) e o caso português”, Inforgeo, nº 11, 1996 e “Memória e Identidade Nacional: Considerações de carácter geral e o caso português” in Manuel Carlos Silva (org.), Nação e

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da época9. Acontece que, nesta narrativa, na qual as ambições universalistas e uniformizadoras da modernidade surgem expressivamente associadas à universalização da experiência histórica vivida por (alguns) povos europeus, o fim da História ainda estava longe: a generalidade dos povos nativos dos territórios não europeus vivia ainda“estádios civilizacionais” muito anteriores à aquisição da “autonomia da vontade” requerida para o exercício pleno da cidadania no mundo civilizado. Seriam, no entanto, inevitavelmente resgatadas da sua “incivilidade”, ou através de um

lei de necessidade histórica, cujos fins pré-fixados o contacto com os europeus facilitaria, ou por

meio de uma intervenção política “positiva”, capaz de “acelerar” o seu progresso civilizacional

através de métodos que podiam ser mais ou menos interventivos/impositivos, como se verá ao longo deste trabalho.

O momento da inclusão universal ocorreria no momento em que todos atingissem o

mesmo “patamar civilizacional”, o que significava que aquelas populações viviam, no presente, numa situação de transitoriedade (entre o estado “não civilizado” e o “estado civilizado”), situação

à qual se associaram muitos efeitos de exclusão. Se a diversidade de condições individuais obrigou a repensar, no interior das próprias sociedades europeias, o universalismo implícito nos conceitos do pensamento político da época – nomeadamente, o da igual participação política dos cidadãos -, a diversidade dos territórios colonizados e das suas populações colocou dificuldades ainda maiores, fazendo com que, por vezes, o problema não chegasse sequer a ser formulado.

O fim da História coincidiria com o fim da diversidade cultural, diríamos hoje. Acontece que, para a maioria dos intelectuais e políticos da época, a questão da diversidade cultural não se colocava nos termos em que hoje é colocada. A maior parte dos povos de cultura e religião diferentes da europeia que tinham nascido no ultramar não eram percepcionadas como tal mas antes como povos que viviam estádios diferentes de um mesmo percurso histórico universal. De

certo modo, já tinham sido “assimilados” (aos “primitivos” europeus), ainda antes da “assimilação”

(aos europeus “já civilizados”). No entanto, a própria reflexão sobre a diferença que separava o mundo já civilizado desses mundos ainda atrasados (ou “estacionários”), sobre o que devia ou não ser feito para eliminar essa diferença, para tornar os segundos iguais aos primeiros, reforçou a

distância, adiando cada vez mais o momento da inclusão, eternizando o processo de “transição”.

Capturados nesta ambivalência, excluídos e incluídos de forma contraditória, os povos nativos dos territórios colonizados passaram a ocupar um lugar situado entre a exclusão baseada na sua

diferença (no seu “atraso”) e um contínuo convite a tornarem-se iguais (a “evoluir civilizacionalmente”), o lugar onde se gerariam as “identidades fracturadas” do colonialismo e do

pós-colonialismo10. Foi esse lugar que tornou difícil falar sobre as pertenças nacionais, os direitos

9 V. Denis Diderot Esquisse d’un tableau historique des progrès de l’esprit humain (1793), cit em

Tzvetan Todorov, Nous et les autres: la réflexion française sur la diversité humaine, Paris, Éditions du Seuil, 1989, p. 341. Diderot dedica todo este ensaio à enumeração dos momentos, factos e personalidades (cientistas, filósofos) que ilustram o progresso histórico (v. http://fr.wikisource.org/wiki/Esquisse...).

10 V. Peter Fitzpatrick and Eve Darian-Smith, “Laws of the Postcolonial: an insistent introduction”,

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e a cidadania destas populações. Essa dificuldade explica por que é que os políticos e juristas portugueses do século XIX, nos raros momentos em que foram confrontados com o problema –

que, para eles, não foi, de facto, um problema central -, nunca decidiram, de forma clara e definitiva, se e que populações nativas do conjunto territorial que descreviam como sendo um Império eram integradas por cidadãos (ou quase cidadãos) portugueses, por vassalos da Coroa portuguesa, por súbditos por direito de conquista ou, simplesmente, por estrangeiros, às vezes inimigos. Era difícil distinguir, em momentos diferentes do processo, quem eram, no ultramar, os

“inimigos”, os ainda “súbditos”, os vassalos, os “quase cidadãos” ou os plenamente cidadãos11. Como procurarei demonstrar neste trabalho, isso dependia, no território colonial português, de várias circunstâncias. Dependia, talvez em primeiro lugar, da maior ou menor proximidade ao padrão cultural europeu/português. Mas dependia também do comportamento conjuntural dos diversos grupos que integravam essas populações. Em momentos de rebelião, por exemplo, eram

facilmente remetidas para a condição de “povos rudes e selvagens”, cujo governo requeria

medidas excepcionais, “musculadas”. Dependia igualmente da maior ou menor disponibilidade de alguns desses grupos para se identificar com os projectos da metrópole ou com os das autoridades coloniais locais e dos equilíbrios locais de poder. Dependia ainda de representações sobre a hierarquia dos povos, representações nas quais os povos africanos, de acordo com classificações canónicas da época, estavam mais distantes da possibilidade da cidadania dos que, por exemplo, alguns povos asiáticos. Dependia, finalmente, das perspectivas dos diferentes governos metropolitanos em matéria de política colonial. Como se irá, ver, nos momentos em que o Marquês de Sá da Bandeira esteve à frente da Secretaria de Estado da Marinha e Ultramar, a tendência foi para uma (generalizada) maior inclusão. Em outros momentos, a exclusão ganhou contornos muito definidos, como sucedeu nos primeiros anos da década de sessenta do século XIX.

O discurso comum a estas conjunturas foi o de que as populações nativas podiam aprender a ser “civilizadas” e “portuguesas”, variando os métodos de “ensino” que se foram

propondo. Mas houve outros momentos em que essas populações foram mesmo esquecidas,

passando a “acção colonizadora” a ser descrita como uma acção pela qual os territórios não europeus seriam colonizados por população europeia, originariamente portuguesa. Por vezes, estes dois registos confundiram-se, tornando difícil destrinçar qual seria, afinal, a origem dos portugueses que povoariam o Império.

11 Esta “dificuldade em decidir se os nativos deviam ser tratados como súbditos da nação ou

estrangeiros inimigos, que podiam ser capturados em raids e baleados” foi característica de outros impérios,

como mostra Lauren Benton, Law and Colonial Cultures, Legal Regimes in World History: 1400-1900, Cambridge, Cambridge University Press, 2002, p. 197. E foi um fenómeno que se verificou até muito tarde, como se percebe através das palavras de Elisabeth Thompson, quando afirma, em relação às populações da Síria e do Líbano que ficaram sujeitas ao Mandato francês depois da I Guerra, que “não havia uma frontiera clara, aos olhos dos contemporâneos, que pudesse separar o estatuto de súbdito do de cidadão (…)”, v.

Colonial Citizens, Republican Rights, Paternal Privilege, and Gender in French Syria and Lebanon, New

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Falta agora recordar, para concluir, que estas indefinições viriam a ser clarificadas com a criação, preparada pela literatura colonial desde os finais do século XIX mas só consumada no século seguinte, de um estatuto jurídico diferenciado para as populações nativas das colónias portuguesas, o estatuto do indígena, à semelhança do que outras nações colonizadoras estavam na altura a fazer ou já tinham feito12. A necessidade, sentida pelos autores daquela literatura, de

reforçar os fundamentos “científicos” desse estatuto com as “lições da história”, fez com que o

estatuto do indígena surgisse nela como o resultado de uma desejável ruptura com o passado recente do colonialismo português, no qual o indígena tinha sido plenamente cidadão. Na verdade, foi esta estranha afirmação, que me conduziu à investigação de que resultou este trabalho. A questão inicial foi, de facto, uma questão simples: saber se os indígenas de que falava a literatura sobre direito e administração colonial a partir dos finais do século XIX tinham mesmo sido, até esse momento, cidadãos portugueses. Por esse motivo começarei, no primeiro capítulo, por falar sobre o que foi, nessa literatura, o indígena e sobre o contexto, de manipulação da memória, no qual os antepassados desses indígenas foram convertidos em cidadãos portugueses. Depois, num segundo capítulo, desenvolverei algumas reflexões em torno do pensamento colonialista e anti-colonialista europeu dos finais do século XVIIII – primeira metade do século XIX. Nesse capitulo irei descrever as representações setecentistas e primo-oitocentistas sobre os povos não europeus e mostrar que o nativo dos territórios colonizados não teve, nas reflexões sobre a colonização, o mesmo peso que passou a ter na literatura colonial dos finais do século. Que o conceito de

indígena por oposição a cidadão não existia. A estes capítulos, de contextualização, seguem-se aqueles onde serão analisadas a forma como o problema ultramarino foi abordado no constitucionalismo, na doutrina, na legislação e no discurso político português de oitocentos.

1. O indígena na literatura colonial dos finais do século XIX-início do século XX

O indígena dos territórios colonizados pelos europeus, enquanto sujeito de uma política especificamente pensada para ele, a política do indigenato, ocupou um lugar central nos textos sobre política e administração colonial que se escreveram em Portugal a partir do último quartel do século XIX. Ao lado do colono e do Estado metropolitano, ele constituía, nas palavras de Rui Ulrich (1883-1966), professor da cadeira de Administração Colonial na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (1906-1910), o “terceiro vértice” a ter em consideração na arquitectura

de uma boa política colonial13.

Nesses textos – escritos, sob a forma de monografias, tratados, relatórios e lições, por sócios e colaboradores da Sociedade de Geografia de Lisboa, criada em 1875, por regentes da

12 Por exemplo, a França, que, a partir de 1887, impôs a todas as suas colónias a aplicação de um Code de l’indigénat, primeiramente pensado para a Argélia, no qual os indivíduos nativos das colónias francesas foram considerados, em geral, súbditos, por oposição a cidadãos franceses, estatuto que só podiam adquirir mediante critérios definidos nesse Código. Enquanto súbditos franceses o indígenas eram, por exemplo, submetidos a leis penais especiais e a regimes de trabalho obrigatório

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cadeira de direito colonial na Universidade de Coimbra, criada em 190114, por professores da Escola Colonial, criada em 190615, e também por administradores coloniais, oficiais do exército, comissários régios e ministros16–, a palavra indígena designava um conceito caracterizado por um elevado grau de abstracção. A sua concretização geográfica era muito genérica, pois dizia respeito a povos nativos de todos os territórios colonizados por europeus, em África, na América ou na Ásia. O universo semântico do conceito era também muito amplo, porque só não abrangia os povos nativos do continente europeu. As populações nativas dos outros continentes eram nele apreendidas como um conjunto humano relativamente indiferenciado, porque além de dispensar qualquer referência à diversidade étnica ou cultural das comunidades em que os indígenas viviam, o conceito não remetia para qualquer distinção ou identificação social no interior dessas comunidades. A palavra indígena podia designar o nativo de qualquer parte de qualquer território colonizado por europeus e, da mesma maneira, podia designar tanto o soba africano ou o príncipe indiano, como os respectivos súbditos.

Havia, no entanto, um elemento antropológico comum, que unificava este conjunto humano internamente indiferenciado: a sua posição distante face às formas civilizadas de vida a que a História tinha conduzido as sociedades europeias. Indígenas eram, então, os naturais

14 A sua criação, que foi um sinal do processo de institucionalização, em Portugal, da “ciência

colonial”, ocorreu com a reforma do curso de Direito da Universidade de Coimbra, em 1901 (v. Decreto de 24 de Dezembro de 1901, Diário do Governo, nº 294, 28 de Dezembro de 1901, p. 1156). As primeiras lições escritas foram as de Marnoco e Souza, Administração colonial, prelecções feitas ao curso do 4º ano jurídico

do ano de 1906-1907, 1906 (o autor seria Ministro da Marinha e Ultramar no último governo da Monarquia),

e as de Rui Ennes Ulrich, que escreveu Ciência e administração colonial, I: Introdução, lições feitas ao

curso do 4º anno jurídico no anno de 1907-1908 (1908) e Política colonial. Lições feitas ao curso do 4ª anno

juridico no anno de 1908-1909 (1909).

15 Destacamos, pelo desenvolvimento e singularidade de algumas das suas reflexões, a obra

intitulada Política Indígena (1910), de Lopo Vaz de Sampaio e Mello (1883-1949), oficial da Marinha e professor na Escola Superior Colonial, onde regeu as cadeiras de Política Indígena e Etnologia e Etnografia Coloniais (1926-46) e onde dirigiu o Anuário da Escola Colonial (1926-42). Foi, além disso, fundador da

Revista de Estudos Coloniais da Escola Superior Colonial (1948-1954), sócio da Sociedade de Geografia de

Lisboa (fundada em 1875) e membro do Instituto Colonial Internacional de Bruxelas.

16 Entre os inúmeros autores e títulos podem destacar-se António Enes, duas vezes Comissário

Régio em Moçambique (em 1891 e em 1894) e Ministro da Marinha e Ultramar depois do Ultimatum

(escreveu Moçambique - relatório apresentado ao Governo, 1893); vários militares que colaboraram com ele nas campanhas de pacificação, entre os quais Henrique de Paiva Couceiro (escreveu Angola (Dois annos de

Governo, Junho de 1907-Junho de 1909). História e Comentários, 1910, e Angola, Estudo Administrativo,

1898); Mouzinho de Albuquerque, Governador do Distrito de Lourenço Marques em 1895, depois Governador e Comissário Régio na mesma província (escreveu Moçambique, 1896-1898, 1899); Freire d‟

Andrade, Director Geral das Colónias, Secretário-Geral do Ministério da Marinha e Ultramar, Ministro dos Negócios estrangeiros em 1914, Governador-geral de Moçambique (escreveu Relatórios sobre Moçambique, 1910); Aires de Ornellas, Ministro da Marinha e Ultramar em 1907 (escreveu Raças e línguas indígenas em

Moçambique, 1901, e A nossa administração colonial. O que é, o que deve ser, 1903); Alfredo Augusto

Caldas Xavier (escreveu Estudos coloniais, 1889); Eduardo Costa, Governador do distrito de Moçambique (1897) e Benguela (1904) e Governador-geral de Angola em 1907 (escreveu o Estudo sobre a Administração

Civil das províncias Ultramarinas, 1903), O Distrito de Moçambique em 1888 (notas e apontamentos), 1902

e Ocupação militar e domínio efectivo nas nossas colónias, 1903); Albano de Magalhães, juiz no ultramar

(escreveu Estudos Coloniais, 1907); Artur Almeida Ribeiro, Ministro do Ultramar em 1914 (escreveu

Administração Civil das Províncias Ultramarinas, Proposta de Lei Orgânica e Relatório apresentado ao

Congresso pelo Ministro das Colónias, 1914, e Administração Financeiras das Províncias Ultramarinas,

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daqueles outros continentes cuja cultura e formas de vida se caracterizavam, em todas as suas manifestações - morais, religiosas, económicas -, por um certo grau de primitivismo.

Do ponto de vista jurídico – um ponto de vista de grande relevância, porque o direito desempenhou um papel determinante na construção e na fixação do conceito -, eram indígenas aqueles nativos que não se distinguiam, culturalmente, do “comum da sua raça”. Ou mesmo os

nativos que, tendo-se já distanciado, culturalmente, daqueles com quem partilhavam a “raça”, ainda não tinham adquirido, pelo menos em grau suficiente, os hábitos e valores “civilizados”. Por

um motivo ou pelo outro, estes indígenas não podiam ser sujeitos de formas representativas de governo ou exercer direitos civis e políticos iguais aos dos cidadãos das metrópoles europeias. O seu estatuto jurídico era, portanto, o de não cidadão.

Na literatura jurídica dos séculos XIX e XX o conceito de indígena tinha uma marcada conotação racial, já que quase sempre se acrescentava à naturalidade e cultura, enquanto variáveis identificadoras, a raça dos indígenas. Num dos primeiros documentos em que esta categoria de pessoas foi juridicamente descrita em Portugal, eram indígenas os “nascidos no

ultramar”, de pai e mãe indígenas e “que não se distingam pela sua instrução e costumes do comum da sua raça”17. A primeira lei portuguesa onde foi finalmente pensado um estatuto pessoal (civil, político e criminal) próprio para o indígena, em 1914, determinou que pudesse ser “cidadão

da República”, com todos os direitos civis e políticos, o indivíduo de cor que falasse português ou

qualquer outra “língua culta”, que não praticasse os usos e costumes característicos do meio indígena, que exercesse profissão, comércio ou indústria, ou que possuísse bens de que se mantivesse. Os indivíduos de cor que não satisfizessem cumulativamente aquelas condições eram considerados indígenas, o que significava que seriam apenas “súbditos da República portuguesa”18.

A racialização do conceito de indígena desapareceu no Decreto equivalente que se seguiu (nº 7.151 de 19 de Novembro de 1920), no qual o termo indígena passou a ser aplicado aos naturais

das colónias que “vivem e desejam continuar a viver sob os usos e costumes privativos dos agregados sociais indígenas”, mas não aos que “adoptem os usos e costumes públicos dos europeus, e se submetam às leis e regulamentos impostos aos indivíduos europeus do mesmo nível social”19 ,

mas ressurgiu no Dec. lei nº 12.533 de 23 de Outubro de 1926, a Carta básica que estabeleceu o Estatuto político, civil e criminal dos indígenas de Angola e Moçambique. Aí, voltaram a ser

17 V. Decº de 20 de Setembro de 1894, que regulou o art. 3º do decº de 20 de Fevereiro de 1894

(aprovando o Regimento da administração da justiça nas províncias ultramarinas), subl. nosso.

18 Esta conclusão concretizava-se, por exemplo, em disposições que afastavam os indígenas do

exercício dos direitos políticos nas instituições centrais, embora admitissem a sua participação em instituições representativas locais, v. Bases nº 16 a 18 da Lei nº 277 de 15 de Agosto de 1914 (Lei orgânica

da administração civil das províncias ultramarinas) em Artur R. de Almeida Ribeiro, Administração Civil

das Províncias Ultramarinas, proposta de Lei Orgânica e Relatório apresentado ao Congresso pelo Ministro

das Colónias, Lisboa, Imprensa Nacional, 1914, p. 20. Estas Bases foram discutidas e aprovadas, mas nunca

chegaram a ser aplicadas.

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indígenas“os indivíduos de raça negra ou dela descendentes que, pela sua ilustração e costumes, se

não distingam do comum daquela raça” (art. 3), a quem se negaram direitos políticos ou de

participação em outras instituições que não apenas as suas, as “tradicionais”. Depois deste, houve

ainda o Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas de 1929 (Dec. nº 16 473, de 6 de Fevereiro), com uma definição exactamente igual à anterior (art. 2) e o Estatuto dos Indígenas das

Províncias da Guiné, Angola e Moçambique (D.L. nº 39 666, de 20 de Maio de 1954), com algumas

alterações 20.

A leitura dos textos doutrinários e da legislação permite, finalmente, compreender que o conceito de indígena comportava uma conotação de transitoriedade mais (ou menos) evidente. Eram indígenas os que ainda não tinham abandonado o seu modo “tradicional” de vida, aqueles

que, para os olhares europeus, ainda eram todos iguais, na sua fundamental distância relativamente ao mundo civilizado. Isso significava que aqueles nativos de outros continentes – ou aqueles indivíduos de cor – que já tinham franqueado o limiar da diferenciação e da individualidade, já não eram indígenas. Distinguiam-se (ou as autoridades coloniais os

distinguiam) entre “eles”21. No futuro, todos acabariam por ultrapassar a fronteira que os libertaria da condição de indígenas. Era esse o resultado natural do fenómeno colonial, na sua dimensão de

“missão civilizadora” conduzida pelo colonizador europeu. Como se fazia notar nas primeiras páginas dos tratados de que se tem vindo a falar, um dos elementos identificadores do fenómeno colonial era, exactamente, o de pôr em contacto povos com graus civilizacionais diferentes, estando um desses povos, o povo colonizador, obrigado a cumprir a missão de conduzir o outro, o povo colonizado, a graus mais elevados de civilização. A colonização era, ela própria, uma

consequência da diversidade das civilizações e das raças, sendo a “acção civilizadora sobre as

pessoas e sobre as coisas” o que a distinguia de fenómenos vizinhos, como a ocupação de um

território, a conquista, a subordinação política, o imperialismo ou a emigração, explicava Marnoco e Souza. Independentemente das suas causas e de outros fins a ela associados, como a vantagem económica ou o prestígio nacional, a colonização podia sempre definir-se como uma

“acção exercida por um povo civilizado sobre um país de civilização inferior, com o fim de o

transformar progressivamente, pelo aproveitamento dos seus recursos naturais e pelo

melhoramento das condições materiais e morais de existência dos indígenas” 22.

20 V. A.D.S., “Estatuto dos Indígenas” in Fernando Rosas e J.M. Brandão de Brito (orgs.),

Dicionário de História do Estado Novo, Lisboa, Bertrand, 1996, vol. I, p. 320.

21O que não queria dizer que se assemelhassem logo aos cidadãos da metrópole. O Estatuto de 1954

viria, por isso, a inventar um terceiro patamar, o daqueles que, distinguindo-se entre “eles”, ainda não se

assemelhavam a “nós”, os indígenas destribalizados, v. José Carlos Ney Ferreira e Vasco Soares da Veiga,

Estatuto dos Indígenas das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique, Lisboa, 1957, p. 26 e ss. Por isso é

que, ao contrário dos Estatutos dos anos ‟20, neste os indígenas eram “[…] os indivíduos de raça negra ou seus descendentes que […] não possuam ainda a ilustração e hábitos individuais e sociais pressupostos para a

integral aplicação do direito público e privado dos cidadãos portugueses” (art. 2, sublinhados nossos). Ainda quese distinguissem do “comum da sua raça”.

22 V. Marnoco e Souza, Administração Colonial, Prelecções feitas ao curso do 4º Ano Jurídico do

ano de 1906-1907, Coimbra, Tipografia França Amado, 1906, p.8 e ss. Foi com estas lições que o autor, lente

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Esta ideia dos Impérios como “espaços morais” não era uma ideia nova. Desde Roma que

o objectivo ético de fundar uma comunidade humana universal, “civilizada” e bem governada,

esteve associado à ideia imperial. Esse objectivo foi, no discurso teológico da missionação cristã, um objectivo de natureza sobretudo espiritual, que converteu os impérios europeus da época moderna em espaços de expansão do cristianismo. O discurso humanitarista das Luzes, como se verá mais detalhadamente ao longo deste trabalho, voltou a associar as formações imperiais à realização de objectivos éticos universalistas, mas acentuando a dimensão laica dessa realização: mais do que libertar os povos nativos de formas primitivas de religiosidade, era preciso também resgatá-los da sua “infantilidade civilizacional”23, emancipá-los de modos de produção primitivos (a pastorícia, a pesca, a recolecção), ensinar-lhes as formas “civilizadas de governo”. Porém, a partir

da segunda metade do século XIX, a época em que os textos aqui estudados foram escritos, essa

“missão civilizacional” passou a fundamentar-se, de um modo cada vez mais claro, em teorias evolucionistas sobre a história biológica da humanidade, teorias que justificavam, em termos éticos, mas também científicos, a conquista e a tutela dos povos mais “atrasados” pelos povos mais “avançados”. Nessa altura, à superioridade civilizacional dos europeus acrescentou-se a sua

superioridade “racial”, biologicamente determinada, explicando o seu impulso expansionista em

direcção aos territórios situados fora da Europa. A presença de populações europeias em territórios não europeus passou então a ser percebida como um sinal de força e de superioridade racial: superioridade racial face às populações nativas, constituídas por raças inferiores à europeia, mas também das nações europeias entre si, distinguindo as expansionistas das não expansionistas24. O campo de referências teóricas era, então, o da fundamentação biológica (racial) da desigualdade entre as populações humanas, que tinha tido uma das suas primeiras manifestações na obra do francês Joseph Arthur (1816-1882), conde de Gobineau, em Essai sur l’inégalité des races humaines (1853-55), e o do darwinismo social, elaborado pelo filósofo inglês Herbert Spencer (1820-1893) a partir da teoria da selecção natural de Darwin e da sua aplicação

direito colonial. Que esta definição recolhia unanimidade mostram as reflexões de Rui Ulrich, que em muitos aspectos discordava de Marnoco e Souza, em Política Colonial […], cit., p. 4: para haver colonização “[…] é

preciso que parta de um pais civilizado e que se destine a um pais desabitado ou apenas ocupado por um povo selvagem ou de civilização inferior. E ainda isto não basta; para que haja colonização é indispensável

uma acção civilizadora dos emigrantes sobre as coisas e os homens do país ocupado[...]”. Também a sujeição

política sem acção civilizadora não bastava, embora, juntamente com o factor económico, todos fossem ingredientes da colonização. Uma colónia era, afinal, “[…] uma região subordinada económica e

politicamente a um estado de civilização superior, o qual exerce nela e nos seus habitantes uma acção

civilizadora” (ibid., p. 7).

23 Uday Singh Metha, Liberalism and Empire: A study in Nineteenth-century British Liberal

Thought, Chicago, Chicago University Press, 1999, pp. 31 e ss.

24“Se os seres humanos são essencialmente desiguais, se pertencem a raças superiores ou inferiores,

em conflito entre si, se a civilidade criada pelo homem europeu constitui o ponto mais alto da caminhada progressiva da humanidade, se o Estado é vontade de poder e expressão da vitalidade da raça, os Estados europeus não podiam deixar de promover uma acção de conquista que colocasse sob seu domínio as raças e culturas extra-europeias, para as conduzir (ou não) à civilidade”, V. Pietro Costa, Civitas, Storia della

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às sociedades humanas25. Já o campo de referências “empíricas” era o das investigações antropométricas e craniométricas da nova ciência antropológica naturalista, investigações conhecidas em Portugal através dos trabalhos inspiradores de Armand de Quatrefages (1810-1892), professor da cadeira de Antropologia no Museu de História natural de Paris, do antropólogo Paul Broca (1824-1880), fundador da Escola Antropológica de Paris, em 1859, e do seu discípulo, Paul Topinard, a grande referência, já nas últimas décadas do século XIX , do impulsionador da primeira escola universitária de antropologia em Portugal (a Escola de Antropologia de Coimbra), o antropobiólogo Eusébio Tamagnini (1880-1972) 26.

Sendo agora uma inevitabilidade científica, resultado da “natural” competição entre Nações que se apresentavam como “organismos vivos”, em crescimento ou em processo de degeneração, a expansão colonial preservava, como referi, o seu significado ético, com o correspondente dever de tutelar os povos atrasados, de os conduzir à civilização. Só que, agora, a

“necessidade científica” acrescentava a este um outro destino possível, apropriado para os povos incapazes de civilidade: a aniquilação. Como recorda o historiador Pietro Costa, a colonização tinha-se convertido, simultaneamente, numa imposição gerada “[…]pelas necessidades vitais das

populações europeias, reduzidas a espaços restritos e superpovoados, enquanto uma boa parte

do Globo estava nas mãos de pequenos grupos de homens imbecis, impotentes, infantis” e numa resposta adequada a “[…]uma exigência profunda do processo histórico, que condenava impiedosamente os povos incapazes de elevar-se à civilização[...]”27.

O desaparecimento era, portanto, o destino que a História reservava aos indígenas: ou porque, depois de instruídos e civilizados pela presença europeia, deixariam de o ser, passariam a ser cidadãos europeus; ou em virtude de um outro processo, mais violento, de extinção, que alguns acreditavam ser o resultado natural do confronto de uma raça e civilização superiores com uma raça e civilização inferior. Levy Maria Jordão (Visconde de Paiva Manso), um conhecido jurista (penalista) português da primeira metade do século XIX, discorreu, apoiando-se nos ensinamentos de Armand Quatrefages28, sobre estes dois destinos possíveis:

25 Sobre o darwinismo social na filosofia de Spencer e nos ensaios de William Graham Sumner, seu

discípulo, professor de sociologia em Yale na segunda metade do século XIX, bem como as apropriações contraditórias de que esta teoria foi objecto, v. Edward Caudill, Darwinian Myths, The Legends and Miuses

of a Theory, Knoxville, The University of Tennesse Press, 1997, caps. 4 e 5. Aí se mostra também como as

apropriações do registo mais agressivo destas teorias resultaram da ênfase na ideia de competição na teoria da selecção natural de Darwin e na consequente omissão da função da cooperação na evolução, de certa forma

presente na ideia da “missão civilizacional”. Sobre o darwinismo em Portugal v. Ana Leonor Pereira, Darwin

em Portugal (1865-1914), Filosofia, História, Engenharia Social, Coimbra, Almedina, 2001.

26 Essas referências, que foram partilhadas pelo Antropólogo António Mendes Correia (1888-1969),

o antropobiólogo que liderou a Escola de Antropologia do Porto, estão documentadas em Ricardo Roque,

Antropologia e Império: Fonseca Cardoso e à expedição à Índia em 1895, Lisboa, ICS, 2001, pp. 137 e ss. e

p. 166.

27 V. Pietro Costa, Civitas, Storia della Cittadinanza in Europa, vol. 3: “La civiltà liberale”, Roma,

Editori Laterza, 2001, p. 487, subl. nosso.

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“Há porém duas leis supremas que regem os povos mais ou menos civilizados,

logo que a onda sempre crescente da raça caucásica chega a alcançá-los. Ou se retiram diante dela, e se aniquilam progressivamente em regiões afastadas, cercados e dizimados pelas misérias da expatriação – é a lei do aniquilamento progressivo; ou se incorporam lentamente à população nova que absorve os seus elementos mais vivazes, não tardando o resto a extinguir-se, como exilado no meio de um mundo novo – é a lei da incorporação lenta. São ambas manifestações diferentes de uma outra lei secreta e inevitável, a da descrença da raça indígena, lei independente da vontade humana e verdadeiramente providencial 29.

A centralidade que o “problema indígena” e os tópicos a ele associados adquiriram nesta

época reflecte um contexto mais geral, relacionando-se com o interesse crescente dos países europeus, a partir da década de setenta do século XIX, pela posse de territórios em África, bem como pela administração das respectivas populações nativas 30. Em 1884-85, durante a realização da Conferência de Berlim, a partilha do continente africano tinha sido, como se sabe, acompanhada da elaboração das normas do moderno direito público colonial que deviam presidir quer ao reconhecimento dos direitos de propriedade colonial, quer ao tratamento das populações nativas dos territórios colonizados31. Este contexto favoreceu a autonomização de um novo campo científico, vocacionado para a produção de saberes que tornassem mais racionais/produtivos os programas de administração colonial, fenómeno do qual resultou a constituição de um corpus literário autónomo, dirigido para a compreensão dos “modernos princípios de colonização científica”, dos quais deviam ser deduzidos os direitos e deveres dos Estados colonizadores para

com as populações nativas dos territórios colonizados. Boa parte destes saberes foram produzidos com o apoio de instituições vocacionadas para o estudo da questão colonial africana, que se

29 V. Visconde de Paiva Manso (Levy Maria Jordão), Lourenço Marques (Delagoa Bay), Lisboa,

Imprensa Nacional, 1870, p. xxvii. A mesma lei era recordada em quase todos os manuais europeus sobre direito e administração coloniais, e, nomeadamente, num dos primeiros e mais citados em Portugal, o de Arthur Girault, professor de economia política na Universidade de Poitiers e membro do Instituto Colonial Internacional, cuja obra mais conhecida, objecto de sucessivas edições (1903, 1907, 1921, 1927, 1943) se constituiu num manual para os estudantes de direito em toda a Europa. Nesse livro, o autor não só

comprovava, com exemplos, que “todos os povos superiores em civilização colonizaram”, como reconhecia a

existência de uma lei comum a todos os seres vivos, pela qual “[…] os indivíduos menos bem dotados

desaparecem no confronto com os mais dotados. A extinção progressiva das raças inferiores no confronto

com as raças civilizadas […] é a condição do próprio progresso”, v. Arthur Girault, Príncipes de

Colonisation et de Législation Coloniale, Paris, Librairie de la Sociètè du Recueil J.-B Sirey et du Journal du

Palais, 1907 (3ª ed.), p. 8 e p. 27.

30 Até c. de 1875, a presença europeia em África não envolveu uma intenção planeada de

administrar populações africanas, situação que mudou a partir dessa altura, v. Crawford Young, The African

Colonial State in Comparative Prospective, New Haven, Yale University Press, 1994, 82 e ss. Um primeiro

sintoma dessa mudança foi a Conferência (internacional) Geográfica de Bruxelas, que reuniu a 12 de Setembro de 1876.

31 Como se sabe, a partir da Conferência de Berlim, os direitos de propriedade colonial passaram a

fundar-se, nas zonas costeiras, pela “ocupação efectiva” do território e pela instalação de um equipamento

administrativo mínimo, v. Nuno Severiano Teixeira, “Colónias e colonização portuguesa na cena

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multiplicam na mesma época32, tendo os seus postulados e os programas coloniais neles fundados sido discutidos em conferências internacionais e nacionais. Exemplo desses congressos, que asseguraram a circulação dos novos saberes sobre a administração colonial, foram o Congrés Colonial Internationale de Paris (1889, com delegados portugueses), os Congressos promovidos pelo Instituto Colonial Internacional de Bruxelas (fundado em 1894), ou o Congresso de Sociologia colonial (1900)33 e, em Portugal, o Congresso Colonial Nacional de 1901, depois repetido em 1924 e 193034, ou, já em 1934, o I Congresso Nacional de Antropologia Colonial, reflectindo este último uma intensificação do interesse da antropologia portuguesa pelas populações coloniais e também

a colaboração “oficial e activa” dos antropólogos portugueses na política colonial do Estado

Novo35. Entre os agentes científicos desta nova “ciência da administração colonial” contaram-se nomes vindos de áreas disciplinares diversas, como o do economista francês Paul Leroy-Beaulieu,

De la Colonisation Chez les Peuples Modernes (1874)36, o do já referido professor Arthur Girault,

Principes de Colonisation et de Legislation Coloniale (1895), o do político e naturalista Jean-Marie Antoine de Lanessan (1843-1919), botânico, Professor na Faculdade de Medecina de Paris, governador civil e militar da Indochina francesa na última década do século XIX e autor, entre outras obras, do livro Príncipes de Colonisation (Paris, Félix Alcan, 1897), o de Paul S. Reinsh, professor da Universidade de Wisconsin, Colonial Administration, an Introduction to the study of colonial institutions (1905), o de François Jules Harmand, físico da marinha fancesa que também ocupou diversos cargos na Tailândia, Índia, Chile e Japão, autor de Domination et Colonisation

(1910), o de Charles de Lannoy, Professor da Universidade de Direito de Gand, autor de

L’organisation coloniale Belge (1913), ou o de Poultney Bigelow, The children of the Nations: a study of colonization and its problems (1901), para referir apenas alguns dos mais citados pela literatura colonial portuguesa. Apesar da diversidade de perspectivas sobre o tema de que tratavam, todos estes autores tinham em comum a ambição de fundar em bases científicas a organização e administração coloniais.

32 Como, em Portugal, a Sociedade de Geografia de Lisboa, em 1875, seguida da criação, no

Ministério do Ultramar, da Comissão Central Permanente de Geografia (1876), depois integrada na Sociedade de Geografia (1880), ou da Comissão de Cartografia, criada em 1883 para coordenar as explorações geográficas e a delimitação de fronteiras coloniais. Sobre o lugar destas instituições na constituição de saberes antropológicos sobre o ultramar e as suas populações v. Rui M. Pereira, introd. a Jorge Dias, Os Macondes de Moçambique, I: “Aspectos Históricos e Económicos”, Lisboa, CNCDP e IICT,

1998 e Ricardo Roque, Antropologia e Império…, cit., p. 282 e ss. Sobre a origem, o funcionamento e as motivações dos membros da Sociedade de Geografia de Lisboa, v. Ângela Guimarães, Uma corrente do

Colonialismo Português: a Sociedade de Geografia de Lisboa, 1875-1895, Lisboa, Livros Horizonte, 1984.

33 Este particularmente importante, já que a política indígena foi o tema central das suas actas. 34 Uma síntese dos temas tratados no primeiro Congresso Colonial pode encontrar-se em Congresso

Colonial Nacional, teses, Lisboa, Tip. da Companhia Nacional Editora, 1900, onde está documentada esta

centralidade concedido à “questão indígena”.

35 Gonçalo Duro dos Santos, A Escola de Antropóloga de Coimbra, 1885-1950, Lisboa, ICS, 2005,

pp. 34 e ss. e 168.

36 Um outro teorizador de políticas assimilacionistas, v. Martin Deming Lewis, "One Hundred

Million Frenchmen: the «Assimilation» Theory in French Colonial Policy", in Comparative Studies in

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Discorrer sobre a administração e o destino das populações nativas tornou-se ainda mais importante por ter ganho força, nos encontros então realizados, a ideia, que dominou em boa parte desta literatura, de que sem o contributo daquelas populações –sem o “braço indígena” –, não era possível explorar a maioria dos territórios coloniais em África. As conclusões da climatologia, uma nova “ciência auxiliar da colonização”, ditavam que o homem branco não podia “aclimatar-se” na

maioria dos territórios africanos. A colonização africana devia especializar-se no estabelecimento

de “colónias tropicais de exploração” (de fazendas), baseadas na exploração massiva de mão-de-obra nativa, reservando-se o povoamento europeu para zonas restritas, onde a singularidade das condições geográficas e climáticas o favorecesse37. Em 1915 essa tese já podia ser enunciada, num registo absolutamente científico, por académicos relativamente distantes dos problemas práticos que o fenómeno colonial colocava, como era o caso de Fernando Emygdio Garcia (1838-1904), Professor de Direito administrativo na Universidade de Coimbra cuja vida foi inteiramente dedicada ao ensino e, através dele, à introdução e divulgação do sociologismo jurídico em Portugal:

“ [...] as condições de adaptação da raça branca unicamente possíveis de modo formal nas regiões de planaltos da zona inter tropical, fazem com que a colonização africana tenha como regra o carácter de fazendas: isto é, de colónias onde a emigração em massa dos habitantes da metrópole para o exercício de todos os misteres e para a reprodução integral dos caracteres da raça é impossível ou, pelo menos, contingente e onde, portanto, uma minoria de capitalistas europeus explora com a mão-de-obra indígena a riqueza agrícola desenvolvida em ordem à produção exclusiva ou largamente

predominante dos géneros de exportação”38.

Estes discursos, abstraindo de algumas (importantes) diferenças que os distinguiam entre si, estavam embebidos de posições positivistas sobre a diversidade humana, que relegavam para o plano da metafísica categorias jurídico-políticas abstractas, como os direitos do Homem à priori, anteriores à sociedade, ou qualquer fórmula universal de governar os homens. Não era adequado pensar os direitos, o direito e as formas de governo independentemente da consideração dos povos e das suas determinações raciais, culturais, civilizacionais. Sendo assim, a resposta que davam à questão dos direitos e das formas de governo adequadas aos povos nativos dos territórios ultramarinos situava-se num registo muito distante do das doutrinas jusnaturalistas dos séculos XVII-XVII ou do universalismo das Luzes. Os indígenas tinham direitos, mas estes não derivavam da sua condição de homem igual e universal. Pelo contrário, sendo cultural e racialmente muito diferentes dos europeus, não deviam ser submetidos a formas de governo

37 Com dados fornecidos por essa nova ciência era possível classificar as colónias em função do

respectivo clima e indicar, em função disso, o tipo de colonização que nelas podia resultar; v., por exemplo,

“Modo pratico de organizar Cartas Geográficas populares das nossas colónias, indicando as zonas mais

salubres e mais próprias para colónias agrícolas ou de plantação, etc.”, in Congresso Colonial Nacional –

Teses, Lisboa, cit., p. 4.

38 v. Fernando Emygdio Garcia, Colonização e Colónias Portuguesas, 1864-1914, Coimbra, F.

Referências

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