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A Revolução francesa e a representação política das colónias

No documento A cidadania no Ultramar português (páginas 89-93)

3. Colonialismo e anti-colonialismo no pensamento político dos sécs XVIII/XIX.

3.7. A Revolução francesa e a representação política das colónias

A revolução francesa também transformou as suas antigas possessões, na América e em África, em parte integrante do território francês e também em França a opção inicial pela representação das antigas colónias no Parlamento foi descrita como a consequência da igualdade do território ultramarino e metropolitano. No entanto, aquela opção não derivou, de forma imediata, da aplicação dos princípios igualitários da Revolução. Pelo contrário, foi o resultado da pressão de interesses concretos dos proprietários das plantações americanas. Na verdade, num primeiro regulamento, o Regulamento Real de 24 de Janeiro de 1789, para a eleição de deputados para os

Estados Gerais, silenciou-se a questão da participação política das colónias, exclusão que estava

de acordo com a tradição, porque as colónias francesas tinham, no Antigo Regime, o estatuto de domínio real, administrado directamente, sem o concurso de assembleias locais e sem

representação em Cortes267. Quando, em 1788 (11 de Setembro) chegaram a Paris nove

comissários eleitos por uma assembleia de colonos residentes em Paris para representar a colónia americana de S. Domingos na Assembleia, o Conselho de Estado recusou-se a admiti-los. Só no ano seguinte é que obtiveram, junto da recém formada assembleia constituinte, o direito de participar nas sessões parlamentares. Ao fazê-lo, aquela assembleia abriu caminho à admissão de deputados de outras colónias, por ser esse um princípio coerente com os da soberania nacional e da igualdade de todos os cidadãos. Acontece que estes deputados eram indivíduos brancos, eleitos de forma pouco transparente e que representavam os interesses dos plantadores das colónias (sendo certo que faziam parte do grupo dos plantadores alguns “descendentes” miscenizados). Assim, os cidadãos das colónias francesas foram, inicialmente, os colonos e os seus descendentes, o que não surpreende, se se recordar que a sua admissão na representação da Nação constituiu uma resposta ao exemplo, a temer, da independência Norte Americana, da importância que nela tinha assumido a ausência de representação da “vontade colonial” no Parlamento britânico. A representação política das colónias francesas começou, portanto, por ser

uma representação da vontade política dos plantadores das Antilhas, Guiana e Reunião 268.

Por outro lado, se a eleição de deputados pelas colónias estava de acordo com os princípios da participação política universal, a actuação desses deputados na assembleia foi contrária à concretização de outros princípios, como o da abolição da escravidão ou a concessão de direitos políticos às populações livres de cor (hommes de coleur libres) que residiam nas colónias francesas. Ao pronunciar-se contra o que considerava ser um número excessivo de deputados coloniais no Parlamento, o Conde de Mirabeau denunciou este paradoxo, na sua dupla dimensão, quer ao notar que os deputados do ultramar não representavam toda a população ultramarina, quer ao sugerir que a sua presença no parlamento metropolitano seria sempre um

267 V. Denise Bouche, Histoire de la Colonization[…], cit., p. 100 e ss.

obstáculo à concretização dos direitos nas colónias. As suas palavras exprimem, logo nos primeiros anos da Revolução, as tensões geradas pela conservação dos territórios ultramarinos e pela extensão da representação política ao ultramar:

“Os melhores espíritos não negaram já a utilidade das colónias ? Mesmo admitindo esta utilidade, é ela uma boa razão para exagerar o direito de representação ? Pretende-se que esta representação seja proporcional ao número de habitantes. Mas os negros e os homens de cor livres concorreram à eleição ? Os negros livres são proprietários e contribuintes e, no entanto, eles não puderam votar. Quanto aos escravos, ou eles são homens, ou não o são; se os colonos os consideram como homens, que os libertem, que os tornem eleitores e elegíveis; no caso contrário, será que ao tornar proporcional o número de deputados com a população da França nós tomámos em

consideração o número dos nossos cavalos e das nossas mulas ?”269.

Este discurso mostra que em França – como, depois, em Espanha e em Portugal –, a

concessão de direitos políticos às colónias não coincidiu com a atribuição de direitos políticos a todos os seus habitantes. A perplexidade que esta atribuição universal de direitos gerou explica que a assembleia constituinte se tenha recusado, durante algum tempo, a tomar uma posição clara sobre o problema, muito debatido, do estatuto das populações de cor livres, cujos representantes reclamavam a igualdade de direitos que a sociedade colonial não lhes reconhecia e chegaram a tentar, sem sucesso, uma representação própria na Assembleia constituinte. Quando, em 1790 (8 e 28 de Março), a Assembleia decretou a entrega do poder legislativo, para as “leis internas”, às assembleias coloniais – dando cobertura legal a assembleias de colonos já

constituídas 270 – nada disse, nesses decretos, sobre os direitos dos negros e mulatos livres que,

sendo em muitos casos proprietários de terras e escravos, preenchiam as condições censitárias

requeridas para integrar essas assembleias 271. Por sua vez as assembleias coloniais

reivindicaram para si “o direito de estatuir sobre o seu regime interno” baseando-se nos princípios da Declaração dos Direitos e procurando incluir, como integrando esse regime, a legislação sobre o estatuto das pessoas, o que lhes permitia conservar a escravatura e a discriminação jurídica dos

negros livres nas colónias272. Estando muito dividida quanto a estes temas, a Assembleia

constituinte hesitou, depois de extensos debates (7-14 Março de 1791), em pronunciar-se claramente sobre eles 273. Só a partir daí é que, impulsionada pelas revoltas locais daquelas

269 Cit. em Léon Deschamps, La Constituante et les Colonies[…], cit., p. 69. Já antes Condorcet se

tinha manifestado contrário à presença dos deputados de S. Domingos, por serem proprietáios de escravos, v. Pierre Pluchon, Histoire de la Colonization Française, Paris, Fayard, 1991, t. I: « Le premier Empire Colonial, des origines à la Restauration », p. 791.

270 Léon Deschamps, La constituante..., cit, p. 71, p. 159. 271 Idem, ibidem, p. 158

272 Idem, ibidem, p. 176

273 V. Pierre Rosanvallon, Le sacre […], cit., p. 425. A 13 de Maio de 1791, por exemplo, a

populações e pela pressão dos representantes dos seus interesses na metrópole, tomou posições mais claras, sendo sintomas dessa “viragem” o Estatuto colonial de 15 de Junho de 1791, consagrando um regime de assimilação jurídica quase completa das colónias (embora mantendo as assembleias legislativas coloniais) e o decreto de 15 de Maio de 1791, concedendo o direito de

voto aos homens de cor livres, mas apenas se de segunda geração 274.

A política seguida nestes últimos decretos foi continuada, depois de alguns episódios

novamente ambíguos275, pelo decreto de 4 de Abril de 1792, reconhecendo a cidadania às

pessoas livres de cor, e pelo de 23 de Agosto de 1792, que previa que “todos os cidadãos livres,

de qualquer cor e de qualquer estado, à excepção daqueles que se encontram num estado de

domesticidade” pudessem votar para formar a Convenção Nacional276. Depois, já durante a

primeira República, e também sob pressão dos acontecimentos em territórios coloniais, aprovou- se a primeira abolição da escravidão (4 de Fevereiro de 1794) e a população de cor destas colónias acedeu à plenitude da cidadania (“A escravatura dos negros em todas as colónias é abolida; por consequência, todos os homens, sem distinção de cor, domiciliados nas colónias, são

cidadãos franceses e gozarão de todos os direitos garantidos pela Constituição” ). A Constituição

de 1795, finalmente, considerou as colónias como parte integrante da Republica, em situação de

absoluta igualdade relativamente a todos os seus outros departamentos (“As colónias francesas

são partes integrantes da República, e ficam sujeitas à mesma lei constitucional”, art. 6)277, tendo

sido esse o momento em que ao “universalismo territorial” se juntou o que Pierre Rosanvallon

designou por “universalismo racial” 278. Até aí, exactamente por causa do problema da escravidão,

as Constituições francesas (de 1791 e de 1793), apesar de terem reconhecido o princípio da representação política das colónias, não tinham vigorado nos respectivos territórios. A primeira daquelas Constituições subtraiu-os explicitamente da vigência da Constituição:

“As colónias e as possessões francesas em Ásia, África e na América, posto que façam parte do Império Francês, não estão compreendidas na presente Constituição”, art. 8)279.

274Este decreto foi logo revogado pela assembleia a 24 de Setembro do mesmo ano mas retomado

em Março do ano seguinte v. Yves Benot, La Révolution française et la fin des colonies […], cit., p. 158 e ss.

275 Como o decreto de 24 de Setembro de 1791, que alargou a competências das assembleias coloniais.

276 Sobre o papel das populações de cor livres das colónias e dos seus representantes na votação

destes decretos, que em 1792 obtiveram, por motivos circunstanciais relacionados com a revolta de escravos, o apoio contra natura dos colonos brancos, v. William B. Cohen, Français et Africains …, cit., p. 166 e ss.

277 V. Martin Deming Lewis, "One Hundred Million Frenchmen: the «Assimilation» Theory[ …]”,

cit, p. 134 e Collecção de Constituições antigas e modernas […], cit., vol. I, p. 43.

278 V. P. Rosanvallon, Le sacre du citoyen […], cit., p. 425.

279 Cit. em Les Constitutions de la France depuis 1789 (org. Jacques Godechot), Paris, Garnier-

Flammarion, 1970, p. 67. Depois, a Constituição do Ano I foi absolutamente omissa no que ao problema da escravidão dizia respeito, o mesmo sucedendo com a Constituição de 1793, v. Yves Benot, La Révolution

française et la fin des colonies […], cit., p. 167. Yves Benot tece algumas considerações sobre a ausência das

Todavia, o princípio da representação política foi suprimido na Constituição napoleónica de 1799, a escravidão restabelecida em 1802 (decreto de 30 de Maio). Embora as populações livres das colónias tenham mantido, nos anos seguintes, uma situação formal de ausência de discriminação racial280, o universalismo da fase jacobina da revolução só seria recuperado pela revolução republicana de 1848, que restabeleceu a representação política das colónias e aboliu definitivamente a escravidão, a 27de Abril de 1848. A partir dessa altura a “ordem esclavagista” foi substituída por uma “ordem colonial” cuja excepcionalidade – reconhecida também na Constituição de 1848, que consagrou a necessidade de serem os territórios coloniais regidos por “leis particulares” –, preservou, sob outras formas, uma política de limitação dos direitos das populações anteriormente escravizadas, nomeadamente através da regulamentação do seu trabalho281. Foi também a partir dessa altura que a concessão de plenos direitos políticos à totalidade das populações de cor das colónias voltou a dar origem a novas discussões. Até ali a supremacia política dos europeus não tinha estado ameaçada, porque os homens de cor livres eram pouco numerosos e tinham menos probabilidades de ser eleitores, em virtude da aplicação do regime censitário282, mas a partir de 1848 já não seria assim, nomeadamente por causa do

sufrágio universal, que a Constituição desse ano instituíra, como também da abolição da escravidão e da maior extensão do Império, como resultado das políticas expansionistas que viam

em África uma forma de compensar a perda de colónias na América283. Estes três factores

introduziram alterações importantes na relação eleitoral da população de origem metropolitana e nativa, motivo pelo qual o discurso sobre os direitos políticos das populações não europeias se alterou. O medo de ver essa parte da população conseguir uma posição de arbitragem política foi limitado nas antigas colónias das Antilhas e Reunião (onde “[...] o reconhecimento dos direitos políticos aos negros [em virtude da herança revolucionária] se inscreveu no processo geral de extensão do direito de sufrágio”), mas a questão pôs-se em termos totalmente diversos para os territórios conquistados no século XIX 284. Por essa razão, as soluções universalistas quanto ao

estatuto das populações nativas, que perduraram nas antigas colónias das Antilhas e do Senegal (Saint-Louis e Gorée), não se aplicaram aos territórios ocupados pela França ao longo do século XIX, nomeadamente na Argélia, que a Constituição de 1848 tinha considerado “terra francesa” (artº 109). Como se verá em outro capítulo deste trabalho, essa exclusão foi conseguida por meio

280 A Carta Colonial de 24 de Abril de 1833 criou algumas instituições próprias para as colónias (os

Conselhos gerais, por exemplo, foram substituídos por Conselhos coloniais), mas uma lei publicada no mesmo dia concedeu a totalidade dos direitos civis e políticos aos homens livres de cor (v. Pierre Rosanvallon, Le sacre […], cit., p. 426.

281 V. George Chantal (org.), L’Abolition de l’esclavage. Un combat pour les droits de l’homme,

Paris, Éditions Complexe, 1998, pp. 22-38, onde se salienta o carácter profundamente formal das medidas,

ibid., p. 22.

282 V. P. Rosanvallon, Le sacre du Citoyen [...], cit., pp. 426-427. 283 V. William B. Cohen, Français et Africains, cit., p. 230 e ss. 284 V. P. Rosanvallon, Le Sacre[ ...], cit., pp. 426-427.

da invenção de categorias jurídicas ambíguas, como as de “franceses não cidadãos”, “indígenas

não cidadãos” ou “súbditos franceses” (v. infra, 67.5.3)285.

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