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A Revolução liberal espanhola e a representação política das colónias

No documento A cidadania no Ultramar português (páginas 93-96)

3. Colonialismo e anti-colonialismo no pensamento político dos sécs XVIII/XIX.

3.8. A Revolução liberal espanhola e a representação política das colónias

O princípio da igualdade jurídica dos territórios metropolitano e ultramarino também se associou, na Constituição de Cádis, ao da representação política do território ultramarino, já antes introduzido, durante as invasões napoleónicas, na Constituição de Bayonne de 1808. Mas também aí, antes e depois da aprovação da Constituição, o direito de voto dos índios, dos mulatos, das

castas que habitavam o território espanhol na América se transformou num tema polémico. Por um

lado, uma parte dos deputados pelo ultramar 286 reclamou a concessão de cidadania a todos os

indivíduos livres, independentemente da “raça”. Os deputados peninsulares, pelo contrário, insistiram na exclusão dos índios e dos homens livres de cor, restringindo a aplicação dos

princípios de igualdade à população crioula 287. Para a maioria deles, os preconceitos da

sociedade americana e a impreparação da maioria da população de origem africana justificava a

sua exclusão, ainda que temporária 288.

Por outro lado, muitos dos deputados americanos, em geral favoráveis à cidadania dos índios, não foram definitivos quanto à cidadania das populações de cor. Por estes motivos, a legislação aprovada sob inspiração do princípio do tratamento igualitário para o ultramar e a Península deixou a questão da cidadania e dos direitos políticos daquelas populações rodeada de

ambiguidades289, ambiguidades que se esclareceram, no texto constitucional, com a exclusão das

populações livres de origem africana.

O texto constitucional votado em Cádis distinguia – como o Code Civil francês – entre nacional e cidadão, uma distinção da qual resultava o facto de nem todos os espanhóis poderem

exercer direitos políticos290. De acordo com isso, declarava-se que a nação espanhola era “[...] a

união de todos os espanhóis de ambos os hemisférios” (art. 1), e que espanhóis (nacionais) eram todos “os homens livres nascidos e domiciliados nos domínios da Espanha” (art. 5), aos quais se

285 V. Mohamed Sahia Cherchari, “Indigènes et citoyens ou l‟impossible universalisation du

suffrage”, in Revue française du Droit constitutionnel, nº 60, 2004, p. 742 e ss.

286 Representados, desde o início das constituintes, por treze deputados substitutos, escolhidos entre

os americanos e filipinos crioulos residentes em Cádis.

287 Alguns defenderam mesmo que toda a população da América fosse representada pela minoria

crioula, v. James F. King, “The Colored castes and American Representation in the Cortes of Cadiz”, in The

Hispanic American Historical Review, vol. 33, 1953, p. 49).

288 Poderiam tornar-se cidadãos pela via da virtude e do mérito, como de facto viria a estabelecer-se

na Constituição, v. James F. King, ibid., p. 53.

289 Como aconteceu no decreto de 15 de Outubro de 1811.

290 “Só os que forem cidadãos poderão obter empregos municipais, e entrar nas eleições para eles

nos casos determinados pela lei” (art. 23), in Constituição Política da Monarquia Hespanhola promulgada

acrescia os estrangeiros naturalizados e os libertos, estes últimos somente se tivessem adquirido a sua liberdade nas “Espanhas”. As populações livres de origem africana eram, portanto,

integradas por nacionais, mas não por cidadãos, já que, sendo cidadãos apenas “aqueles

espanhóis, que por ambas as linha trazem sua origem dos Domínios Espanhóis de ambos os hemisférios, e estão domiciliados em qualquer Povo dos mesmos Domínios” (art. 18), não o eram

aqueles “[...] espanhóis que por qualquer linha são havidos e reputados originários da África” 291. A

distinção entre nacional e cidadão permitiu, portanto, afastar estas populações da cidadania espanhola. Para muitos dos deputados da América, esta exclusão corporizava uma tentativa de limitar a representação do ultramar nas Cortes, que eles queriam ver calculada com base em toda a população livre do território292; já a maioria dos deputados peninsulares acusou os deputados americanos de querer declarar cidadãos com direito de voto os espanhóis originários de África não em favor destes, mas da minoria crioula, que passaria a ter uma representação superior à peninsular. O que finalmente se declarou na Constituição foi que as populações de origem africana, além de não poderem ser cidadãs, não se contabilizassem, enquanto nacionais, para efeitos de cálculo do número de deputados (art. 29) 293. O resultado foi a subrepresentação da

Espanha americana, que os deputados americanos contestaram com base no argumento de que toda a nação devia estar representada, mesmo aquela parte que estava privada de a poder representar, como sucedia com as mulheres ou as crianças, que também não votavam mas quer eram contabilizados294.

Os índios, pelo contrário, foram declarados cidadãos na Constituição de Cádiz e, com isso, formalmente integrados na Nação espanhola. Isso significou, para a América espanhola, uma maior representação mas, para a maioria dos Índios, a perda de capacidade que antes possuíam

de, enquanto Nações, negociar com a “parte espanhola”, através de tratados. Ao integrá-los na

Nação, a Constituição retirou-lhes o estatuto de Nações e povos autónomos, subtraindo-os à proteção do direito internacional.

291V. Constituição Política da Monarquia Hespanhola promulgada em Cádis […], cit., p. 10.

Admitia-se, no entanto, que as cortes lhes pudessem conceder carta de cidadania, aos que “fizerem serviços qualificados à Pátria, ou aos que se distinguirem por seus talentos.

292 Alguns propuseram, para contornar o problema, que se reconhecesse a cidadania dos homens

livres de cor mas se lhes concedesse somente o direito de votar, mas não de serem eleitos, v. James F. King, “The Colored castes and American Representation […], cit., p. 56.

293 Com isso, os peninsulares “completaram, no papel, o seu programa político, que era o de

preservar o controlo tradicional sobre as colónias no contexto do novo regime parlamentar”, v. James F. King, ibid., p. 63. Não sem a contestação dos deputados da América, para quem a nacionalidade dos homens livres de cor exigia que fossem contabilizados entre os representados ou que, em vez disso, fossem declarados inferiores aos loucos, ladrões vagabundos e criminosos, os quais, apesar de terem a sua cidadania suspensa, eram contabilizados (ibidem, p. 61).

294 V. Roberto Valdês, “El «problema americano» en las primeras Cortes Liberales espanolas (1810-

1814)”, in AAVV, Los Orígenes del Constitucionalismo Liberal en España e Iberoamérica: un estúdio

Mais tarde, depois das independências das colónias espanholas na América, as novas

Constituições federais – como a do México, por exemplo -, também não reconheceram os povos

nativos como Estados, federados ou independentes 295.

Vejamos agora, com mais detalhe, o que se passou em Portugal.

295Não obstante, as Nações recém constituídas celebraram novos tratados com os esses povos, mas

sempre à margem das Constituições. Sobre toda esta questão v. Bartolomé Clavero, “Constituciones y Pueblos entre Cádiz y México, Europa y América”, in B. Clavero, José Maria Portillo e Marta Lorente,

Pueblos, Nación, Constitución (en torno a 1812), Ikusager Ediciones, 2004, pp. 13-51. Estando B. Clavero preocupado com o reconhecimento do direito que, para ele, as populações nativas tinham, a ser reconhecidas como Nações independentes, com direitos próprios - e não tanto com os direitos individuais -, a inclusão dos índios mereceu, da sua parte, a seguinte nota restritiva: “A população indígena começa por ser sujeito político, mas não por si mesma, senão como parte da própria Nação espanhola, da sua componente ultramarina. Era-o, na medida em que participava da mesma cultura constitucional, respondendo aos seus requisitos de sujeitos primariamente individual e sem nunca poder chegar a conformá-lo colectivamente como Nação distinta”, v. Libraos [...], cit., p. 124.

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