• Nenhum resultado encontrado

Conclusão: a representação política como símbolo

No documento A cidadania no Ultramar português (páginas 136-143)

6. O dogma da unidade e da representação política do ultramar na Carta

6.4. Conclusão: a representação política como símbolo

Houve, por isso, um enorme contraste entre a consagração como dogma da representação política do ultramar e a sua relativa irrelevância, não só no plano do seu

funcionamento institucional prático – onde a sua ineficácia era previsível, dado o funcionamento

em geral do sistema eleitoral oitocentista em todas as suas etapas, do recenseamento ao acto de

votar439 – mas, sobretudo, também no que diz respeito à ausência de esforços para a construir

legislativamente, em termos consistentes com a necessidade de produzir legislação adaptada aos condicionalismos locais das províncias ultramarinas. Dai que me pareça que as normas especiais para a regulação da representação política do ultramar visaram um objecto sobretudo simbólico – o de demonstrar a sinceridade dos princípios igualitários que uniam os portugueses de todos os hemisférios, o de mostrar aos “irmãos do ultramar” que a metrópole não era “[...] madrasta – que

os seus interesses são para nós alguma coisa – e que a maioria do Congresso nacional,

determinada a respeitar as leis e a proteger os direitos do povo, não parou ante as formalidades,

para favorecer uma parte da Monarquia Portuguesa” 440. Que eles não tinham, por isso,

legitimidade para se revoltar contra a sua metrópole. A questão da representação era uma questão de liberalidade para com os “irmãos”do ultramar, como explicou também o deputado (e jurista) Levy Maria Jordão:

“[…] é da parte dos governos mais reaccionários, ou que possuem ideias menos liberais, que parte a ideia de negar às colónias representação no parlamento; e são

438 A verdade é que já nos discursos constituintes de Almeida Garrett, apesar da relevância que ele

concedia à presença dos deputados do ultramar nas Cortes, está presente o tópico da ineficácia da legislação elaborada em Cortes, havendo uma nítida valorização das leis da ditadura (quer para as colónias quer para o Reino).

439 V., sobre a manipulação no processo eleitoral de oitocentos, Pedro Tavares de Almeida, Eleições

e Caciquismo no Portugal Oitocentista (1868-1890), Lisboa, Difel, 1991.

sempre os governos com tendências mais liberais [...] que querem as colónias

representadas no Parlamento” 441.

Tudo se passa como se, consagrado na Constituição esse instrumento de igualdade,

ficassem resolvidos todos os problemas derivados de uma real desigualdade 442. O

reconhecimento e regulação de uma representação política do ultramar estavam mais orientados para funcionar simbolicamente do que para uma concretização normativa. Com a preservação desse símbolo, que era um símbolo de igualdade, visou-se, em primeiro lugar, produzir pacificação. A representação política do ultramar funcionou ainda como um álibi, através do qual o

legislador se mostrava sensível a exigências que não podia (ou não queria) concretizar 443. Era um

álibi com o qual se desejava resolver o problema da desigualdade que existia entre território(s) ultramarino(s) e território metropolitano e as tensões que essa desigualdade suscitava. Tinha sido usado, nas Cortes vintistas, para recusar as instituições representativas locais e federais proposta pelos deputados americanos e, depois da independência do Brasil, permitiria afastar como dispensável a formação de instituições representativas locais em África e, sobretudo, na Índia, como se verá (v. infra, 10.4.6). Essa função foi ironicamente denunciada pelo deputado goês Jeremias Mascarenhas, que em mais do que uma ocasião agradeceu a generosidade dos

portugueses, por concederem aos “irmãos” do ultramar o presente da representação política, mas

que em outras não resistiu a recordar a esses mesmos “irmãos” da metrópole que presente com igual (ou maior) valor seriam as assembleias provinciais com atribuições legislativas (v. infra, 12.10.4.6). A verdade, porém, é que ele próprio, apesar das constantes intervenções que fez contra a desigualdade de direitos entre cidadãos do ultramar e da metrópole, não insistiu muito nessa solução. Por motivos que se prendiam com equilíbrios locais de forças e provavelmente também com a sua capacidade para aceder às instituições do “centro”, Jeremias Mascarenhas, que fazia parte da única deputação pelo ultramar que conseguiu eleger deputados naturais de forma sustentada, talvez estivesse mais interessado na obtenção de políticas assimiladoras e até centralizadoras, a isso se ligando o seu interesse em garantir a naturalidade e domicílio dos deputados do ultramar. Também nisso saiu vencido porque, como se verá, a solução para o problema da “diferença ultramarina” não passou pelo envolvimento do parlamento na decisão das políticas a seguir, nem por uma descentralização em instituições representativas locais. Em vez disso, passou por outras soluções, bem menos compatíveis com os princípios liberais de governo

441 V. DCD, sessão de 12 de Julho de 1869, p. 736, Dep. Levy.

442 Sobre esta “ideia mágica de Constituição” v. Rogério Ehrhardt Soares, “O Conceito Ocidental de

Constituição” in Revista de Legislação e Jurisprudência, nº 119, 1986, p. 36 e ss..

443V. Marcelo Neves, A Constitucionalização simbólica, S. Paulo, Editora Académica, 1994, p. 39.

(“A legislação álibi decorre da tentativa de dar a aparência de uma solução dos problemas sociais ou, no mínimo, da pretensão de convencer o público das boas intenções do legislador”, quase sempre com pouco sucesso). Também nesta sua função o direito “tem uma relativa autonomia em face do processo real de poder, condicionando-o em certa medida”, porque “produz efeitos relevantes para o sistema político, de natureza não especificamente jurídica”, como o mesmo autor sublinha (ibid, p. 56 e 51). Sobre esta função de “ocultação” do direito veja-se também Austin Sarat e R. Kearns (eds.), The Rhetoric of Law, Michigan, University of Michigan Press, 1997 (introdução).

e com o conjunto de interesses que Jeremias Mascarenhas representava, já que foram por ele rejeitadas (v. infra, 12.10.4) 444.

A descrição que Ernesto de Vilhena fez de Jeremias Mascarenhas diz muito acerca da pouca consideração que encontrou junto de alguns deputados (e do próprio E. Vilhena):

“Este Jeremias Mascarenhas parece ter sido um daqueles homens, não raros nos meios parlamentares, que logo de princípio, por qualquer particularidade física ou mental da sua pessoa, excentricidade ou acentuada incorrecção no vestir, defeito na fala, ou outra feição ridícula, se tornaram a distracção na assembleia e a cabeça de turco de todos os irrequietos. Apenas começa o seu discurso é acolhido com observações assaz

impertinentes, interrompem-no amiúde […]”445.

A importância das funções simbólicas da representação política do ultramar talvez explique porque é que, ao contrário do que afirmou o deputado Levy, ela nunca tenha sido seriamente problematizada, nem pelos governos “menos liberais” ou mais cépticos em relação à sua funcionalidade. É verdade que essa representação e a exigência da sua plenitude foram ocasionalmente questionadas. Mas isso aconteceu sempre por motivos mais funcionais do que doutrinais, tendo estes últimos, quando convocados, estado associados a aspectos laterais à questão ultramarina, como a natureza das câmaras legislativas. Vicente Ferrer, por exemplo, não admitia como válida a exigência da “plenitude” da representação ultramarina por ser contrária à filosofia e ao direito, ao envolver um tratamento de preferência em relação à representação do

“continente do Reino446. Para o mesmo deputado, professor na Faculdade de Direito, o princípio

da “plenitude”, com as suas consequências normativas, era também um princípio contrário à natureza “progressiva” da Câmara dos Deputados:

“A Câmara dos Pares, dizem todos aqueles que a querem defender que ela representa os interesses de ordem e de conservação, e que por isso é necessário que dure muito mais tempo do que a Câmara dos Deputados, porque a Câmara dos Deputados representando o progresso, deve ser menos duradoura[...]. Por consequência,

444 Uma contagem dos projectos de lei apresentados pelos deputados do ultramar e a verificação das

respectivas taxas de sucesso conduziria a conclusões interessantes, não só sobre as significado concreto da representação política do ultramar (nomeadamente, as suas interferências no processo abolicionista português, no caso dos deputados por África), mas também dos sucessos e insucessos da deputação da índia, cujos membros investiram, claramente, na obtenção, pela via parlamentar, de legislação que favorecesse a sua posição no contexto social goês. A criação de assembleias legislativas locais mereceu também o apoio – mas ainda menos enfático – do deputado por Angola, A.J. de Seixas, conhecido traficante de escravos, como o eram outros deputados pelas províncias de África (v. DCD, sessão de 12 Julho de 1869, p. 731).

445 V. Ernesto de Vilhena, Questões coloniais[…], cit., p. 284. O próprio Jeremias Mascarenhas se

desculpou, em algumas ocasiões, pela forma como se expressava, por não ser o português a sua língua materna.

446 “[...] não faltam aqui alguns deputados do continente do Reino ? Eles não estão aqui todos, e não

obstante isso ainda ninguém se lembrou de dizer, que a representação do Continente do Reino não estava completa, e que por conseguinte não se podia funcionar”, v. DCD., sessão de 26 de Fevereiro de 1852, p. 239. Foi uma das raras ocasiões em que o “ciúme” dos europeus, tão invocado nos anos vinte, assomou nos debates dos anos cinquenta.

quem diz que os deputados do ultramar devem persistir aqui continuamente, diz uma

coisa que é contra a natureza da Câmara” 447.

Outra questão que o princípio da “plenitude” suscitou foi a de saber, a propósito da interpretação do art. 123 do decreto eleitoral de 20 de Junho de 1851, se se podia considerar constituída a câmara apenas quando todas as eleições, tanto no Reino e Ilhas adjacentes como no ultramar, estivessem terminadas, ou se bastava que mais de metade dos membros da câmara estivesse presente e com os respectivos poderes verificados. O problema punha-se por causa do

ultramar e dos atrasos que ali havia nas eleições (“quando é que estarão completas todas essas

eleições do ultramar ? […]Por exemplo, a eleição de Timor, quando virá ela ? Não está aqui o Sr.

Deputado por lá, mas ainda ontem ele me disse que leva um ano a fazer-se ali a eleição, porque lá ninguém quer votar, é necessário andar um ano inteiro para se conseguir fazer o processo

eleitoral”)448. Discutiu-se também, por causa do art. 102 do decreto eleitoral de 30 de Setembro de

1852 (“Logo que se tenha reunido a metade e mais um dos deputados eleitos pelos círculos do continente do Reino, constituir-se-ão em Junta preparatória”), se se devia ou não contar com os deputados do ultramar para se constituir essa Junta preparatória das Cortes. É que, ao contrário das outras leis eleitorais, que referiam o número total de deputados como universo de partida, esta restringia esse universo aos eleitos no Reino, mas havia deputados que achavam que não contar com os deputados do ultramar revelava “suspeição e falta de consideração por essa classe de deputados”, tendo o debate estado na origem de novas manifestações a favor da igualdade de direitos dos deputados do ultramar. Discutiu-se também se o facto de não contarem para a

formação da Junta significava igualmente que não podiam deliberar nela449.

Nas ocasiões em que a discussão esteve na origem de uma problematização mais geral da razão de ser de uma representação política do ultramar na metrópole, os argumentos assentaram, uma vez mais, em motivos puramente funcionais, mais susceptíveis de atingir o modo concreto de funcionamento da instituição do que essa sua razão de ser. Isso sucedeu, por exemplo, em 1869, quando o Duque de Loulé, então Ministro do Reino, expressou a opinião de que a representação política do ultramar reduzia as colónias a “máquinas de fazer deputados por encomenda (...) alguns dos quais nunca foram à África, não conhecem nada das necessidades do

ultramar, e talvez não conheçam a África, nem mesmo numa Carta Geográfica” 450. Mesmo

políticos particularmente interessados na questão ultramarina e na sua representação, tinham dúvidas sobre a razoabilidade de fazer representar alguns territórios. Sá da Bandeira, por exemplo, notava, em relação a Timor, ser “tão insignificante o número de indivíduos que, à vista da lei, podem habilitar-se para serem eleitores, que não existe motivo justo para que nas Cortes

447 V. DCD., sessão de 26 de Fevereiro de 1852, p.239, dep. Ferrer.

448 V. DCD, sessão de 18 de Março de 1852, p. 242-243, Conde de Samodães.

449 V. Diário do Governo, 11 de Janeiro de 1853, sessão da Câmara dos Deputados de 10 de Janeiro

de 1853, p. 47, Dep. Bordalo. O mesmo tema foi discutido na sessão de 3, 5, 7 e 12 de Janeiro do mesmo ano (v.DG, 4 Janeiro de 1853, p. 23; Ibid, 6 Janeiro, p. 31; Ibid., 8 Janeiro, p. 39).

tome lugar um deputado por Timor, cuja escolha é designada pelo Ministro da Marinha ou pelo Governador”451.

Mas o que esteve sempre fora do horizonte destas discussões foi a defesa de uma posição doutrinal contrária à extensão, por esta via, do governo representativo ao ultramar. E, no entanto, essa posição já podia ser recolhida em obras de autores então conhecidos. John Stuart Mill já tinha publicado, em 1861, as suas conhecidas reflexões sobre o governo representativo. Nesse ensaio, ele já tinha explicado que em caso nenhum os territórios coloniais deviam estar representados nas Cortes metropolitanas. Pelo contrário: os territórios coloniais habitados por

povos de raça europeia, com um “grau de civilização” semelhante ao das respectivas metrópoles,

capazes, por isso, de compreender o espírito do sistema representativo de governo, deviam, como já se viu, governar-se a si mesmos, à semelhança da “Mãe Pátria”, cada um com a sua Constituição, a sua legislatura e o seu poder executivo, reservando-se ao Parlamento e Coroa

metropolitanos um direito de veto que só muito raramente deviam exercer (unequal federation) 452.

Era, em suma, a fórmula federal que Portugal tinha recusado aplicar aos territórios americanos em qualquer das versões possíveis 453 e cuja aplicação aos outros territórios ultramarinos não se

colocou como hipótese válida, pelo menos no curto prazo 454 (v. infra, 436). No caso dos territórios

coloniais menos “avançados” civilizacionalmente, cujos povos eram incapazes de compreender o sistema representativo, não havia, na opinião do filósofo, solução pior do que a sua submissão ao governo de um Ministro responsável perante o Parlamento metropolitano. Governar um país sendo responsável perante um povo de outro país era a pior forma de despotismo, a mais incapaz de promover civilização. Era o despotismo “[...] dos que não vêem, não entendem e não sabem nada a respeito dos seus súbditos [...], pior do que o dos governantes melhor informados”) 455. A

intervenção do Parlamento metropolitano nos assuntos coloniais, achava o filósofo, seria sempre contraproducente, porque propiciava o proselitismo da política colonial, no qual se tendia a sobrepor as “ideias inglesas” às culturas nativas, o que prejudicaria o governo e a confiança dos

povos submetidos 456. Por outro lado, seria sempre favorável aos colonos ingleses – com amigos

451 V. Sá da Bandeira, Carta sobre a Reforma da Carta[…], cit., p. 21.

452 V. John Stuart Mill, Considerations on Representative Government […], cit, pp. 409-11.

453 Quer na sua versão mais desigualitária, que era a sugerida como adequada por Stuart Mill, quer

na sua versão mais igualitária (equal federation), que era o modelo dos Artigos adicionais à Constituição vintista, o qual Stuart Mill denunciava, também, como impossível de concretizar (“Os sentimentos de equidade e as concepções de moral pública nas quais estas soluções assentam merecem toda a consideração; mas as soluções em si mesmas são tão incompatíveis com os princípios racionais de governo que é duvidoso que elas tenham sido seriamente aceites como possibilidade por algum pensador razoável. Países separados por metade do globo terrestre não têm condições naturais para estar submetidos a um mesmo governo, ou até para ser membros de uma federação”, v. John Stuart Mill, ibid., p. 412).

454 Porque o mesmo Ministro que em 1869 problematizou a representação política do ultramar, o

Duque de Loulé, defendia que as colónias tivessem Parlamentos locais, mas só quando “houver elementos de administração, e quando a civilização estiver mais desenvolvida”, v. DCD, sessão de 12 de Julho de 1869, p. 731.

455 V. John Stuart Mill, ibid., p. 417.

456 Idem, ibidem, pp. 418-19. Estas afirmações faziam sentido porque, ao contrário da ideia, já

no seu país, órgãos na Imprensa e acesso fácil ao público – e sempre desfavorável à parte mais fraca, a parte nativa, quer porque “o público do país dominante ouve os colonos, e não os nativos”, quer porque aos colonos “parece-lhes monstruoso que os direitos dos nativos se transformem num mínimo obstáculo à realização das suas pretensões. O mais ligeiro acto de protecção dos habitantes contra actos de poder que considerem ser úteis aos seus interesses comerciais é por

eles sinceramente considerados como uma injustiça” 457.

Finalmente, caso fosse dada voz à comunidade “submetida”, essa voz seria sempre a voz

dos opressores da comunidade, porque só os indivíduos ou grupos poderosos teriam acesso ao público inglês 458.

Ao contrário do que perpassa no pensamento de John Stuart Mill, a referência à diversidade de interesses sociais concretos que a representação do ultramar podia ou não exprimir nunca serviu de fundamento para refutar ou para apoiar a representação política do ultramar português. Isso aconteceu porque o subsumir da diversidade à unidade implicado no conceito de representação fez com que não se distinguissem, entre as populações que habitavam o ultramar, interesses divergentes; preferiu-se, em vez desses, falar dos “interesses gerais da Nação”. Mesmo assim, é pertinente perguntar a que sujeito(s) se referiam os deputados da monarquia constitucional quando diziam que era tão português o indivíduo que nascia em Portugal, como em Macau ou em qualquer ponto “da nossa Ásia ou da nossa África”, para daí

extraírem o direito desses portugueses a enviar deputados ao Parlamento459 ou a impossibilidade

de alienar território ultramarino ?460 Perguntar qual era, enfim, o conteúdo preciso das expressões

“portugueses do ultramar” ou “cidadãos do ultramar”?

“assimilação cultural”, a alternativa entre princípios de “assimilação” e princípios de pluralismo e diversidade foi um dilema que marcou toda a discussão colonial britânica da primeira metade do século XIX, tendo dado origem a soluções concretas que variaram no tempo e no espaço de acordo imperativos económicos e políticos, com circunstâncias locais, com ideias politicas e “modas culturais”, v. Peter Burroughs, “Institutions of Empire”, in Andrew Porter (ed.), The Oxford History of the British Empire, Oxford-New York, Oxford University Press, 1999, vol. III: “The Nineteenth Centure”, maxime, p. 174 e ss.

457 V. John Stuart Mill, Considerations on Representative Government[…], cit., pp. 420-21. Este

apelo à necessidade de proteger as populações indígenas da violência dos comerciantes e colonos europeus enraizava num discurso humanitário que, desde os anos trinta do século XIX, procurava influenciar as autoridades britânicas no sentido dessa protecção, v. Andrew Porter, “Trusteeship, Anti-Slavery, and humanitarianism” in Andrew Porter (ed.), The Oxford History of the British Empire, cit., maxime, p. 207 e ss. Em Portugal, a ideia só se divulgou na doutrina colonial a partir de finais do século XIX, quando a mesma necessidade de “proteger o indígena” se constituiu em fundamento não de uma filosofia humanitária mas de opções importantes na administração colonial.

458V. John Stuart Mill, Considerations on Representative Government […], cit., p. 421. Para evitar

tudo isso, o filósofo utilitarista propôs, como se viu já em outro capítulo, que em vez do governo através do Parlamento estas dependências fossem entregues a corporações com experiência e conhecimento acumulada “no terreno”, como era o caso da Companhia das Índias Orientais. Corporações capazes de governar de acordo com os padrões de um “despotismo benevolente” que promovesse o avanço civilizacional das populações governadas (v. infra, 8.3.2)

.

459 V. DCD, sessão de 12 Julho de 1869, p. 732, Dep. Matos Correia (por Macau)

460 V. DCD, sessão de 12 Julho de 1869, p. 732, Dep. Matos Correia: “Pois os portugueses que

Era, pode-se desde já avançar, um conteúdo flutuante, que se ampliava e se retraia ao sabor dos contextos argumentativos, podendo até, em alguns (muito raros) desses contextos, abraçar o conjunto da população nativa dos territórios ultramarinos. Contudo, os interesses da maioria dessas populações, os seus direitos, a sua propriedade, foram, quase sempre, temas pouco falados.

Destas indefinições resultaram as dificuldades com que nos confrontámos quanto tentámos encontrar uma resposta clara à questão, que trataremos nos capítulos seguintes, de saber exactamente quem eram os “representados” na “representação política do ultramar”.

parte do território português ? Tanto direito temos nós de vender as nossas colónias, como estas o direito de vender a metrópole”.

7. A cidadania das populações do ultramar no direito constitucional português do

No documento A cidadania no Ultramar português (páginas 136-143)