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Os conhecimentos locais

No documento A cidadania no Ultramar português (páginas 132-136)

6. O dogma da unidade e da representação política do ultramar na Carta

6.3. Os conhecimentos locais

Para além da reconstrução de uma memória sobre os acontecimentos que tinham conduzido à independência dos territórios americanos e do medo, realista, de perder as restantes “possessões”, o tema da representação política do ultramar foi também associado, como nos anos ‟20, à necessidade de terem assento no parlamento deputados munidos de conhecimentos específicos sobre essas partes da Monarquia. Vimos já, na introdução deste trabalho, que este

422 V. O Nacional, nº 739, 23 Maio de 1837, sessão de 23 Maio, p. 4240, Dep. Alberto Carlos. 423 O Nacional, nº 751, 9 de Junho de 1837, sessão de 8 de Junho de 1837, p. 4289 ( ?).

424 V. DCD, sessão de 31 de Março de 1837, p. 171, Dep. B. da Ribeira Sabrosa. À memória da

independência das colónias britânicas na América e do Brasil juntou-se a da mais temida das independências, a da colónia de S. Domingos (Haiti), que agora se associava aos sentimentos de colonos que não se sentiam representados no parlamento francês; uma associação pouco rigorosa, como se salientou em outra sessão onde a mesma revolta foi associada, também de forma simplista, ao restabelecimento da escravidão naquela colónia (v. O Nacional, Nº 751, 9 Junho 1837, sessão de 8 Junho 1837, p. 4286, Dep. M.A de Vasconcellos). Sobre a complexidade da independência do Haiti, contrastando com a linearidade das suas apropriações, v., Laurent Dubois, Les esclaves de la République, L'histoire oubliée de la première émancipation, 1789-1794, Paris, Calmann-Lévy, 1998. Equivocada foi também a convocação do exemplo brasileiro já que, como se viu, não foi a questão da “plenitude” da representação no parlamento metropolitano que conduziu a desentendimentos irreversíveis.

tema fez surgir, nas constituintes dos anos ‟30, um discurso sobre o passado da administração colonial portuguesa que se transformou num tópico quase obrigatório em muitas obras de reflexão que a partir de então se escreveram em torno do colonialismo português, o tópico do

assimilacionismo da política colonial portuguesa. Na opinião do deputado que se pronunciou mais

detidamente sobre o assunto, Almeida Garrett, esse assimilacionismo, que as reformas da primeira ditadura liberal tinham levado às últimas consequências, era a origem da ruína, da desordem, da anarquia em que se encontravam as províncias do ultramar. Dominada por um espírito de geometria cujos efeitos perversos se tinham feito sentir até na metrópole, aquela legislação reformista tinha-se revelado ainda mais desastrosa no ultramar, porque a diferença ultramarina era ainda maior. Era preciso pôr de lado as teorias assimiladoras que tinham conduzido à perda do Brasil. Era necessário acudir às possessões ultramarinas com “remédios legais” imediatos. A médio prazo, uma das soluções vistas como susceptíveis de contrariar a tendência para o assimilacionismo legislativo era a presença de deputados do ultramar nas

Cortes, capazes de produzir legislação específica para lá 425. Desta forma, a representação

política do ultramar foi associada pelos deputados constituintes dos anos ‟30 à defesa de políticas

legislativas que diferenciassem o ultramar e não como símbolo – em que tenderia a converter-se

mais tarde – , de qualquer assimilação “uniformizadora” (e muito menos de “assimilação” das

populações nativas do ultramar à cidadania, que estava fora do horizonte desta discussão). Um pouco paradoxalmente, a discussão anterior não suscitou grandes debates em torno da naturalidade ou domicílio dos deputados pelo ultramar nas constituintes dos anos trinta, ao

contrário do que tinha sucedido nos anos vinte 426. Não obstante, a Constituição de 1838, além de

ter admitido subsídios especiais para os deputados ultramarinos427, retomou, no seu art. 76, a ideia, vintista, de que pelo menos parte dos deputados fossem naturais ou domiciliados nas

respectivas províncias428, recuperação que Sá da Bandeira viria a relacionar directamente com o

425 “Leis definitivas, nem as podemos, nem as devemos fazer, enquanto aqui não estiverem os

deputados daquelas províncias”, v. DCD, sessão de 31 Março de 1837, p. 167. Dep. Almeida Garrett, que apenas isenta das acusações de excesso assimilador as “providências legislativas que a ditadura de Sua Majestade a Rainha ultimamente foi obrigada a tomar para o regimento daquelas importantes províncias”, com as quais concordava (ibid, p. 166) e sobre as quais iremos falar em outro capítulo, por terem sido leis “diferenciadoras” (v.infra, 12.10.3.1). Propunha também a reconstituição do Conselho Ultramarino e outras medidas que apontam para um pensamento diferenciador estruturado, que Garrett iria desenvolver aquando da sua passagem pelo Conselho Ultramarino, nos anos ‟50 (v. infra, 11.11.1).

426 Não obstante, num artigo de opinião sobre o Projecto de Constituição, opinava-se que as eleições

para as províncias e possessões ultramarinas recaíssem sobre pessoas dali naturais ou domiciliadas, por “carecerem de disposições especiais, e não podem ter bons procuradores, se esses não tiverem os conhecimentos locais”, v. O Nacional, nº 696, 31 de Março, 1837, p. 4083.

427 “Os deputados das províncias da Ásia e África que não tiverem domicílio no continente do Reino

e ilhas adjacentes, vencerão também um subsídio no intervalo das sessões”, ao contrário de todos os outros, que só tinham direito a um subsídio durante as sessões (art. 57). Na sessão de 30 de Outubro de 1837 votam- se subsídios especiais para os deputados do ultramar, v. O Nacional, nº 866, 31 de Outubro de 1837.

428 “A metade dos Deputados eleitos por qualquer círculo eleitoral, deverão ter naturalidade ou

residência de um ano na província em que estiver colocada a capital do círculo; a outra metade poderá ser livremente escolhida dentre quaisquer Cidadãos portugueses. § único. No círculo eleitoral que der número impar de deputados, a metade e mais um deverá ter naturalidade ou residência de um ano na província da capital do círculo”, art. 76º.

problema ultramarino. Na sua opinião, a finalidade desse artigo era garantir a presença no Parlamento de deputados nascidos ou domiciliados nas províncias ultramarinas, fim com o qual concordava 429.

Em 1852, voltou a pôr-se o problema, comum a todas as constituintes portuguesas do século XIX, de votar o Acto Adicional sem a presença dos deputados do ultramar com procuração

para o fazer 430. Faltavam, lembrou um deputado, os catorze deputados do ultramar, por não se ter

feito ainda a eleição dos mesmos para a assembleia com poderes constituintes. Esta ausência

justificava que se adiasse a discussão, dando lugar a novas declarações a favor da igualdade431:

“Os Deputados do ultramar estão aqui, e podem funcionar em todos os actos da Câmara, menos no Acto Adicional [...]; e havemos nós também fazer tão pouco caso das nossas províncias ultramarinas ? Nem sequer ao menos a câmara há-de reunir os seus Representantes num acto tão importante ? Só se é direito do mais forte contra o mais

fraco! Há-se a Mãe Pátria dizer às províncias ultramarinas – vós sois nossos enteados,

não sois filhos desta Nação; atenderemos os outros todos, mas vós não sereis atendidos

no Acto Adicional, na Reforma da Constituição!” 432.

Apesar disso – e de estarem em discussão artigos que diziam directamente respeito às

províncias ultramarinas –, a questão foi muito menos debatida nestas constituintes, por se achar

que o problema da presença ou não dos deputados ultramarinos estava suficientemente resolvido na legislação eleitoral. Igualmente rejeitada pela assembleia constituinte de 1852 foi um artigo adicional proposto pelo único deputado do ultramar presente na discussão do Acto Adicional, um

429V. Sá da Bandeira, Carta dirigida ao Ex.mo Sr. José Maria Latino Coelho sobre a Reforma da

Carta Constitucional, Lisboa, Imprensa Nacional, 1872, p. 20-21 (“Para utilidade das mesmas províncias convirá determinar que somente podem ser eleitos deputados por cada uma d‟elas, cidadãos naturais das mesmas, ou que lá tenha residido certo espaço de tempo. Com um fim semelhante tinha a Constituição de 1838 determinado, no seu art. 76, que a metade dos deputados eleitos por qualquer círculo eleitoral, deveria ter naturalidade, ou residência de um ano, na província em que estivesse colocada a capital do círculo”); outra solução que Sá da Bandeira tinha proposto nas constituintes de 1837-38, fundado na “necessidade de introduzir na representação nacional homens que conhecessem bem as possessões do ultramar para que elas de todo a não perdessem”, foi que pudessem ser “Senadores na segunda câmara os governadores-gerais do ultramar que tiverem servido durante três anos e tiverem de renda um conto e duzentos mil réis, proveniente de propriedade sua, ou de ordenado de emprego inamovível”. Mas foi rejeitada (v. O Nacional, n.º 872, 8 Nov. 1837, sessão de 7 de Novembro, p. 7070).

430 V. DCD, Lisboa, sessão de 4 de Março de 1852, pp. 74-75, Dep. Holtreman.

431 Aqui, no entanto, o problema da ilegitimidade das poderes constituintes das Cortes era mais

fundo, já que o próprio decreto que as convocara com tais poderes violava o art. 140 da Carta, relativo à revisão do texto constitucional. Para além de que, além dos deputados do ultramar, faltavam, ao todo, 49 deputados, num universo dos 158 deputados que deviam integrar a câmara. Tudo isto foi aproveitado pelos adversários da revisão constitucional para propor o seu adiamento. É provável, portanto, que a ausência dos deputados do ultramar tenha sido funcionalizada a esse objectivo.

432 V.DCD, sessão de 4 de Março de 1852, p. 75, Visconde de Azevedo. Aparentemente, nunca as

constituintes contaram com a presença de deputados ultramarinos, já que segundo Marnoco e Souza, quando o governo provisório da República convocou, por Decreto de 28 de Abril de 1911, as assembleias eleitorais do continente e ilhas adjacentes para o dia 28 de Maio, a fim de elegem os deputados às cortes constituintes, não falou de eleições no ultramar (v. Constituição da República [...], cit., p. 5). Embora o decreto de 5 de Abril do mesmo ano referisse as colónias, que conservavam o sistema uninominal.

deputado eleito pelo Estado da Índia, Jeremias Mascarenhas, católico de origem indiana, natural

de Goa433. O sentido da sua proposta foi o de reintroduzir medidas que favorecessem a

naturalidade dos deputados do ultramar, contrárias à liberdade de voto consagrada na Carta (“Na província ultramarina que der mais de um deputado, a eleição de deputados, em metade, ou menos, recairá em indivíduos naturais dela, ou que tiverem nela residência de mais de três

anos”) 434. Mas da mesma forma que os seus protestos contra a discussão das disposições

relativas ao ultramar na ausência dos deputados do ultramar435, não foram ouvidos, também este

seu artigo foi rejeitado, com base na defesa do valor da liberdade eleitoral, por um lado, e num outro argumento que, sem desvalorizar a importância da população ou o valor simbólico dos territórios ultramarinos, valorizava também a sua (falta de) ilustração: é que nem sempre se encontravam, no ultramar, homens ilustrados, com perfil para ser eleitos deputados da Nação, podendo mesmo não haver, em certas províncias, quem as pudesse representar no

Parlamento436. Afirmava-se, de novo, uma noção de voto como “selecção de capacidades”, onde

quer que estas se pudessem encontrar.

Deste modo, os mecanismos destinados a garantir a presença de deputados naturais ou domiciliados no ultramar, que desapareceram com a reposição da Carta Constitucional, em 1842, não foram recuperados, nem nos Actos Adicionais à Carta, nem na legislação eleitoral. Isso ajudou a produzir uma certa “inutilidade” da representação do ultramar, reconhecida e confirmada pelos deputados oitocentistas em inúmeras sessões, constituintes e ordinárias, das Cortes de oitocentos. A maioria dos deputados pelo ultramar não conhecia o(s) ultramar(es) que representava, foi a crítica que percorreu as discussões e a literatura do século, sem que nada tivesse sido feito, no plano legislativo, para alterar a situação437.

433 Eleito pelo Círculo de Goa durante as quatro legislaturas seguidas que decorreram entre 2 de

Janeiro de 1848 e 26 de Março de 1858, o deputado assumiu no Parlamento ser “de raça pura indiana” mas “verdadeiro cristão católico romano” (agradeço estas informações à Doutora Adelaide Salvador, que gentilmente me disponibilizou o texto que redigiu para o Dicionário biográfico parlamentar, entretanto publicado pela Assembleia da República).

434 V.DCD, sessão de 24 Março de 1852, p. 311.

435 “[…] sendo um dos Deputados pelo ultramar, e actualmente único filho do Ultramar com assento

nesta casa, seria taxado de réu de traição de mandato, de que estou investido, ou de cobardia criminosa, se consentisse que passasse à revelia a doutrina consignada no artigo em discussão, cujas disposições dizem respeito exclusivamente às províncias ultramarinas”, v. DCD., sessão de 24 de Março de 1852, p. 306. Referia-se ao artº 15º do Acto Adicional, que recriava um sistema específico de produção legislativa para o ultramar, sistema acerca do qual falaremos em outro capítulo (v. infra, 12.10.4).

436 “[…] no continente há mais ilustração, há mais capacidades, há mais quem possa ser eleito

deputado, e no ultramar há províncias onde a civilização está atrasadíssima, há menos quem possa achar-se no caso de ser eleito deputado. E deve portanto ser mais ampla a elegibilidade no ultramar […]”, v. DCD, sessão de 27 Março de 1852, p. 339, Dep. Ferrer. Esta ideia já se tinha enunciado nos anos „20, num parecer da Comissão de Estatística, já depois de votada a Constituição, onde se notava a “exorbitância da actual deputação por as províncias do Brasil, relativamente à povoação livre, e à ilustração daquelas partes do Reino Unido, v. A H.P., secção I-II, Cx. 86, Doc. 75.

437 Em 1852, durante a discussão do Acto Adicional, o deputado Leonel Tavares afirmava, sem

provocar qualquer reacção, que muitas vezes as eleições do ultramar se faziam na Secretaria de Estado da Marinha em Lisboa, e que isso era conhecido, v. DCD, sessão de 27 de Março de 1852, p. 340.

A ideia da representação do ultramar nunca foi abandonada, esteve na origem de legislação especial, mas foi praticamente omitida pela doutrina jurídica de oitocentos. Paralelamente, nunca suscitou grandes debates nos (raros) momentos em que as reformas eleitorais foram discutidas no Parlamento, apesar de haver disposições especiais nesses textos (v.

infra, 11.6). Finalmente – e os deputados também denunciaram essa situação com regularidade -, a maioria dos diplomas legislativos pensados para o ultramar não foram sequer produzidos no Parlamento. Essa prática foi constitucionalmente sancionada no próprio Acto Adicional, com ele se consagrando uma opção política que ia no sentido de retirar ao Parlamento relevância na decisão

das questões ultramarinas, como se verá (v. infra, 12.10.4) 438.

No documento A cidadania no Ultramar português (páginas 132-136)