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A legislação eleitoral e as especificidades da representação política do

No documento A cidadania no Ultramar português (páginas 128-132)

6. O dogma da unidade e da representação política do ultramar na Carta

6.1. A legislação eleitoral e as especificidades da representação política do

O princípio axiomático de “estar sempre completa a Representação Nacional dos Estados ultramarinos” 411, esteve, como já se viu, na origem de determinações legislativas que vieram

completar os silêncios dos textos constitucionais nessa matéria412. Dessas leis constaram medidas

410 V. O Nacional, Nº 750, 8 Junho 1837, sessão de 7 Junho 1837, p. 4284, Dep. Vasconcelos

Pereira.

411 V. DCD, sessão de 26 de Fevereiro de 1852, p. 232.

412 Em 1837-38, a opção de remeter para a lei eleitoral a regulação das eleições nas “possessões e

províncias ultramarinas” foi assumida quando se discutiu a eleição do Senado (“O que fica estabelecido a respeito da eleição dos Senadores só é relativo ao continente de Portugal e Algarves: a lei eleitoral providenciará a respeito das Possessões e províncias ultramarinas”), v. Diário do Governo (DG), nº 275, 21 de Novembro de 1837, sessão de 20 de Novembro de 1837, p. 1301.

que visaram garantir aquele objectivo, como a lei de 4 de Julho de 1837, que assegurou a presença constante de deputados do ultramar no parlamento, permitindo a permanência desses deputados em várias legislaturas, sem prazo limitado, até que os deputados recém eleitos chegassem. Leis posteriores restringiram a prorrogação dos mandatos dos deputados do ultramar para a legislatura seguinte apenas, como meio de evitar a prática – que era anterior à Carta de lei

de 1837 – dos deputados pelo ultramar se eternizarem no parlamento 413. Mesmo assim, alguns

deputados, para legitimar a sua permanência além daquele prazo, viriam a invocar os

“precedentes desta Casa”414, apontado o exemplo dos deputados pelo ultramar que, à sombra da

lei de Julho de 1837, permaneciam nas cortes durante três e quatro legislaturas, sem terem sido

para elas eleitos415, como era o caso do já referido deputado por Moçambique, Teodorico José de

Abranches, eleito para a legislatura de 1834 e que, em virtude da lei de 1837, permanecera nas Cortes em 1837, 1838, 1840 e 1842. Já para outros deputados, contrários a tão prolongados mandatos, a lei de 1837 era absurda, “visto que de alguma maneira dava o carácter de vitalícios

aos Deputados do ultramar, inteiramente repugnante num Governo Constitucional”416.

Em várias outras ocasiões – nomeadamente, a propósito da discussão de um parecer da

Comissão de verificação de poderes que era contrário à permanência do Bispo de Malaca,

deputado pela Índia, no Parlamento 417– esta legislação eleitoral foi discutida e objecto de várias

interpretações 418.

A par destas, houve outras discriminações “positivas”, cujo sentido era o de minorar os inconvenientes da distância a que se encontravam as províncias ultramarinas, através de subsídios especiais419 e da antecipação da vinda de deputados substitutos420. Nas leis eleitorais

413 Contra isso dispuseram: a lei de 9 de Abril de 1838 (“Os Senadores e Deputados destas partes da

Monarquia, que forem eleitos para uma legislatura, continuarão na seguinte, até que sejam substituídos pelos seus sucessores”, art. 87); o Decreto de 12 de Agosto de 1847 (“os deputados pelas províncias ultramarinas, eleitos para uma Legislatura, continuarão na seguinte, até serem legalmente substituídos”, art. 95; o Decreto de 28 de Abril de 1845, art. 93; o Decreto de 20 de Junho de 1851, art. 146; e o Decreto de 30 de Setembro de 1852, art. 113.

414 V. DCD, sessão de 25 de Fevereiro de 1852, p. 221. 415 Ibid., p. 223.

416 Ibid., p. 225.

417 V. DCD., sessão de 25 Fevereiro de 1852, p. 221 e ss. e p. 236. O bispo encontrava-se há 14 anos

no parlamento, a substituir deputados eleitos que não chegavam, tendo o seu caso já tinha sido discutido na sessão de 7 de Março de 1849, na qual se tinha aprovado o parecer favorável à sua permanência. Em 1852, contudo, foi aprovado o parecer negativo, v. DCD, sessão de 26 de Fevereiro de 1852, p. 241.

418Para os deputados favoráveis à permanência do Bispo, a expressão “até que sejam legalmente

substituídos” destruía a restrição contida na expressão “até à seguinte legislatura”, no decreto de 12 de Agosto de 1847 como no de 20 de Junho de 1851. Discutiu-se também se a legislação envolvia estar sempre completa a representação do ultramar ou apenas visava evitar que estivesse sistematicamente ausente, não envolvendo isso a presença de todos os deputados de cada uma daquelas províncias; e se os deputados se substituíam individualmente, ou se se tratava de uma questão numérica, caso em que o mesmo deputado podia estar presente em substituição de vários deputados ausentes.

419 Foi o caso da Lei de 25 de Abril de 1845, que regulou o subsídio dos deputados, estabelecendo

que os deputados da Ásia e África lá domiciliados vencessem o subsídio no intervalo das sessões das Cortes Gerais (Legislação Novíssima, cit., vol. I, p. 358); ou do Decreto de 12 de Agosto de 1847, para que não

gerais determinou-se também o número de deputados pelo ultramar, de acordo com cálculos que permaneceram indiferentes aos montantes da população, na maior parte dos casos desconhecida e indeterminada, tendo aquele número variado muito pouco ao longo do século, à excepção do caso indiano:

Nas Instruções de 7 de Agosto de 1826, estabeleceu-se, como regime provisório, que as Ilhas de Cabo Verde com os estabelecimentos de Bissau e Cacheu, elegessem dois deputados, o Reino de Angola com Benguela um deputado, Moçambique com suas dependências, um deputado, os Estados de Goa um deputado e os estabelecimentos de Macau, Timor e Solor, um deputado. Por decreto de 28 de Maio de 1834 determinou-se que o Estado da Índia pudesse nomear, em vez de um, três deputados, tendo essa sido uma alteração acolhida no Decreto eleitoral de 3 de Junho de 1834 (quanto ao resto, ficou tudo na mesma). No Decreto de 4 de Junho de 1836 Cabo Verde passou a ser referido nas leis eleitorais ao lado da Madeira e Açores, e não já como província ultramarina, tendo passado a eleger dois deputados. No Decreto de 8 de Outubro de 1836 Goa passou a ter só dois deputados. A Constituição de 1838 foi omissa quanto ao número de deputados mas a Lei de 9 de Abril de 1838 dedicou um capítulo às eleições dos deputados e Senadores nas províncias ultramarinas. Por essa lei,as ilhas de Cabo Verde, com os estabelecimentos de Bissau e Cacheu, o

Reino de Angola com Benguela, Moçambique e suas dependências e as Ilhas de S. Tomé e Príncipe e suas dependências elegiam cada uma dois deputados e um Senador, os Estados de Goa dariam quatro deputados e dois senadores, e os Estabelecimentos de Macau dois deputados e um Senador, devendo-se-lhe juntar os votos de Timor e Solor. Elevava-se assim para catorze o número de deputados pelas colónias e dava-se-lhe oito membros no Senado. Esta representação (excepto os senadores, que desaparecem) foi conservada, depois do restabelecimento da Carta, pelo decreto de 5 de Março de 1842. No Decreto de 28 de Abril de 1845 S. Tomé e Príncipe passou a dar um só deputado e, tendo sido separados os círculos eleitorais de Macau Solor e Timor, Macau passou a dar um deputado e Timor e Solor outro. No Decreto de 27 de Julho de 1846 Cabo Verde, Bissau e Cacheu davam dois deputados, Angola e Benguela dois deputados, S. Tomé e Príncipe, dois deputados, Moçambique, dois deputados, os Estados de Goa quatro deputados, Macau um e Timor outro, números que permaneceram iguais no Decreto de 12 de Agosto de 1847, com excepção de S. Tomé e Príncipe, que passou a ter um só deputado, depois recuperado no Decreto de 20 de Junho de 1851, que não introduz nenhuma outra alteração. Tudo ficou na mesma no Decreto de 30 de Setembro de 1852, na Lei de 23 de Novembro de 1859, que instituiu os círculos uninominais, e no Decreto de 21 de Dezembro de 1859. No Decreto de 18 de Março de 1869 reduziu-se o número de círculos e, portanto, de deputados, passando a existir dois círculos no Estado da Índia, um na província de Macau e Timor, um na Província de Angola, um na província de Moçambique, um na

recebessem este subsídio quando as províncias ultramarinas nomeassem deputados “naturais, ou estabelecidos no reino de Portugal” (art. 100).

420 Como o Decreto de 8 de Outubro de 1836: “Nas Ilhas Adjacentes e no ultramar se observará a

mesma forma de eleição prescrita nos Artigos antecedentes; mas com a Deputação de cada uma das Províncias do ultramar virá logo para Lisboa o primeiro substituto, salvo se em Portugal residir algum [...]” (art. 61).

província de Cabo Verde e outro na de S. Tomé e Príncipe. Desapareceu o círculo por Timor, que só voltaria a ser restabelecido com a lei de 3 de Julho de 1870. A Lei de 8 de Maio de 1878 voltou a

aumentar o número de deputados, já que passou a eleger-se em dois círculos na província de Cabo Verde, um na de S. Tomé e Príncipe, dois em Angola, dois em Moçambique, três no Estado da Índia, dois em Macau e Timor. Mas a Lei de 21 de Maio de 1884 foi omissa em relação ao ultramar, não se referindo a qualquer especificidade nem incluindo o respectivo mapa os círculos eleitorais do ultramar. No Decreto de 28 de Março de 1895 passaram a existir apenas seis círculos e seis deputados pelo ultramar.

Descritos os tópicos principais da discussão sobre a representação política do ultramar e os seus reflexos na legislação eleitoral dos anos ‟30 e seguintes, resta agora indagar sobre a razão de ser da centralidade do tema, sobre o peso relativo das “razões de ser” que lhe estiveram associadas. Saber, enfim, porque é que continuava a ser importante assegurar a plenitude da representação ultramarina.

6.2. A memória da independência brasileira

Em primeiro lugar, a preocupação com a plenitude da “representação ultramarina” surgiu associada, como nos anos vinte, ao temor que suscitava uma possível activação de “elementos desagregadores” que os deputados continuaram a relacionar com a diversidade dos territórios ultramarinos. A grande diferença é que, a partir dos anos trinta, esse temor não teve como objecto privilegiado o federalismo. O perigo federalista foi substituído por um outro, que era a perda pura e simples dos territórios ultramarinos a favor de outras uniões:

“O nobre orador patenteou em parte o verdadeiro estado das nossas colónias, aonde as rivalidades de raças, as agitações e os péssimos funcionários têm produzido um espírito de revolta que qualquer incidente pode exaltar, e levar aos últimos excessos [...]. Sobretudo em Angola, as tentativas para uma união com o Brasil não tem sido imaginárias” 421.

Essa perda seria, como nos anos vinte, ocasionada por “paixões”, i.e., pelos “ciúmes” dos povos do ultramar, surgindo a representação política, de novo, como um meio privilegiado de diluir desconfianças, que os deputados da metrópole consideravam não justificadas. Quando se colocou a hipótese, não concretizada, de fechar as portas do Parlamento a Teodorico Abranches, o já falado deputado eleito por Moçambique, alguém se perguntou “[...] o que diriam aqueles remotos

421 V. O Nacional, nº 751, 9 de Junho de 1837, sessão de 8 de Junho de 1837, p. 4289 ( ?), Dep. José

Estêvão). Sobre as relações estreitas que existiam entre o território angolano e o Brasil, por causa do tráfico de escravos, veja-se, em geral, Manuel dos Anjos da Silva Rebelo, Relações entre Angola e Brasil, 1808-

1830, Lisboa, Agência Geral do ultramar, 1970 e os trabalhos recentes de Maria de Fátima Silva Gouvêa, que reenviam para o passado dessa relação quase umbilical, nomeadamente na comunicação “Elites «imperiais»: oficiais régios e redes clientelares no Brasil e Angola (século XVIII)”, 2º Colóquio de História Social das

povos vendo ali regressar como rejeitado o seu representante [Teodorico Abranches], que enviaram à metrópole. Eu imagino o seu dissabor e as suas desconfianças (...). A rejeição seria tão perigosa quando estamos a ponto de perder aquelas importantes possessões, quando [...] sem

elas não poderemos jamais chegar a ser Nação de algum respeito[...]” 422.

Esta invocação do “ciúme” não podia deixar de trazer para a assembleia a recordação da independência brasileira, cuja memória começava a construir-se. Se se queria evitar a repetição do fenómeno brasileiro, havia que garantir que os representantes das colónias tomassem parte na discussão do Projecto da Constituição. Para que não pudessem, a posteriori, negar o seu

assentimento à Constituição que fosse votada 423:

“O Congresso mal poderá legislar para as nossas possessões na Ásia, e na África, enquanto os seus representantes não tomarem assento neste Congresso. A minha opinião funda-se em dois motivos: primeiro por ter visto de perto que muitas das medidas precipitadas que se tomaram no Congresso das Necessidades a respeito do Brasil, foram a causa imediata da separação daquele império. A falta de informações locais fez-se sentir em todas aquelas medidas; e em segundo lugar porque vejo todos os dias, que as leis adoptadas com toda a informação possível, nem assim mesmo saem perfeitas, e a

cada hora nos vemos obrigados a reformá-las” 424.

Com as últimas afirmações o deputado remetia para o outro aspecto em que se fundamentava a bondade de uma representação plena do ultramar, a presença, nas Cortes, de pessoas com conhecimentos “locais” .

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