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Economistas e colonialismo : a utilidade das colónias

No documento A cidadania no Ultramar português (páginas 72-76)

3. Colonialismo e anti-colonialismo no pensamento político dos sécs XVIII/XIX.

3.4. Economistas e colonialismo : a utilidade das colónias

Abandonando agora a doutrina jurídica e entrando, de novo, no mundo da economia política clássica, sabe-se já que, na sua utopia, a guerra e o imperialismo deviam desaparecer, dar lugar a um sistema pacífico de comércio livre, fundado numa “divisão internacional do trabalho”,

onde as paixões se convertessem em interesse e a irracionalidade/emoção em razão208. Para a

Escola da Economia Clássica (e logo no texto que se tornou autoridade para a economia política do século XIX, An Inquiry into the Nature and Causes of the wealth of Nations, 1776, de Adam

Smith) essa transformação das paixões agressivas – que tinham lançado a Europa dos séculos

anteriores num estado de guerra endémica e justificado a opressão colonial – em racionalidade

económica, impulsionada por um sistema de liberdade de comércio, conduziria o homem para o último e mais perfeito estado do seu desenvolvimento histórico. Era essa a utopia desta Escola, crente nas possibilidades civilizadoras do comércio livre: “[...] nas sociedades modernas, dominadas por uma burguesia racional que convocava os seus interesses e não as suas

emoções, a guerra e a conquista colonial desapareceriam” 209.

Acontece que esse sistema também não era universal. Só podia funcionar se as sociedades envolvidas tivessem atingido aquele estado de racionalidade económica, fundado no

206 Comentário a Emerich de Vattel (ed. M. P. Pradier-Fodéré), Le Droit des Gens ou Principes de la

Loi Naturelle […], cit, p. 495-96 ([…] ils n‟ont aucun devoir de nous céder, par lla raison toute simple qu‟ils

n‟ont ni nos habitudes, ni nos lumières, pour connaître qu‟il serait de leur intérêt d‟accorder l‟hospitalité à des hommes qui leur apportent les bienfaits de la civilisation. Ils agissent donc dans leur droit en agissant d‟après les lumières de leur raison; et comme il ne peut y avoir de droit contre le droit, nous n‟en avons aucun de les contraindre à nous céder la place”).

207 Maria Filomena Mónica (org.), Dicionário Biográfico Parlamentar (1834-1910), Lisboa,

Assembleia da República, 2005, Vol. II (D-M), pp. 154-157.

208 Ao contrário dos colonizadores, os comerciantes não se obrigavam, em virtude das relações

comerciais em que se envolviam, a abandonar os seus locais de origem; eram, por isso, o modelo de homem “civilizado” que os colonos não podiam ser.

209 V. Bernard Semmel, The Liberal ideal and the Demons of Empire, Theories of Imperialism from

Adam Smith to Lenin, Baltimore and London, The Johns Hopkins University Press, 1993, p. 5. Ver também a perspectiva de Thomas Paine (1737-1809) em P. J. Cain, Hobson and Imperialism, Radicalism…, cit., p. 50.

interesse próprio, que o modelo do comércio livre requeria. Esse estado era, portanto, não apenas um ponto de chegada, mas também um ponto de partida, que se constituía em critério de acesso ao mundo do comércio livre.

Além disso, o sistema liberal não era sempre teorizado como um sistema igualitário. Muitos pensadores liberais reconheciam como um dado natural que o comércio livre gerava

desigualdades entre as nações mais e menos desenvolvidas, favorecendo as primeiras 210.

Finalmente, à medida que o século de oitocentos avança, torna-se claro que nem todos os economistas acreditavam (ou continuara a acreditar) na utopia liberal da economia política do iluminismo escocês, havendo, sobretudo já nas primeiras décadas do século XIX, os que contrapunham ao optimismo dos liberais mais confiantes raciocínios muito pessimistas, que aconselhavam a conservação prudente dos mercados coloniais protegidos. Para muitos pensadores da nova ciência económica, a persistência da guerra e do colonialismo eram uma necessidade, em virtude das dificuldades da nova sociedades industrial (foi o caso de James Mill e do seu filho John Stuart Mill). Adam Smith, a autoridade mais citada da economia política do século XIX, embora considerasse errada a ideia de que a expansão do comércio externo e o colonialismo nela implicada fossem vitais para a prosperidade das nações, tinha admitido a necessidade de colónias como escape de mercado para a sobre-produção das manufacturas das

metrópoles 211. Além disso, à sua relativa indiferença quanto ao futuro das populações nativas dos

territórios coloniais tinha juntado, na sua obra atrás referida, algumas considerações sobre a

melhor maneira gerir os escravos e o seu trabalho nas plantações da América212. A superioridade

do trabalho livre, em termos de produtividade e de custos, era um facto constatado para a Europa, mas não necessariamente para os outros continentes. Por estar consciente disso, o autor de

Wealth of Nations nunca sugeriu directamente que os plantadores das Índias Ocidentais veriam as

suas margens de lucro aumentar através da emancipação dos escravos, tendo, pelo contrário, reconhecido o elevado grau de produtividade e de rentabilidade das plantações de açúcar na América britânica213.

Por outro lado, tanto os fisiocratas como os filósofos do século XVIII, mesmo quando eram contrários à preservação das colónias na América, encorajavam projectos de colonização em África, baseados no trabalho livre das suas populações nativas, como forma de compensar a perda de matérias-primas e de produtos tropicais ocasionadas pelas independências americanas ou pela abolição da escravidão nessas colónias. Foi o caso de Dupont de Nemours (1739-1817),

210 V. Bernard Semmel, The Liberal ideal and the Demons of Empire […], cit., pp.1-5, p. 11. 211 Idem, ibidem, pp. 6-10; 17-20. V. também P. J. Cain, Hobson and Imperialism, Radicalism, ...,

cit., p. 72.

212 V. Rafael Bivar Marquese, Administração e Escravidão, Ideias sobre a Gestão da Agricultura

Escravista Brasileira, S. Paulo, Hucitec, 1999, p. 139 e Seymour Drescher, The Mighty Experiment, Free

Labor versus Slavery in British Emacipation, Oxford, Oxford University Press, 2002.

213 V. Idem, ibidem, pp. 23 e ss., onde se confirma, com quadros estatísticos, a produtividade das

de Condorcet (1745-1794) ou de Jean-Baptiste Say (1767-1832) e até de Guillaume Raynal, em cuja obra se acrescentou aos temas da nobreza das culturas nativas e dos males provocados pela presença europeia o facto de não terem os europeus partilhado o seu saber com as populações nativas, de lhes não terem levado a civilização. Convictos dos benefícios associados à presença europeia em África, também viam nesta colonização uma forma de reparar os danos causados pelo tráfico da escravos214.

Já na Inglaterra dos anos ‟30 e „40, filósofos radicais como Edward Gibbon Wakefield (1796-1862), Jeremy Bentham (1748-1832), numa fase tardia do seu pensamento, e alguns discípulos de ambos (entre eles, John Stuart Mill) acreditavam na utilidade da colonização como forma de canalizar para novas terras os capitais, a produção e a população excedentários215 e assumiam como inquestionável o dever, para a Inglaterra, de levar a civilização e o bom governo

aos continentes africano e asiáticos216. Esses autores – que se defrontaram, em Inglaterra, com o

singular optimismo anti-colonialista de pensadores livres cambistas como Richard Cobden (1804- 1865), crentes na harmonia das regras do mercado e convictos de que a Inglaterra devia

realmente desistir da totalidade do seu Império – conseguiram que muitas decisões políticas

fossem permeáveis ao seu ponto de vista. Os programas de colonização inspirados nesse grupo de teorizadores daquilo a que B. Semmel designa como “teoria do livre comércio colonial“217

podiam envolver, mesmo assim, o apoio a guerras de extermínio de populações nativas, como

aconteceu com os Maori, na Nova Zelândia 218. Na maior parte das vezes, contudo, as populações

nativas eram também esquecidas nos seus planos de emigração e colonização219. Colonizar não

era, para a maioria destes autores, administrar populações nativas, mas formar em territórios distantes sociedades gémeas das comunidades de origem dos colonizadores, extensões orgânicas das sociedades metropolitanas em crescimento, explicando isso a sua geral indiferença

214 V. William B. Cohen, Français et Africains[…], cit., p. 230 e ss. (« Abolitionnistes et

programme colonial»).

215 V. John Stuart Mill, “ On Colonies and Colonization” (1848), in Principles of Political Economy,

ed. J. Laurence Laughlin, New York, D. Appleton & Co., 1891, pp. 540-560, edição à qual acedemos através da Internet Modern History Sourcebook: John Stuart Mill.

216 P. J. Cain, Hobson and Imperialism, Radicalism…, cit., pp. 52-53 e ss.

217 V. Bernard Semmel, “The Philosophical Radicals and Colonialism”, in Bhikhu Parekh (ed.),

Jeremy Bentham, Critical Assessments […], cit., p. 1083: “Já não era necessário impor um rígido

colonialismo em áreas subdesenvolvidas, como tinha sido no tempo das guerras mercantis dos século XVII e XVIII. No entanto, os filósofos radicais acreditavam que a Inglaterra necessitava de um Império formal, tanto para o investimento como para condições de mercado especialmente seguras”.

218 Idem, ibidem, p. 1084.

219 Nos planos de Wakefield, aprovados em 1834 por um Acto do Parlamento, o Sul da Austrália,

que concebia como um território vazio, seria uma “[…] terra de homens livres, que gozariam das liberdades civis, de todas as oportunidades sociais e económicas e da tolerância religiosa”, não havendo neles qualquer referência à sua população nativa, v. Catherine Hall, Civilizing Subjects, Metropole and Colony in the

English Imagination, 1830-1867, Cambridge, Polity Press, 2002, p.31. Sobre Wakefield, a sua obra – sobretudo England and América, publicada em 1833 – bem como a sua influência no pensamento de Jeremy Bentham e John Stuart Mill, veja-se o livro citado, p. 29 e ss.

para com o destino das populações nativas220. Na única situação em que Jeremy Bentham, por

exemplo, admitiu que se criassem colónias – conduzir para lá a emigração dos excedentes

populacionais da metrópole – exigiu sempre a condição de, por meio do seu bom governo, se

“criar um Povo, com quem os europeus venham a contrair todas as relações de linguagem, de

hábitos sociais, de laços naturais, e políticos” 221. Foi seguramente nesta ideia que Almeida Garrett

se inspirou, décadas depois, quando se manifestou, nas Cortes, satisfeito com a recente separação do Brasil:

“Não é que eu tenha saudades do Brasil. Folgo muito com a sua independência. E como português tenho muito desvanecimento que a minha nação contribuísse tanto para a civilização do Globo, que deixou quase meio mundo ocupado por outra nação filha sua, que fala a sua língua, que herdou a sua história, que há-de perpetuar o seu nome […]. Como procurador de Portugal, estimo muito que o Brasil se separasse de nós de direito, porque de facto o estava já há muito, e porque se nós tivermos juízo, podemos tirar mais vantagens do comércio com uma nação irmã, mas independente, do que nunca tínhamos tirado de uma colónia sujeita” 222.

Isso explica que, quando se falava da independência das colónias, se estivesse a falar, quase sempre, de independências reclamadas ou declaradas pela população europeia ou dela descendente. O exemplo, sempre evocado pelos autores, da América do Norte, mostra isso mesmo.

Situando-nos ainda neste registo mais “desigualitário” das doutrinas sete e oitocentistas, os próprios publicistas, cujo objecto de reflexão tendia, como se viu, a circunscrever-se à Europa, embora acordassem que os Estados soberanos eram iguais perante o Direito internacional, enumeravam as várias espécies de tratados e alianças “desiguais” que ligavam entre si as nações menos poderosas às mais poderosas (de protecção, de tributo, de vassalagem), tratados que diminuíam a independência das primeiras e, portanto, o seu acesso às prerrogativas do Direito das

Gentes 223. Embora lhes fossem garantidas, por esse direito, prerrogativas que estarão ausentes quando, mais tarde, o Direito internacional incluir entre o número destes tratados e alianças os que celebravam com povos não europeus, que já existiam mas não eram ainda percebidos como instrumentos de direito internacional clássico224. Pelo contrário, remetiam para um outra ordem internacional, na qual os europeus se relacionavam com os não europeus e onde, em substituição

220 Indiferença também notada em P. J. Cain, Hobson and Imperialism, Radicalism, New Liberalism

…, cit., p. 66, nomeadamente na obra do autor estudado, John Atkinson Hobson, 1858-1940 (v. p. 130).

221 V. Jeremias Bentham, Theoria dos Prémios Legais Extrahida dos Manuscritos do Sábio

Jurisconsulto Inglez, Lisboa, Imprensa Nacional, 1822, t. II, p. 267.

222 V. DCGECNP, sessão de 31 de Março de 1837, p. 167, sub. nossos.

223 V. Emerich de Vattel (ed. M. P. Pradier-Fodéré), Le Droit des Gens ou Principes de la Loi

Naturelle [...], cit., pp. 123 e ss.; G.F. de Martens, Précis du Droit des Gens Moderne de L’Europe [...], cit.,

pp. 76 e ss e pp. 156 e ss.

do princípio da soberania absoluta e indivisível dos Estados, vigorava o princípio, contrário, da

soberania repartida, como se verá com mais detalhe (v. infra, 9.9.2).

Além de tudo isso, alguns destes publicistas incluíam nas suas obras capítulos onde expunham o seu cepticismo sobre a possibilidade de uma República Universal ou até sobre a

hipótese, menos ambiciosa, de uma “monarquia Universal” na Europa225. Essa impossibilidade

podia até, já em meados do século XIX, fundar-se em argumentações raciais, como nas reflexões do Conde de Gobineau (1816-1882), para quem o advento de uma Confederação universal só

podia realizar-se “se todas as raças fossem providas das mesmas faculdades”. Porque não era

assim, aquela possibilidade era totalmente ilusória 226.

No documento A cidadania no Ultramar português (páginas 72-76)