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Especificidades ultramarinas: diversidade de interesses, diversidade de

No documento A cidadania no Ultramar português (páginas 109-114)

4. O modelo vintista positivado

4.4. Especificidades ultramarinas: diversidade de interesses, diversidade de

Outra das questões que se colocaram no momento de discutir a representação política do ultramar foi a da diversidade legislativa. Essa questão pôs-se, no plano constitucional, ainda antes da chegada dos deputados da América, a propósito do prazo a estipular para a revisão da Constituição. Nessa altura houve deputados que recordaram que ele não devia ultrapassar os

quatro anos, por não estar completa a representação do “Reino Unido”. Podia haver modificações

“a respeito de certos artigos que dependem de circunstâncias locais, porque não podem ser aplicáveis os artigos que se estabeleceram para o Reino de Portugal e Algarves para as

províncias ultramarinas” 347. Depois, já com a presença de deputados americanos, a reflexão

sobre o tema foi orientada pela necessidade de encontrar uma resposta à questão de saber se devia haver uniformidade na legislação constitucional ou se as diversidades que separavam as províncias europeias das ultramarinas impunham a elaboração de legislação constitucional específica. Nesta discussão houve deputados que admitiram que, exigindo a diversidade ultramarina uma legislação ordinária específica para o ultramar, a Constituição devia prescrever

344 DCGECNP, sessão 9 Fevereiro 1822, p. 146, Dep.Castelo Branco.

345 V. António Manuel Hespanha, “Pequenas Repúblicas, Grandes Estados. Problemas de

organização Política entre Antigo Regime e Liberalismo”, in O poder local em tempo de globalização, Coimbra, Imprensa da Universidade, 2005.

346 V. sessão de 9 Fevereiro de 1822, p. 149.

condições específicas para a formação dessa legislação; tendo-se, numa fase mais radicalizada da discussão, discutido sobre o local apropriado para a produção da legislação ultramarina 348. Outros deputados entenderam que a Constituição se situava num plano “acima” da diversidade, pelo que, tal como o problema das distâncias, os outros problemas postos pela diversidade das províncias ultramarinas não difeririam, senão em grau, dos que se colocavam com a diversidade entre as províncias do Reino, não exigindo a formação da respectiva legislação nenhum princípio de excepcionalidade.

O problema da diversidade legislativa acrescentou também uma nova dimensão ao tema da representação política ultramarina. Para o primeiro grupo de deputados, se a legislação era diferente, então eram necessários “conhecimentos locais” para legislar, sendo lógico que, de acordo com isso, os deputados do ultramar fossem nascidos ou, pelo menos, domiciliados, nos círculos eleitorais que os tinham eleito, i.e., no ultramar. A ideia que se articulava com esta proposta era a de que deviam estar sempre presentes no Parlamento deputados conhecedores das realidades locais, capazes de interpretar interesses especificamente ultramarinos e garantir a

legislação apropriada349. Pelo contrário, para o outro grupo de deputados devia haver plena

liberdade de eleição, porque os interesses da Nação eram gerais, podendo ser interpretados por qualquer deputado. Uma vez eleito, cada deputado representava toda a Nação, e não somente a sua circunscrição eleitoral:

“Desejamos para Deputados de Cortes homens universais por assim dizer, que conheçam todos os interesses e saibam estabelecer leis adequadas a toda a família portuguesa, assim ao Brasileiro, ao Angolez, ao Macaista, como ao Algarvio e ao Lusitano, homens a quem se lhe perguntar: donde sois ? Possa responder com Sócrates:

“Eu sou do mundo Lusitano” A quem representais! A toda a família portuguesa” 350.

348 A ideia da diversidade legislativa não se confundia com a do lugar onde a legislação devia ser

produzida e, já no século seguinte, foi isso que separou os partidários do regime de autonomia dos partidários da do regime de assimilação: estes últimos dirão que podia haver diversidade legislativa, como o havia para as províncias da metrópole, mas de legislação aprovada no Parlamento. Os partidários da autonomia (como Ruy Ulrich, ou Eduardo Costa) dirão que a legislação devia ser feita localmente, as em regime ditatorial, e não pela criação de assembleias legislativas coloniais.

349 A ideia de que a administração dos territórios ultramarinos envolvia a presença de pessoas com

conhecimentos especializados nos diversos órgãos da governação surgiu de novo a propósito da composição do Conselho de Estado. Para alguns deputados os Conselheiros de Estado deviam ser em igual número do ultramar e do continente, porque o Conselho devia ter no seu seio “quem esteja assaz informado das localidade e mais circunstâncias privativas de um ou outro continente”, v. sessão de 17 de Setembro de 1821, p. 3431, Dep. Borges Carneiro. Discutiu-se igualmente se os juízes do Supremo Tribunal deviam ser “compostos metade de europeus e metade de brasileiros, assim como se estabeleceu para a Deputação Permanente de Cortes e para o Conselho de Estado; ou serão promiscuamente nomeados entre europeus e ultramarinos” (sessão de 4 de Março, p. 348, Dep. Borges Carneiro). A divisão em torno destas possibilidades opôs de novo os deputados eleitos no Brasil aos eleitos na metrópole; mas também estes entre si. Castelo Branco, por exemplo, era favorável à paridade dos juízes, não o sendo, neste caso, Borges Carneiro.

350 V. DCGECNP, sessão de 19 Outubro de 1821, p. 2715, Dep. Borges Carneiro. Evocando esta

parte “angolesa” da família portuguesa, existe um folheto, escrito pelo deputado do Reino de Angola, Manoel Patrício Correia de Castro, com pouca substância de conteúdo, mas com o interessante título de Aos meus

Ao argumento da natureza representativa do mandato acrescentou-se um outro: a distinção que se fazia entre a representação da Europa e do ultramar seria perigosa, porque criaria a ideia de que os interesses ultramarinos eram essencialmente diferentes dos europeus e, com isso, activaria os temidos elementos de desagregação da Monarquia. Desta vez, foram os

mais radicais dos deputados integracionistas351 a apelar ao valor dos factores psicológicos,

nomeadamente quando recordaram, a esse propósito, o exemplo menos feliz de Cádis:

“[...]os espanhóis cometeram um grande erro compondo a deputação permanente de igual número de membros europeus e ultramarinos; porquanto foram deste modo persuadir os povos do ultramar que os seus interesses eram diferentes; e que

necessitavam privativamente dos seus naturais para os vigiar” 352.

Os mesmos deputados recordaram a existência dos interesses regionais diferentes que separavam as províncias do Reino de Portugal, de forma a ampliar até ao absurdo as consequências políticas de posições mais diferencialistas ou, mais provavelmente, de modo a trivializar a questão e a salientar a indiferenciação absoluta entre os territórios que compunham o “Reino Unido”, estivessem estes localizados na Europa, na América, em África ou na Ásia.

Finalmente, não deveria haver distinções entre deputados europeus e deputados

ultramarinos, muito menos na Constituição, porque isso constituiria um “princípio de

federalismo” 353.

4.5. Especificidades “intra-ultramarinas”: África e Ásia

Muito menos problemáticas do que todas as questões atrás abordadas foram as propostas onde se perspectivou um “tratamento diferenciado” que garantisse a igualdade do estatuto das

províncias do ultramar não americano. É que – apesar de ambiguidades e discriminações, que

serão descritas em outro capítulo (v. infra, 10) –, a representação política dos territórios

ultramarinos de África e da Ásia também estava implicada nesta discussão. Neste plano a

discussão encaminhou-se no sentido de obter a igualdade diferenciando, agora, entre as “partes”

ultramarinas do território, sem que com isso tivessem sido levantados grandes problemas. No caso particular da África e do Ásia, uma vez que estavam em causa territórios pouco povoados, era necessário introduzir critérios excepcionais para o cálculo do número de deputados, tais como

Amados compatriotas, habitantes do Reino de Angola e Benguela, a quem se pedia que não seguissem a via, que acabou por ser a seguida na América, da desunião com a metrópole ( Typografia de M. P. De Lacerda, 1822, p. 1-5).

351 Esta designação foi a adoptada por Valentim Alexandre em Os sentidos[…], cit.

352 V. DCGECNP, sessão de 14 Novembro de 1821, p. 3077, Dep. Xavier Monteiro. Opinião

semelhante foi manifestada por um deputado eleito na América (“É necessário que desapareça do povo a ideia de que há deputados de Portugal e deputados do Brasil: todos somos deputados da mesma Nação[…]”, v. DCGECNP, sessão de 12 Nov.de 1821, p. 3048, Dep. Miranda).

353 V. DCGECNP, sessão de 12 Nov. de 1821, p. 3046, Dep. Miranda; v. também DCGECNP,

a dimensão territorial ou a importância histórica e económica desses territórios, com o objectivo de assegurar que cada um deles tivesse, pelo menos, um deputado, qualquer que fosse o número dos seus habitantes livres. Foi esse o sentido das propostas apresentadas quando se discutiu o decreto eleitoral de 11 de Julho de 1822. Uma delas foi que na eleição de deputados nesses territórios não se atendesse ao número de habitantes mas à “importância” dessas partes da Monarquia. Assim, para que as ilhas de S. Tomé, Moçambique e suas dependências, Goa e

Macau, entrassem na representação nacional, devia atender-se ao “princípio de que se não devia

olhar à população de cada um destes estabelecimentos (no qual caso a nenhum deles toca dar deputado algum) mas sim os interesses destas possessões riquíssimas, ao que são hoje, que

podem vir a ser, e à gloriosa recordação de sua incorporação no território português”354.

Subscrevendo a mesma ideia, Castelo Branco defendeu, no mesmo sentido, que “ainda que a população dos homens livres não chegasse a completar o que está estabelecido, eu acho que nessa regra geral se deve fazer excepção para os casos em que já uma parte da Monarquia se não possa unir a outra para a representação dos seus interesses, porque então é preciso salvar outro princípio mais essencial, e é que não deve haver uma parte da Monarquia Portuguesa que fique sem ser representada. Peço portanto que quando a população não chegar a completar a base estabelecida na Constituição, que se faça uma excepção para as Ilhas de S. Tomé, e

Príncipe, assim como para outra qualquer parte, que esteja em idênticas circunstâncias” 355.

Foi com base nesses critérios, em cuja selecção ganharam valor argumentativo um conjunto de mitos oitocentistas associados ao Império356, que se aprovaram divisões eleitorais como a de S. Tomé e Príncipe, Macau e até Timor-Solor. Evidenciou-se, porém, nesta argumentação, algum arcaísmo na forma como se pensava a função dos territórios ultramarinos: o interesse económico das “possessões” referidas, o qual devia servir de critério para a sua representação, podia até consistir no comércio de escravos:

“Que esta província deva dar um Deputado, ninguém duvidará disso, se considerar a riqueza e importância desta província, a sua fertilidade em escravos que se importam para o Brasil, marfim, anil, arroz, etc. Deve portanto dizer-se que Moçambique

com suas dependências dará um Deputado, qualquer que seja a sua população” 357.

354 V. DCGECNP, sessão de 18 Junho de 1822, p. 474. Dep. Borges Carneiro

355 V. DCGECNP, sessão 18 Junho de 1822, p. 475. Dep. Castelo Branco.

356 Os mitos do El Dorado e da Herança Sagrada, cuja função nos discursos coloniais potugueses

foi analisado por Alexandre em "A África no Imaginário Político Português (séculos XIX-XX)", Penélope, nº 15, 1995. Também em João Pedro Marques o valor histórico e patrimonial era o elemento comum à base argumentativa que sustentava os dois projectos coloniais em presença no Portugal de 1820-1865; estando o argumento económico associado a um deles, optimista e voluntarista, mas ausente no outro, “desalentado e expectante”, v. Os sons do silêncio […], cit., p. 398.

357 V. DCGECNP, sessão de 18 de Junho 1822, p. 476, Dep. Borges Carneiro. Concordava, assim,

com a opinião do deputado Mantua, que entendia deverem as ilhas africanas ter representação no Congresso por ali se fazer tráfico de escravos, “de sorte que vem a ser de muita importância estas ilhas para Portugal e para a América” (ibidem, p. 476). E, de facto, após a independência do Brasil – e até aos anos 30 -, a participação no tráfico negreiro constituiu a via escolhida pelos governos portugueses para manter as relações

A permanência deste critério, em vez do critério puramente demográfico, irá perdurar, sugerindo outras especialidades para estes outros ultramares (v. infra, 8.7.5.2.3, 7.8.1.1, 7.8.2).

Houve, portanto, mais um plano em que a diversidade se manifestou – o da diversidade

“inter-ultramarina”, que separava o ultramar americano do ultramar africano asiático. Só que, ao contrário do que sucedeu nas discussões anteriores, o reconhecimento desta outra diversidade não suscitou fortes reacções integracionistas, apesar de ter havido opções que revelam uma notável indisponibilidade para levar muito longe os princípios mais diferenciadores.

A especificidade deste outro ultramar era tal, que podia tornar problemática a aplicação de excepções que tinham sido introduzidas por causa das especificidades americanas. Por exemplo, a

naturalidade/domicílio obrigatório dos deputados – que, como veremos, foi aprovada na

Constituição para facilitar a representatividade das províncias americanas –, podia constituir-se num problema em alguns territórios africanos, como se fez notar numa indicação contrária ao art. 6 da lei eleitoral. Nesse artigo estabelecia-se, de acordo com a Constituição, que ninguém pudesse ser votado em Província de onde não fosse natural ou tivesse residência de um mínimo de cinco anos e afastava-se da possibilidade de serem votados os degredados e todos os que não tivessem rendas e bens de raiz, comércio, indústria ou emprego para se sustentar. As duas exigências contrariavam fortemente a possibilidade de se eleger deputados pelas ilhas de Cabo Verde, em virtude do “atraso e pobreza geral das referidas ilhas”. Não havia habitantes de naturalidade ou que residissem há 5 anos na ilha e que, simultaneamente, preenchessem aquelas condições, “já pela falta de população, já pela sua extremada pobreza, já pela sua atrasada educação social e literária, não se sabendo ali até bem falar a língua portuguesa […]” . A proposta, que seguia a indicação, de que se criasse um regime diferente para Cabo Verde, foi no entanto rejeitada 358, porque punha em causa opções gerais

sobre a teoria da representação359. O voto como função pública mais destinada a seleccionar

capacidades do que a representar pessoas não era, na constituinte vintista, uma teoria já estruturada, que pudesse apoiar a ideia de liberdade de voto ancorada na convicção de que só ela permitia seleccionar para deputados os “mais capazes”, estivessem eles onde estivessem (v. infra,7.7.3). Ainda assim, como veremos mais detalhadamente, diferenças significativas entre o ultramar americano, africano e asiático fizeram com que estes outros ultramares, que não eram mais do que um conjunto de pequenos “enclaves”, nunca se tenham constituído em referente sério dos discursos integracionistas do vintismo, na sua versão mais radical como nas suas versões mais moderadas (v. infra, 10).

entre Portugal e as colónias africanas, v. Valentim Alexandre, As Origens do colonialismo português

moderno, Lisboa, Sá da Costa, 1979, p. 36 e ss.

358 V. sessão de 2 de Setembro de 1822, p. 321. A proposta consistia num Aditamento que

suspendesse o art. 6 da lei de Julho de 1822 no que dizia respeito às ilhas de Cabo Verde.

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