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Violência de gênero intrafamiliar nos juizados especiais criminais

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Academic year: 2017

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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE BRASÍLIA

MESTRADO EM DIREITO

RITA DE CÁSSIA LIMA ROCHA CIARLINI

VIOLÊNCIA DE GÊNERO INTRAFAMILIAR NOS JUIZADOS

ESPECIAIS CRIMINAIS

(2)

RITA DE CÁSSIA LIMA ROCHA CIARLINI

VIOLÊNCIA DE GÊNERO INTRAFAMILIAR NOS JUIZADOS

ESPECIAIS CRIMINAIS

Dissertação apresentada ao programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Católica de Brasília como parte dos requisitos necessários para obtenção do título de Mestre em Direito.

Orientador: Prof. Dr. José Eduardo Sabo Paes.

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C566v Ciarlini, Rita de Cássia Lima Rocha

Violência de gênero intrafamiliar nos juizados especiais criminais / Rita de Cássia Lima Rocha Ciarlini; orientador José Eduardo Sabo Paes – 2006.

245 f. : il.; 30 cm

Dissertação (Mestrado) – Universidade Católica de Brasília, 2006

1. Violência familiar. 2. Direitos Humanos 3. Sistema jurídico – Brasil. 4. Vitimologia. 5. Impunidade. I. Paes, José Eduardo Sabo. II. Título.

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RITA DE CÁSSIA LIMA ROCHA CIARLINI

VIOLÊNCIA DE GÊNERO INTRAFAMILIAR NOS JUIZADOS

ESPECIAIS CRIMINAIS

Dissertação submetida ao corpo docente do programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Católica de Brasília como parte dos requisitos necessários para obtenção do título de Mestre em Direito.

Aprovado em ____/____/____, com menção _____.

___________________________________________________________________ Prof. Dr. José Eduardo Sabo Paes

Orientador

___________________________________________________________________ Prof x

Membro da Banca

___________________________________________________________________ Prof

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RESUMO

A violência de gênero intrafamiliar é um fenômeno mundial e movimenta profissionais e estudiosos da saúde e do direito em busca de soluções adequadas e eficazes para esse problema, cujas graves conseqüências ultrapassam as fronteiras domésticas e atingem o rendimento escolar dos filhos que presenciam essa violência, a assiduidade e produtividade da mulher-vítima em seu trabalho, a disseminação de uma cultura de banalização violência em toda a sociedade, fulcrada em preconceito de gênero, dentre outras tantas conseqüências. O sistema jurídico penal brasileiro, embora esteja em consonância com o Direito Internacional dos Direitos Humanos, não se mostra suficiente para, na prática, prevenir e punir a violência de gênero intrafamiliar; isto se dá em razão da extrema preocupação em se garantir os direitos do agressor, evitando-se ao máximo sua prisão, o que decorre do garantismo e do direito penal mínimo, em detrimento dos direitos das vítimas, que se vêm obrigadas a ficarem reclusas em casas-abrigo para poderem continuar vivas; a promulgação de uma lei específica que ofereça instrumentos adequados para que o juiz possa proferir decisões eficazes que realmente possa erradicar esse tipo de crime, com o apoio de uma equipe multidisciplinar, é um grande avanço no campo do direito; todavia, este objetivo somente será alcançado se houver uma mudança de mentalidade dos juízes, propiciada pela sensibilização e capacitação dos profissionais quanto à questão de gênero e, principalmente, quanto aos direitos das vítimas.

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ABSTRACT

Gender violence inside home is a global phenomenon that calls attention of professionals and scholars from health and law sciences in the means of coming up with adequate and efficient solutions to this problem, which serious consequences exceeds domestic boundaries and reflects on the school efficiency of the children who experiences this violence; on the assiduity and productivity of the work of women who suffer the violence; on the dissemination of violence culture in the whole society with a gender discrimination; among other consequences. The Brazilian penal judicial system is in accordance with the International Human Rights legislation, but it has not been enough to prevent and punish the gender violence inside homes, basically because this legislation tries to defend the aggressor’s rights, based on the constitutional guarantees and on the ‘minimum penal law’, avoiding his incarceration. On the other hand, there are the victims’ rights and they see themselves obligated to live in sheltering homes in order to survive. The promulgation of a specific law that could offer adequate resources to judgments in a trial that could end this kind of crime, with an interdisciplinary team, would be a great evolution. However, this goal will only be reached if there is a change in judge’s minds, by the sensitization and the qualification of the professionals on gender and, essentially, on victims rights issues.

.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABREVIATURAS

Art. por artigo Id por idem Ibid por ibidem

Cf. por confronte ou confira Obs. por observação

SIGLAS

BNB/CEDAW – Relatório Nacional Brasileiro da Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Ciclo da violência... 51

Gráfico 1 – Violência de gênero intrafamiliar... 167

Gráfico 2 – Comportamento dos agressores... 171

Gráfico 3 – Status profissional ... 172

Gráfico 4 – Idade das vítimas ... 179

Gráfico 5 – Categorias profissionais das vítimas ... 181

Gráfico 6 – Grau de escolaridade das vítimas ... 182

(11)

SUMÁRIO

RESUMO... 7

ABSTRACT ... 8

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ... 9

LISTA DE ILUSTRAÇÕES ... 10

INTRODUÇÃO ... 13

CAPÍTULO 1 - Violência de gênero intrafamiliar: conceitos, especificação, tipos, origens e conseqüências ... 21

1.1 Violência de gênero intrafamiliar: conceitos e especificação ... 21

1.1.1 Tipos de violência de gênero intrafamiliar ... 33

1.2. Origem dos conflitos de gênero... 35

1.3 Conseqüências da violência de gênero, nos âmbitos intra e extra-familiar... 40

CAPÍTULO 2 - Direito Internacional dos Direitos Humanos e as críticas à atuação dos Juizados Especiais Criminais nos casos de violência contra a mulher, feitas no Relatório Nacional Brasileiro sobre a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher (RNB/CEDAW) ... 53

2.1 O Direito Internacional dos Direitos Humanos e a Convenção de Belém do Pará: Proteção à Mulher... 53

2.1.1 O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, os Direitos Fundamentais e os Direitos Humanos ... 53

2.2. O princípio da igualdade e o status da mulher no panorama jurídico mundial a partir da segunda metade do Século XX... 64

2.3. O Direito Internacional dos Direitos Humanos e os Sistemas Internacional e Regional de Proteção aos Direitos Humanos... 71

2.4. A Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher – CEDAW - e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará): um paralelo... 80

2.5 Os Juizados Especiais Criminais e o Relatório Nacional Brasileiro sobre a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher (RNB/CEDAW) 94 2.6 Os Juizados Especiais Criminais, as Regras de Tóquio e o Código Penal vigente: ponto e contraponto entre o direito processual e o direito material... 118

(12)

3.1 Definições sociológicas de Direito ... 125

3.2 A Sociologia explica o Direito ... 127

3.2.1 O controle social... 127

3.2..2 A desordem... 129

3.2.3 O desvio... 131

3.3 Sociologia do Direito, ordem e o novo perfil do magistrado ... 135

3.4 Os Juizados Especiais Criminais (Lei 9.099/95) e as penas alternativas (Lei 9.714/98) como respostas à mudança social ... 137

3.5 Relevância dos Juizados Especiais Criminais como caminho para democratização da Justiça ... 146

CAPÍTULO 4 - Criminologia nos Juizados Especiais Criminais ... 165

4.1 Resultado da pesquisa empírica e um estudo criminológico... 165

4.1.1 O Agressor... 170

4.1.2 A vítima ... 173

4.2 Estudos de casos: ... 183

CONCLUSÃO... 193

REFERÊNCIAS ... 205

APÊNDICE A - Decisão fundamentada na CEDAW e Convenção de Belém do Pará.. 216

APÊNDICE B - Ofício encaminhado ao Tribunal de Justiça do DF, à Associação de Magistrados Brasileiros e Conselho Nacional de Justiça com sugestões para adequação do procedimento judicial às normas internacionais de direitos humanos das mulheres ... 222

APÊNDICE C – Quadro-resumo das leis latino-americanas sobre violência familiar.. 226

ANEXO A - Projeto de Lei nº 4.559/2004... 234

ANEXO B - Informe final de Santiago ... 237

ANEXO C - Informe Nº 54/2001. Caso 12.051 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Organização dos Estados Americanos. ... 245

(13)

INTRODUÇÃO

O Século XX foi marcado pelos benefícios que as descobertas e invenções advindas da tecnologia e da ciência trouxeram à humanidade, melhorando assim a qualidade de vida dos cidadãos. Paralelamente ao progresso das ciências naturais, as ciências sociais tomaram vulto e o Direito, enquanto regulador das relações sociais, não somente teve aumentado seu repertório de leis, doutrina e jurisprudência, como também, justamente para acompanhar esse progresso, viu-se desdobrado em vários novos ramos, tais como o Direito Internacional, o Direito Internacional dos Direitos Humanos, o Direito Constitucional Comparado, o Biodireito, o Direito ligado à Informática, o Direito Ambiental e a Sociologia Jurídica, para citar alguns deles.

Igualmente, à medida em que o Estado deixou de ser o centro das atenções dos políticos e dos juristas, que relegaram por muitos séculos a pessoa humana a um segundo plano, passou-se para uma nova era em que a pessoa humana ganhou especial destaque e atenção, tendo-se desenvolvido mecanismos e criado-se instrumentos para proteção de seus direitos, bem como garantias desses direitos.

(14)

A segunda metade do século XX, em especial, foi marcada pela preocupação mundial relativamente aos assuntos atinentes aos direitos humanos1, assim reconhecidos como “uma prioridade da comunidade internacional”.

A relativamente recente inserção dos direitos fundamentais nos textos de constituições de diversos países é prova cabal de que há uma mudança substancial do foco do Direito em todo o mundo, impondo-se, portanto, a necessidade de uma mudança do modo de agir e de pensar dos operadores do Direito, em especial dos magistrados, que deve refletir-se em seu trabalho, em suas palavras e em suas ações.

Na prática, contudo, tem-se notado que vem ocorrendo um grande distanciamento entre o que o cidadão busca junto ao Poder Judiciário e o que efetivamente lhe é prestado, ocasionando um descrédito de toda a sociedade quanto à atuação da instituição julgadora; ante a gravidade de tal fato, impõe-se uma análise sobre possíveis causas desse problema, para que se possa buscar uma solução satisfatória. Dentro desta perspectiva, questiona-se cada vez mais o exercício da jurisdição onde o magistrado acomoda-se ao princípio da iniciativa da parte e introduz-se a idéia de “ativismo judicial”2, pretendendo-se uma atuação mais crítica e eficiente do juiz.

Nesse mesmo compasso, o homem e a mulher do Século XXI se dão conta da ruptura de modelos, papéis sociais e valores, que assim, rompidos, entram em crise e, em razão das mudanças sociais, necessitam de novos paradigmas. O Direito muda a cada dia com a sociedade, devendo adequar-se às suas novas necessidades. Enquanto no Século XX o homem passou a ser o centro das atenções, no Século XXI tem-se o desafio de aí incluir-se, lado a

1

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o Direito Constitucional Internacional. 4. ed. rev. e aum. São Paulo: Max Limonad, 2000. 464 p.

2

(15)

lado e com seu espaço individualizado, a mulher, enquanto sujeito de direitos, capaz de exigi-los e de ser sujeito do discurso, inclusive criando sua própria fala.

As leis, antes feitas e aplicadas somente por homens e para os homens, deixando a mulher mergulhada em sua natureza feminina - portanto limitada à esfera privada, coisificada em seu papel social - diante da mudança de visão do feminino3, ou pelo menos, da mudança na perspectiva do que é feminino, passam também a ser feitas e aplicadas por mulheres, que se desnaturaram como tais e se entronizaram na esfera pública, espaço este até há pouco tempo destinado somente ao gênero masculino. Muda-se, assim, a ótica do próprio Estado e do Direito, enquanto normatizador das representações sociais do papel da mulher. Agora, a lei está deixando de ver e tratar a mulher como os homens vêem e tratam as mulheres, em contraposição ao que disse Benton4 ,“The law sees and treats women as men see and treat women).

Certamente que essa mudança de papéis acarreta uma outra forma de criar o direito, de interpretá-lo e de aplicá-lo, tendo em vista que os operadores do Direito carregam consigo seus valores, crenças, sua personalidade, seus preconceitos, suas qualidades e seus defeitos, sendo destes indissociáveis no momento em que aplicam esse Direito5.

A necessidade de uma abordagem multidisciplinar, por parte desses operadores do Direito, especialmente nos casos de violência de gênero, decorre da imperiosidade de descobrir quem são os protagonistas dessa violência, quem são os atores dos papéis feminino e masculino, de onde vêm esses papéis e scripts, o que é violência, o que gera a violência de gênero, além de outros fatores de fundamental importância para uma compreensão integral do

3

CHAUÍ, Marilena. et al. Perspectivas antropológicas da mulher 4: sobre mulher e violência. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

4

BENTON, R. et al. Breaking the law, a metaphor for female empowerment: women in film. The Journal of the American Academy of Psychoanalysis, v. 21, n. 1, p. 133-147. 1993.

5

(16)

problema; como o Direito não nos dá essa resposta e ficamos com a insuficiente noção de homem e mulher que o senso comum nos dá, precisamos buscar na psicologia, na sociologia e na antropologia elementos que enriqueçam a construção desse próprio Direito, de forma a propiciar uma nova interpretação das leis e, assim, não apenas aplicá-las, sem qualquer preocupação com a efetiva realização do Direito ali contido, mas sim, com o objetivo primordial de concretizá-lo.

A violência é um tema que não se restringe às fronteiras do Brasil, mas é um problema mundial. Todos voltam suas atenções para descobrirem a fórmula para combatê-la, preferencialmente aumentando o número de policiais nas ruas, coibindo o tráfico de entorpecentes e desarmando a população. Poucos são os que questionam de onde vem essa violência. Sem saber qual a causa, qual a origem do mal que se pretende combater, certamente que o fracasso da empreitada é iminente. A violência está dentro de cada um de nós e germina nos próprios lares, em um grau maior ou menor; daí parte para as ruas, para as escolas, para o trabalho, nas relações cotidianas, no discurso, nas ações violentas no trânsito.

A violência tem início quando há falhas nos meios informais de controle social. A abordagem multidisciplinar permite aos operadores do Direito descobrirem, estupefatos, que de um certo modo, bastante peculiar ao olhar psicológico ao qual não estão familiarizados, “a violência não é um meio, mas a própria manifestação do direito”6, enquanto estamos todos submetidos à obediência garantida pela institucionalização de normas em Códigos de leis que traduzem as próprias representações sociais.

Assim, se a lei exprime uma noção desvirtuada do que é feminino, construída social e historicamente através de séculos de civilização com base em uma representação impregnada de preconceitos, conseqüentemente a aplicação dessa lei representará a continuidade desses

6

MASTROBUONO, Carla Mirella. Em busca dos braços da Vênus: lacunas do saber e questão feminina.

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mesmos preconceitos e a repetição de comportamentos estereotipados que não mais se ajustam ao novo perfil da mulher do Século XXI: instruída, inserida no mercado de trabalho, independente economicamente, já não se sentindo satisfeita e realizada apenas como mãe e esposa, enfim, para os olhos da humanidade do milênio passado, uma tirana7.

A omissão do poder punitivo estatal no tocante à relevância do papel feminino, no discurso criminológico e jurídico penal, caracteriza a própria perversidade desse poder8, o que se observa, principalmente, na negação de uma agressividade e, conseqüentemente, até mesmo de uma possível criminalidade próprias das mulheres, atribuindo-lhes sempre uma eterna passividade.

Pouco a pouco o poder punitivo estatal passa a reconhecer um papel ativo da mulher, reconhecendo-a como detentora de um discurso próprio, por ela manipulado para atingir um determinado fim:

Dessa forma, para que as mulheres exerçam efetivamente a cidadania, é necessário que sejam erradicadas e superadas todas as formas de discriminação a que são submetidas e, para tanto, é preciso que se compreendam as dimensões e as discriminações que estão enraizadas nos papéis que lhe são atribuídos no espaço público e espaço privado.9

No caso específico do conflito de gênero intrafamiliar, estudos psicológicos têm identificado a relevância da fala feminina na construção da decisão criminal, a qual “ cria contornos para além da esfera jurídica, amoldando-se à lógica da própria sociedade, que nem sempre é condizente com a lógica jurídica10.

Nesse diapasão, a presente pesquisa cinge-se, especificamente, à violência de gênero11 intrafamiliar, em virtude de se destacar o fato de que grande parte dos termos

7

Ibid., p. 250.

8

Ibid., p. 270.

9

RODRIGUES, Maria Alice. A mulher no espaço privado: da incapacidade à igualdade de direitos. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

10

IZUMINO, Wânia Pasinato. Justiça criminal e violência contra a mulher: o papel da justiça na solução dos conflitos de gênero. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 18, 147-170,abr.-jun. 1997.

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circunstanciados distribuídos ao Segundo Juizado Especial do Gama/DF versam sobre lesões corporais, vias de fato e ameaças proferidas por homens contra mulheres, no âmbito doméstico. Esses homens são, portanto, pessoas do convívio íntimo, familiares, companheiros, namorados, que praticam os crimes contra as mulheres. As conseqüências desses crimes são extremamente graves, pois formam uma cultura de violência, que se espalha por toda a sociedade, banalizando-se essa violência, a qual é, muitas das vezes, presenciada pelas crianças, que aprendem a com ela conviver desde a mais tenra idade.

A maioria dos livros que versam sobre o tema violência possui um enfoque sociológico, antropológico ou psicológico, enquanto que sob o aspecto jurídico a literatura limita-se a cuidar de aspectos meramente procedimentais, especialmente de como se deve conduzir o processo criminal, adotando-se uma fórmula pura, quase que matemática, como se os seres humanos ali envolvidos fossem máquinas aos quais se aplica a decisão judicial, apagando-se o delito de suas mentes e todos voltando, automaticamente, a um estado de paz social ideal e utópico.

O juiz, nestes casos, via de regra, tem adotado uma postura neutra, não no sentido de ser imparcial, mas sim no sentido de que se preocupa tanto com a formalidade do rito que se distancia da realidade social dos jurisdicionados, de tal sorte que inexiste preocupação com a efetividade dos direitos que sua própria decisão deveria assegurar.

No caso específico dos Juizados Especiais Criminais, o juiz possui um vasto campo de atuação ante a liberdade conferida pela própria Lei n. 9.099/9512, havendo a possibilidade de transformar a sociedade através da educação das partes, informando-lhes sobre seus direitos, o que consubstancia a prevenção do aumento da criminalidade; é possível, ainda, através da aplicação de penas alternativas adequadas, não apenas punir o agressor, mas,

12

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principalmente, proporcionar à vítima a composição do dano que lhe foi causado em virtude da agressão sofrida.

O procedimento estabelecido na Lei n. 9.099/95 para o processamento e julgamento desses crimes, com a imposição de penas alternativas, vem sendo objeto de inúmeras críticas, tanto pelos operadores do direito quanto pela própria sociedade, argumentando-se para tanto que a referida lei está formando uma cultura de impunidade do agressor, o que, conseqüentemente, contribui para o aumento da violência de gênero.

Pergunta-se, então: qual deve ser o paradigma para o magistrado proferir decisões que combatam eficazmente a violência de gênero? Deve haver uma modificação nas normas sancionatórias para garantir-se maior efetividade das mesmas de tal sorte que a “violência estatal” venha a combater a violência familiar?

Descobrir as respostas para tais perguntas foi nosso objetivo principal nesta dissertação, a qual encontra-se dividida em quatro capítulos.

O Primeiro Capítulo, intitulado Violência de gênero intrafamiliar: conceitos, origens e conseqüências, é precipuamente conceitual, propedêutico; os conceitos ali contidos, dados por distintos ramos do saber humano, são trabalhados de forma a esclarecer o porquê da opção por uma abordagem multidisciplinar, a qual norteia todo o trabalho.

No Segundo Capítulo, intitulado Direito Internacional dos Direitos Humanos e as críticas à atuação dos Juizados Especiais Criminais nos casos de violência contra a mulher, feitas no Relatório Nacional Brasileiro sobre a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher (RNB/CEDAW)13, discorre-se sobre a vasta gama de instrumentos legais, constitucionais e internacionais que protegem a dignidade da pessoa humana e a integridade física e psicológica da mulher, contrapondo-os com as críticas feitas

13

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no Relatório Nacional Brasileiro sobre a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (RNB/CEDAW) à atuação dos Juizados Especiais Criminais nos casos de violência de gênero intrafamiliar; pretende-se traçar um paralelo entre a necessidade de proteção à vítima desse tipo de violência, em face do que dispõem as Regras de Tóquio a respeito das penas alternativas, aplicáveis aos autores do fato nesses casos.

No Terceiro Capítulo, intitulado Violência de gênero intrafamiliar sob a ótica da Sociologia Jurídica, objetiva-se compreender por qual razão o sistema normativo penal e processual penal brasileiro não se mostra adequado e eficaz para solucionar o problema da violência de gênero intrafamiliar; são apontadas as falhas da legislação brasileira vigente, a fim de se poder sugerir um procedimento que possibilite ao juiz proferir decisões eficazes para solucionar o problema.

O Quarto Capítulo, intitulado Criminologia nos Juizados Especiais Criminais, contém todos os dados da pesquisa de campo levada a efeito durante dois anos, onde foram examinados vários Termos Circunstanciados distribuídos ao Segundo Juizado Especial Criminal do Gama onde se constataram casos de violência de gênero intrafamiliar; esses dados são analisados de acordo com diversas teorias da Criminologia moderna, com o objetivo de encontrar soluções para o problema em estudo.

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CAPÍTULO 1 - VIOLÊNCIA DE GÊNERO INTRAFAMILIAR: CONCEITOS, ESPECIFICAÇÃO, TIPOS, ORIGENS E CONSEQÜÊNCIAS

“O amor nunca argumenta. Não há argumentação no amor, pois não há agressão. Quando se agride não se ama”. (Luis Alberto Warat)

1.1. Violência de gênero intrafamiliar: conceitos e especificação; 1.1.1. Tipos de violência de gênero intrafamiliar; 1.2.Origem dos conflitos de gênero; 1.3. Conseqüências da violência de gênero, nos âmbitos intra e extrafamiliar.

1.1 VIOLÊNCIA DE GÊNERO INTRAFAMILIAR: CONCEITOS E ESPECIFICAÇÃO O tema violência não consta, curiosamente, como matéria de estudo no âmbito jurídico brasileiro. Embora o Direito tenha como um de seus objetivos prevenir, punir e erradicar a violência e, ainda, muito embora a violência seja uma tônica no panorama mundial em razão de seu crescimento descontrolado, a matéria não é objeto de compêndios de Direito Penal; até mesmo no âmbito da Criminologia, que pode ser situada em um ponto de intersecção entre o Direito e a Sociologia, pouco se fala sobre o assunto.

Segundo Gomes e Molina:

A Criminologia é classificada como uma disciplina experimental; admite o problema criminal como fenômeno social e comunitário, que pode existir nas diferentes camadas da população, sem qualquer conotação patológica; ocupa-se de fatos relevantes para o Direito Penal como, por exemplo, o chamado “campo prévio” do crime, a “esfera social” do infrator, a “cifra negra”, condutas atípicas, porém de singular interesse criminológico como a prostituição ou o alcoolismo etc.

Cabe definir a criminologia como ciência empírica e interdisciplinar, que se ocupa do estudo do crime, da pessoa do infrator, da vítima e do controle social do comportamento delitivo, e que trata de subministrar uma informação válida, contrastada, sobre a gênese, dinâmica e variáveis principais do crime -, contemplando este como problema individual e como problema social -, assim como sobre os programas de prevenção eficaz do mesmo e técnicas de intervenção positiva no homem delinqüente e nos diversos modelos ou sistemas de resposta ao delito14.

14

(22)

Violência e criminalidade são coisas distintas. A violência pode não ser caracterizada como crime – embora, em nossa legislação, geralmente são tipificados como crimes todas as ações violentas – e o crime pode não ser violento15.

Essa distinção ganha especial relevância em tema de violência de gênero intrafamiliar, uma vez que os autores dessa violência geralmente não são criminosos, mas sim pais de família, trabalhadores, que vêm a praticar essa violência (que é tipificada como crime) contra membros de sua própria família, unidos por vínculos afetivos e emotivos. É importante, portanto, que esses crimes sejam analisados e processados de forma diferenciada, com o objetivo de preservar, se possível, esses vínculos (notadamente nos casos de crimes de menor potencial ofensivo) e, principalmente, evitar-se a reincidência – o que importa em uma decisão efetiva.

Talvez se possa atribuir a esse descaso e desconhecimento, por parte dos profissionais do Direito, o insucesso no combate à violência e à criminalidade; afinal, não se pode combater aquilo que não se conhece.

O vocábulo violência, em sua acepção jurídica, significa constrangimento físico ou moral; uso da força; coação. Ou ainda: “(Lat. Violentia) Emprego de força para a obtenção de um resultado contrário à vontade do paciente, podendo exercitar-se em caráter físico, ou real (vis corporalis) ou em forma intimidativa (vis compulsiva).”16

Ambos os conceitos acima expressam apenas uma noção do que venha a ser violência; são por demais lacônicos, amplos e destituídos de qualquer informação sobre o que causa a atitude violenta, ou em que meio ela se dá. Retira-se da conduta que se pretende

15

Criminalidade: é a expressão dada pelo conjunto de infrações que se produzem em um tempo e lugar determinados.

16

(23)

estudar, ou da palavra cujo significado se procura esclarecer, toda e qualquer alusão à sua gênese e circunstâncias de sua ocorrência.

Essa abordagem purista é a tônica da doutrina jurídica tradicional; os fenômenos jurídicos são estudados de uma forma completamente dissociada do meio sócio-cultural-político-psíquico-econômico em que ocorrem, como se fossem institutos de um mundo à parte, que não o mundo da vida, dos sentidos e dos sentimentos.

O estudante de Direito, entalhado nessa fôrma purista, será o futuro operador do Direito que aplicará a norma da mesma forma como a estudou: dissociada do contexto que a criou e sem se ater às circunstâncias sócio-cultural-político-psíquico-econômicas em que esta norma será aplicada; sem se preocupar se, com seu trabalho impecavelmente técnico e formal, estará, efetivamente, solucionando o problema que lhe é posto pelas partes em litígio.

A dogmática jurídica é importante para o estudo e aplicação do Direito, mas não é o suficiente. Como assinala Luiz Flávio Gomes, o jurista cuida do fato delitivo como abstração; não de forma direta ou imediata senão por meio da figura típica prevista na norma, isto é, valorativamente, normativamente. Já a Criminologia permite que seja feita a análise totalizadora do delito - “a imagem global do fato e do seu autor”: a etiologia do fato real, sua estrutura interna e dinâmica, formas de manifestação, técnicas de prevenção do mesmo e programas de intervenção no infrator etc.

A ciência moderna deve trabalhar com dados concretos, transformando-os em informação, sistematizando-os e valorando-os; a crescente utilização dos métodos estatísticos e quantitativos demonstra o triunfo avassalador de um novo modelo de saber científico, pois inacabado é o Direito, assim como a pessoa humana, que está em constante evolução e cujas necessidades e desejos cumpre-lhes o Direito servir.

Como bem salientaram Gomes e Molina:

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correspondentes conclusões, porém, suas hipóteses se verificam - e se reforçam – sempre por força dos fatos que prevalecem sobre os argumentos subjetivos de autoridade.

Se à criminologia interessa como é a realidade – a realidade em si mesma, tal e como se apresenta -, para explicá-la cientificamente e compreender o problema do crime, ao Direito só lhe preocupa o crime enquanto (hipotético) fato descrito na norma legal, para descobrir sua adequação típica.17

A Sociologia18 e a Psicologia, ramos do conhecimento que têm se desdobrado em pesquisas sobre o tema em tela, têm se esmerado em procurar conceituar o vocábulo violência sob distintos enfoques, dentre os quais passamos a destacar os que melhor expressam seu sentido.

Em sua conotação sociológica, tem-se que violência é o uso agressivo da força física de indivíduos ou grupos contra outros. Violência não se limita ao uso da força física, mas a possibilidade ou ameaça de usá-la constitui dimensão fundamental de sua natureza. Vê-se que, de início, associa-se a uma idéia de poder, quando se enfatiza a possibilidade de imposição de vontade, desejo ou projeto de um ator sobre outro.19

Segundo Azevedo, entende-se por violência, “uma relação assimétrica (hierárquica) de poder com fim de dominação, exploração e opressão; [...] o fenômeno da violência é causado por múltiplos e diferentes fatores sócio-econômico-culturais, psicológicos e situacionais.”20

Verifica-se que em ambos os conceitos acima há a preocupação de se inserir elementos que vão além da simples forma de atuação do sujeito ativo sobre o passivo a

17

GOMES; MOLINA, op. cit, p.55

18

A Sociologia Criminal, por sua vez, tem por objeto o estudo do delito, delinqüente, vítima e controle social e se insere no mundo do real, do verificável, do mensurável, e não no dos valores.

19

VELHO, Gilberto; ALVITO, Marcos (Orgs.) Cidadania e violência. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: UFRJ, 2000. p. 11. (Gilberto Velho é professor titular de Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ e membro da Coordenação e Programas de Estudos Avançados/UFRJ).

20

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configurar a ação semanticamente denominada violência; igualmente, em ambos os conceitos se insere a idéia de poder, como intrinsecamente ligada ao fenômeno violência.

Ora, a idéia de poder denota uma relação em que uma das partes21 se sobrepõe a outra, impondo-se e fazendo valer suas idéias e seus desejos, em detrimento das idéias e desejos da parte a ela subordinada, ainda que para tanto precise usar da violência, ou simplesmente da mera possibilidade de vir a usá-la; assim, a parte mais fraca dessa relação se deixa dominar à autoridade da parte mais forte, temendo ser vítima dos atos violentos.

Destaque-se ainda a idéia de assimetria assinalada por Dalka,

Apesar de esses dados significarem um alerta concreto, temos de ter em mente que falar de violência não é falar apenas de realidades concretas passíveis de medição. Trata-se de um fenômeno complexo, histórica e culturalmente constituído; no dizer de Rifiotis (1998), ‘cheio de significações que não podem ser reduzidas ao crime e à violência institucional’.Refere-se a uma conduta de abuso e poder, muitas vezes invisível e/ou encoberta, que envolve situações de força e tensão, assimetria e desigualdade social, danosas para a constituição do individuo e da sociedade.

Entre tais formas de violência aparentemente invisíveis é importante destacar a existência da violência doméstica. Esta modalidade reveste-se de características próprias. A ambivalência de vínculos entre as vítimas e agressores, a legitimação no cotidiano e o segredo, entre outras, trazem sérias conseqüências aos sujeitos nelas envolvidos e à sociedade. Na realidade, podemos considerá-la intimamente relacionada à violência social mais ampla”.

[...] Funções da família na constituição do sujeito – Bruschini (1993), define algumas das funções básicas da família, que variam conforme o contexto socioeconômico em determinado período da história, como a socialização de seus membros, a reprodução ideológica e econômica, constituindo tal estrutura um espaço social distinto, em que se definem as diferenças e as relações de poder.

Já Freud ressalta a tarefa de socialização da família, sua contribuição para a formação da personalidade dos indivíduos mediante a constituição de vínculos afetivos. Para esse autor, o psiquismo não é algo dado por natureza, mas fruto de uma construção cultural que ocorre ao longo do desenvolvimento infantil no contexto das relações familiares. Além desse fator, o convívio em família permite a definição de lugares conforme o sexo e a idade. 22

que denota desequilíbrio, desigualdade entre as partes da relação, a qual conduz a uma situação de hierarquia, retornando-se, portanto, à questão do poder que é exercido por uma parte sobre a outra. O objetivo do comportamento violento está expresso nos verbos dominar,

21

Entenda-se por partes um indivíduo contra o outro; um indivíduo contra um grupo de indivíduos ou vice-versa, ou um grupo de indivíduos contra outro.

22

(26)

explorar e oprimir, os quais exprimem a idéia de sofrimento, aniquilamento e submissão da parte que sofre a violência. Dalka explica:

Entender a violência intrafamiliar implica ter uma compreensão histórico-psicossocial do indivíduo e da família. Em outras palavras, como ocorrem as interações pai/mãe/filhos(as) e a forma de relacionamento interpessoal familiar. Implica também perceber que a violência não é um fenômeno natural como querem alguns, mas, ao contrário, construída e transmitida às novas gerações.

Desse modo, quando uma família apresenta padrão abusivo de relacionamento interpessoal, está revelando as cicatrizes de sua história pessoal dentro de um contexto histórico-cultural de determinada sociedade, como nos ensinam Azevedo e Guerra (1995).

Se a violência intrafamiliar é construída histórica, psicológica e socialmente, é impossível apontar uma única causa. Temos de ter características tanto pessoais como circunstanciais dos membros familiares envolvidos, as condições ambientais em que ocorre o fenômeno, as questões psicológicas de interação, o contexto social e as implicações socioeconômicas.

Cabe apontar como uma das características de interação familiar, nos lares onde ocorre o fenômeno da violência intrafamiliar, a existência de uma disfunção, evidenciando a desigualdade de gênero e geração.

Essa desigualdade nada mais é do que a assimetria do poder a submissão do mais fraco pelo mais forte que se traduz em maus tratos físicos, em abuso sexual contra meninas e meninos, negligência e abandono.23

O estudo da violência não pode ficar adstrito, portanto, aos insuficientes conceitos que constam na literatura jurídica, impondo-se elastecer as fronteiras do conhecimento para um âmbito multidisciplinar e, assim, podermos nos aprofundar no tema.

Tem-se, portanto, que a partir do momento em que o Direito se mostra incapaz de alcançar seus objetivos, como, por exemplo, definir os fenômenos que deseja regular, ou até mesmo manter a paz social, torna-se imprescindível recorrer aos diversos ramos do conhecimento humano para que sejam sanadas tais deficiências. Segundo o princípio interdisciplinar utilizado pela Criminologia, as diferentes disciplinas envolvidas – Biologia (criminal), a Psicologia (criminal), a Sociologia (criminal) – compõem um autêntico sistema de “retroalimentação” – cada conclusão particular é corrigida e enriquecida ao ser contrastada com as obtidas em outros âmbitos e disciplinas. Conforme bem explicitado por Gomes e Molina: “ O princípio interdisciplinar, portanto, é uma exigência estrutural do saber científico

23

(27)

imposto pela natureza totalizadora deste e não admite monopólios, prioridades nem exclusões entre as partes ou setores de seu tronco comum”. 24

Warat fala sobre violência, enquanto destrutividade, aqui entendida como uma situação limite que tende ao desaparecimento do outro, uma tentativa radical do medo para anular a problemática que os encontros com o outro sempre colocam. Warat fala da violência de gênero e também da violência decorrente da (má) aplicação do Direito:

O direito não escapa dessas escalas de violência. (...) Todos nós esperamos do simbólico a pacificação, porém é também a fonte da mortificação, incluindo-se aí, as decisões judiciais que são, em muitos casos, violações, pelos magistrados, dos direitos humanos das partes. (Não é um grande paradoxo?).25

Por gênero, entende-se a dicotomia masculino-feminino, in casu, homem-mulher. “Nenhuma das situações de discriminação, subordinação e segregação sofridas pelas mulheres está desvinculada da construção social dos gêneros. Como assinalou Simone de Beauvoir, “não se nasce mulher, torna-se mulher .”26

A esse respeito, esclarece a Professora Maria Alice Rodrigues que:

As situações de discriminação, subordinação e segregação enfrentadas pelas mulheres são engendradas por uma construção social de gêneros. Enquanto o sexo biológico de uma pessoa é dado pela natureza, o gênero é construído socialmente. Assim, os diferentes papéis atribuídos a homens e mulheres não são determinados pela biologia, mas pelo contexto social, político e econômico que confere a homens e mulheres a sua forma de ser e interagir socialmente.27

Tal denominação foi inicialmente utilizada de forma ampla em política, objetivando o desenvolvimento de políticas públicas de proteção aos direitos da mulher e da família, bem

24

GOMES, Luiz Flávio; MOLINA, Antonio García-Pablos. Criminologia: introdução a seus fundamentos teóricos: introdução às bases criminológicas da Lei 9.099/95, Lei dos Juizados Especiais Criminais. 3. ed. rev., atual. e amp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 57

25

WARAT, Luis Alberto.O Ofício do mediador. Florianópolis: Fundação Boiteux , 2001. p.61-63. v. 1.

26

RODRIGUES, Maria Alice. A mulher no espaço privado: da incapacidade à igualdade de direitos. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 8.

27

(28)

como pela psicologia e sociologia, nos estudos e pesquisas acerca das desigualdades e violência de gênero.

A questão da violência de gênero é mundialmente tratada como problema de saúde, dado o grande número de atendimentos feitos nos hospitais e postos de saúde a vítimas desse tipo de ocorrência. Ocupam-se os órgãos de saúde, portanto, com o tema, com o fito de melhor poderem solucionar o problema tão grave quanto comum.

Dados recentes do Relatório de Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PND) revelam que dois terços dos analfabetos do mundo são mulheres. Embora constituam 60% da força de trabalho do planeta, são proprietárias de somente 1% da terra e não ganham mais de 10% da renda mundial. São elas também as que mais sofrem com a violência doméstica, maior causa de ferimentos femininos em todo o mundo, e a principal causa de morte de mulheres entre 14 e 44 anos.28

Gênero, segundo o Ministério da Saúde:

É a construção cultural coletiva dos atributos da masculinidade e feminilidade. Esse conceito foi proposto para distinguir-se do conceito de sexo, que define as características biológicas de cada indivíduo.

Para tornar-se homem ou mulher é preciso submeter-se a um processo que chamamos de socialização de gênero, baseado nas expectativas que a cultura tem em relação a cada sexo. Dessa forma, a identidade sexual é algo construído, que transcende o biológico.

[...]

A estrutura de gêneros delimita também o poder entre os sexos. Mesmo quando a norma legal é de igualdade, na vida cotidiana encontramos a desigualdade e a iniqüidade na distribuição do poder e da riqueza entre homens e mulheres29.

Observa-se que este é um conceito rico de significado, pois menciona a questão da relação de poder que ocorre entre homens e mulheres e da qual advém a desigualdade entre ambos, tal como dito nos conceitos sobre violência, acima estudados; encontra-se também, em consonância com o Direito Internacional dos Direitos Humanos, ramo do Direito em que a denominação violência de gênero foi pioneiramente inserida no vocabulário jurídico e consta

28

(29)

na Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher, de 1993, que define esse tipo de acontecimento como sendo...

qualquer ato de violência baseado no gênero que resulte, ou possa resultar, em dano físico, sexual ou psicológico ou em sofrimento para a mulher, inclusive as ameaças de tais atos, coerção ou privação arbitrária da liberdade, podendo ocorrer na esfera pública ou na esfera privada.30

A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), em seu artigo primeiro, define violência contra a mulher como... “ [...]qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público, como no privado31.”

Em seu artigo segundo, a aludida Convenção especifica as formas de violência que podem ser praticadas contra a mulher da seguinte forma:

Entender-se-á que a violência contra a mulher inclui a violência física, sexual e psicológica:

a. que tenha ocorrido dentro da família, ou unidade doméstica, ou em qualquer outra relação interpessoal, em que o agressor conviva ou haja convivido no mesmo domicílio que a mulher e que compreende, entre outros, estupro, violação, maus-tratos e abuso sexual;

b. que tenha ocorrido na comunidade e seja perpetrada por qualquer pessoa e que compreende, dentre outros, violação, abuso sexual, tortura, maus-tratos de pessoas, tráfico de mulheres, prostituição forçada, seqüestro e assédio sexual no lugar de trabalho, bem como em instituições educacionais, estabelecimentos de saúde ou qualquer outro lugar, e

c. que seja perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra.

29

BRASIL. Ministério da Saúde apud RODRIGUES, op. cit., p. 14.

30

NAÇÕES UNIDAS. Declaração sobre a eliminação da violência contra a mulher. Genebra, 1993

31

(30)

O Relatório Nacional Brasileiro relativo à Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher, doravante denominado, neste trabalho, por RNB/CEDAW, define violência de gênero como sendo “a violência física, sexual e psicológica contra a mulher”, enquanto “manifestação das relações de poder historicamente desiguais estabelecidas entre homens e mulheres. Tem, portanto, na questão cultural o seu grande sustentáculo e fator de perpetuação”; destaca que é uma violência “que não encontra limites de idade, condição social, etnia e religião. Suas manifestações são variadas, e muitas delas encontram fortes raízes culturais (Human Rights Watch, 1995)32”.

Consta ainda do aludido Relatório que:

A violência doméstica pode ser definida como um fenômeno perverso e generalizado que não afeta apenas as mulheres, mas se espraia por todas as esferas da vida social, sendo apontada como fator fundante de vários problemas sociais. Cada vez mais, estudos têm revelado que a violência praticada contra a mulher, principalmente nas relações conjugais, deve ser combatida levando-se em conta seus efeitos sobre a dinâmica das relações familiares, por exemplo, na socialização das crianças e adolescentes.33

A violência de gênero intrafamiliar tem recebido, na última década, destacada atenção por parte do Governo Federal, em atenção às recomendações internacionais da ONU; houve uma grande mobilização interministerial que envolve organizações não governamentais, profissionais da área de saúde e operadores do direito, com o objetivo precípuo de elaborar Projeto de Lei nº 4.559/2004 (Anexo A) para erradicar e coibir tal violência.

O Ministério da Saúde, por sua Secretaria de Políticas de Saúde, elaborou um manual de orientações para os profissionais da saúde pública, intitulado Violência Intrafamiliar: Orientações para a Prática em Serviço34, de onde se extraem os seguintes conceitos de

32

BRASIL. Ministério da Justiça. Secretaria de Estado dos Direitos da Mulher. Relatório nacional brasileiro relativo aos anos de 1985, 1989, 1993, 1997 e 2001, nos termos do artigo 18 daConvenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher – CEDAW. Brasília, 2002.

33

Ibid.

34

(31)

violência intrafamiliar: “[...] qualquer tipo de relação de abuso praticado no contexto privado da família contra qualquer um dos seus membros.”35

“A violência intrafamiliar toma a forma de maus-tratos físicos, psicológicos, sexuais, econômicos ou patrimoniais, causando perdas de saúde ainda pouco dimensionadas.”36

É sobremaneira relevante especificar o conceito de família, bem como o porquê da importância de se restringir, neste trabalho, a questão da violência no âmbito familiar e relativamente à questão de gênero, como se verá adiante.

Pode-se definir família como a constituição de vários indivíduos que compartilham circunstâncias históricas, culturais, sociais, econômicas e afetivas. Família é uma unidade social emissora e receptora de influências culturais e de acontecimentos históricos. Possui comunicação própria e determinada dinâmica.37

Entende-se aqui, por família,

[...] o grupo de pessoas com vínculos afetivos, de consangüinidade ou de convivência.

A família é o primeiro núcleo de socialização dos indivíduos; quem primeiro transmite os valores, usos e costumes que irão formar as personalidades e a bagagem emocional das pessoas. A dinâmica e a organização das famílias baseiam-se na distribuição dos afetos, criando, no espaço doméstico, um complexo dinamismo de competições. Essas disputas são orientadas pelas diferenças de poder entre os sexos e, no contexto afetivo, motivadas pela conquista de espaços que garantam o amor, o reconhecimento de proteção, necessidades básicas da condição humana. Trata-se, dessa forma, de disputas que estimulam sentimentos ambíguos de amor/ódio, aliança/competição, proteção/domínio entre seus membros. Famílias despreparadas para compreender, administrar e tolerar seus próprios conflitos tendem a se tornar violentas.38

Assim, pode-se conceituar violência intrafamiliar como sendo

[...] toda ação ou omissão que prejudique o bem-estar, a integridade física, psicológica ou a liberdade e o direito ao pleno desenvolvimento de outro membro da família. Pode ser cometida dentro ou fora de casa por algum membro da família,

35

Ibid, p. 10.

36

Ibid, p. 11.

37

FERRARI, Dalka Chaves de Almeida; VECINA, Tereza Cristina Cruz (Orgs.). O fim do silêncio na violência familiar: teoria e prática. São Paulo: Agora, 2002. p.28

38

(32)

incluindo pessoas que passam a assumir função parental, ainda que sem laços de consangüinidade, e em relação de poder à outra.39

A violência doméstica distingue-se da violência intrafamiliar por incluir outros membros do grupo, sem função parental, que convivam no espaço doméstico. Incluem-se aí empregados(as), pessoas que convivem esporadicamente, agregados.40

Há consenso entre os estudiosos do tema violência no sentido de que não apenas a desigualdade social para ela contribui, mas, igualmente, e talvez até mesmo em maior escala, o crescimento da violência deve-se ao “[...] esvaziamento de conteúdos culturais, particularmente os éticos”41.

A banalização da violência pelos meios de comunicação de massa e a propagação de papéis estereotipados com relação à mulher contribuem para o reforço dessa violência, sobretudo nas camadas menos esclarecidas e menos favorecidas social e economicamente da população, as quais não possuem condições intelectuais para formarem um senso crítico hábil a filtrar essas informações distorcidas.

Em que pesem tais fatos, o fenômeno da violência de gênero intrafamiliar estende-se de forma praticamente igual em toda a sociedade e em todo o mundo, de tão arraigado que está aos valores culturais vigentes até hoje.

Todavia, há uma proporção equilibrada entre as diferentes classes, permitindo-nos dizer que a violência intrafamiliar é essencialmente democrática em sua disseminação, não há distinção de raça, credo, etnia ou classe social. O observado revela que a visibilidade é maior nessa faixa da população, por acionar os serviços públicos como forma de defesa/denúncia.42

Ao analisar a questão da violência de gênero intrafamiliar nas diferentes classes sociais, o RNB/CEDAW destaca que apenas aparentemente esse tipo de violência é maior nas classes sociais mais baixas.

39

Ibid. p. 15.

40

Ibid.

41

VELHO, Gilberto; ALVITO, Marcos (Orgs.) Cidadania e violência. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: UFRJ, 2000. p. 17.

42

(33)

1.1.1 Tipos de violência de gênero intrafamiliar

A violência de gênero intrafamiliar possui os seguintes tipos distintos, classificados43 de acordo com o tipo de ação ou omissão que vem a lesar distintos bens jurídicos da vítima; classifica-se em violência física, psicológica, econômica ou financeira, institucional e sexual44.

A violência física é aquela praticada mediante o uso da força física, com ou sem a utilização de objeto ou arma, que venha a causar lesões externas, internas ou ambas; inclui-se aí o castigo repetido, não severo; pode se dar de várias formas, citando-se, como exemplo: tapas, empurrões, socos, mordidas, chutes, queimaduras, cortes, estrangulamento, lesões por armas ou objetos (tipificados como lesões corporais – artigo 129, do Código Penal45), obrigar a tomar medicamentos desnecessários ou inadequados, álcool, drogas ou outras substâncias, inclusive alimentos, tirar a vítima de casa à força, amarrar, arrastar, arrancar a roupa (tipificados como constrangimento ilegal – artigo 146, do Código Penal), abandonar em lugares desconhecidos, danos à integridade corporal decorrentes de negligência (omissão de cuidados e proteção contra agravos inevitáveis como situações de perigo, doenças, gravidez, alimentação, higiene, entre outros) – tipificados como abandono material (artigo 244, do Código Penal).

Violência psicológica, tipificada nos artigos 139, 140 e 147, do Código Penal:

[...] é toda ação ou omissão que causa ou visa a causar dano à auto-estima, à identidade ou ao desenvolvimento da pessoa. Inclui: insultos constantes, humilhação, desvalorização, chantagem, isolamento de amigos e familiares, ridicularização, rechaço, manipulação afetiva, exploração, negligência (atos de omissão a cuidados e proteção contra agravos evitáveis como situações de perigo, doenças, gravidez, alimentação, higiene, entre outros), ameaças, privação arbitrária da liberdade

43

Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Violência intrafamiliar: orientações para prática em serviço. Brasília: Ministério da Saúde, 2001. p. 17, 20-22.

44

Adotamos a classificação feita pelo Ministério da Saúde em razão de sua tecnicidade e descritividade, procurando adequá-la aos tipos penais cujo julgamento pertencem à esfera dos Juizados Especiais Criminais. Esta última classificação (sexual) não será objeto de nosso estudo, por corresponder a crimes que não são de competência dos Juizados Especiais Criminais, mas sim das varas criminais comuns.

45

(34)

(impedimento de trabalhar, estudar, cuidar da aparência pessoal, gerenciar o próprio dinheiro, brincar etc), confinamento doméstico, críticas pelo desempenho sexual, omissão de carinho, negar atenção e supervisão.46

A violência econômica ou financeira, que corresponde ao tipo penal inserto no artigo 163, caput, do Código Penal, consiste, v.g., em destruição de bens pessoais (roupas, objetos, documentos, animais de estimação e outros) ou de bens da sociedade conjugal (residência, móveis e utensílios domésticos, terras e outros).

Violência institucional:

é aquela exercida nos/pelos próprios serviços públicos, por ação ou omissão. Pode incluir desde a dimensão mais ampla da falta de acesso à má qualidade dos serviços. Abrange abusos cometidos em virtude das relações de poder desiguais entre usuários e profissionais dentro das instituições, até por uma noção mais restrita de dano físico intencional. Esta violência pode ser identificada de várias formas: peregrinação por diversos serviços até receber atendimento, falta de escuta e tempo para a clientela, frieza, rispidez, falta de atenção, negligência, maus-tratos dos profissionais para com os usuários, motivados por discriminação, abrangendo questões de raça, idade, opção sexual, gênero, deficiência física, doença mental [...].47

Embora os exemplos de violência institucional acima objetivem, primeiramente, descrever ações ou omissões praticadas por profissionais da área da saúde quando do atendimento de vítimas de violência de gênero intrafamiliar, aplicam-se integralmente ao direito, desde o atendimento nas delegacias de polícia até às audiências, o que tem sido objeto de críticas por parte das vítimas e organizações de mulheres em todo o País. Assim, como se não bastasse a legislação falha, dá-se o que a Criminologia denomina de vitimização secundária, que é a sujeição da vítima de violência de gênero intrafamiliar a um novo tipo de violência, a violência institucional.

A violência de gênero intrafamiliar não está adstrita a fatores tais como raça, etnia, crença política, ideológica ou religiosa, condição sócio-econômica etc, mas está mais exposta nas classes mais pobres porque nelas verifica-se um melhor relacionamento com os vizinhos,

46

Ibid.

47

(35)

os quais são, muitas vezes, responsáveis pela denúncia dessa violência junto às delegacias de polícia, comunicando as ocorrências e, ainda, porque nas classes mais abastadas há a possibilidade de buscar-se a solução do problema através de serviços privados, ou seja, de freqüência a consultórios de psicologia e outros.

A moderna Criminologia está redescobrindo a própria vítima como protagonista passivo, que deve ter seus danos valorados e ressarcidos dignamente e é o que se procura fazer no âmbito dos Juizados Especiais Criminais.

1.2. ORIGEM DOS CONFLITOS DE GÊNERO

Nos primórdios da existência humana inexistia privilégio de gênero, havendo solidariedade entre masculino e feminino, em equilíbrio e integração com a natureza. Esses laços teriam sido rompidos a partir do surgimento das sociedades de caça, instaurando-se a competição e, com ela, a violência. Essa relação de dominação e violência que vai marcar a relação entre grupos humanos e entre o homem e a natureza também vai se estender às relações homem/mulher. O masculino impõe-se pela força e “passa a ser o gênero dominante”48

, destinando a si próprio o domínio público e relegando a mulher ao privado, o que caracteriza o ciclo patriarcal.

Maria Alice Rodrigues, em acurado estudo sobre a questão da igualdade de direitos entre homens e mulheres através dos tempos, destaca que embora a partir da Revolução Francesa as mulheres tenham conseguido algum espaço e voz própria para exigirem os mesmos direitos conferidos aos homens, esse espaço foi concedido até o momento em que era útil aos objetivos da revolução, sob o olhar masculino; a partir do momento em que os republicanos se instalaram no poder, fizeram calar a voz das mulheres, que foram novamente

48

(36)

reclusas ao ambiente doméstico, cuidando da limpeza da casa, do bem-estar da família e da criação. Este papel foi imposto às mulheres através de um processo de violência, o qual se perpetua até nossos dias.

No entanto a face mais grave produzida na dicotomia público/privado é a questão da violência contra as mulheres. Com efeito, não se pode admitir que fiquem restritas à esfera privada as questões pertinentes á violência psicológica, física e sexual sofrida pelas mulheres, mesmo aquelas práticas que se apóiam na tradição (como a extirpação do clitóris).49

Além de sua vida privada, uma espécie de segunda vida, o seu bio politikos. [...] O ser político, viver numa polis, significava que tudo era decidido mediante palavras e persuasão, e não pela força ou violência. Utilizar a violência ao invés da persuasão eram modos pré-políticos de agir, típicos da vida fora da polis.50

Assim como para os gregos (cuja concepção de cidadania traduzia-se na capacidade de o homem participar na vida da polis, excluindo as mulheres), a noção de cidadania expressa na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, embora se apresentasse como universalista, também era excludente em relação às mulheres. A Revolução Francesa para as mulheres representou um retrocesso em diversos níveis, pois, apesar do importante papel que tiveram no movimento revolucionário, quando da institucionalização, foram excluídas da cidadania política e civil, sob o argumento de que homens e mulheres tinham uma fisiologia diferente, que justificava papéis sociais diversos. Ás mulheres foi estabelecida uma cidadania específica, que deveria ser exercida no espaço doméstico: como mães e esposas dos republicanos deveriam cuidar dos interesses familiares.51

“A Revolução francesa é considerada o momento histórico em que a civilização ocidental descobre que as mulheres podem ter um lugar na cidade”.52

“Inicia-se, assim, um processo de estreita vigilância, em que a participação das mulheres é estimulada, desde que sejam dóceis e submissas”.53

Olympe de Gouges considera que “a tirania exercida sobre as mulheres é a verdadeira matriz de todas as formas de desigualdade”.54

Com seu texto provocador, Olympe de Gouges questiona a política do macho e desnuda a mistificação do pretenso universalismo da Declaração dos Direitos do homem e do cidadão, que, fingindo falar em nome de toda a humanidade, fala apenas do sexo masculino. Além disso, em seus textos, alerta que somente a vigilância

49

RODRIGUES, Maria Alice. A mulher no espaço privado: da incapacidade à igualdade de direitos. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 60.

50

Ibid., p. 43.

51

Ibid., p. 48.

52

Ibid., p. 10.

53

Ibid., p. 12.

54

(37)

política das mulheres pode impedir que os homens usurpem as conquistas da Revolução, cabendo às mulheres desvendar o seu sentido libertadas.

Olympe de Gouges foi condenada à morte durante a Revolução Francesa, sob a acusação de subverter a ordem natural. Ela foi guilhotinada em 7 de novembro de 1793, por ter “esquecido as virtudes de seu sexo para imiscuir-se nos assuntos da República”, disse o procurador Chaumette, ao anunciar sua condenação à pena de morte, determinada por Robespierre.55

As mulheres foram novamente subjugadas pelo Código napoleônico – incapazes, submetidas à autoridade do marido e sem direitos políticos, o modelo feminino desenhado por Napoleão durou muito tempo e inspirou os códigos Civis de vários países na Europa e América, como o Brasil.

A Revolução Russa decreta ser a mulher eleitora e elegível, direito conquistado pelas mulheres russas antes das inglesas e das americanas.56

É inegável a importância e o significado para a humanidade das declarações de 1789 e, posteriormente da Declaração do Direitos Humanos de 1948, bem como de todos os demais documentos internacionais que tratam de direitos humanos. Contudo não se pode deixar também de observar que esses documentos estão fortemente vinculados á idéia do ser humano centrado na imagem do homem. Esse direitos só tiveram como referência o sexo masculino, considerado como o paradigma do humano, sem se considerar a maneira de sentir, pensar, lutar, e viver do sexo feminino, ou seja, a metade da humanidade. Assim, as mulheres ficaram invisíveis, negando-se o reconhecimento de seus direitos específicos, pois simplesmente elas foram consideradas como se fizessem parte integrante do homem.57

Claude Lévi-Strauss58, em sua obra As Estruturas Elementares do Parentesco, situa de forma pontual a origem da opressão feminina: o tabu do incesto. A proibição de consangüinidade como necessidade de manutenção da própria espécie humana estimula a celebração de verdadeiras transações entre famílias e grupos. Ocorre que, como o masculino é quem domina, esse intercâmbio genético é estabelecido entre homens de grupos ou famílias distintos e a mulher passa a ser o objeto dessas relações sociais.

A mulher fica, assim, muitos séculos limitada ao espaço doméstico e ao desempenho de sua função reprodutiva e demais atividades correlacionadas com o cuidado da casa e a educação dos filhos, papel esse desempenhado sem qualquer questionamento, porque

55

Ibid., p. 16.

56

Ibid., p. 19.

57

Ibid., p. 49.

58

(38)

atribuído à mulher em razão de sua própria constituição biológica e, portanto, mera conseqüência da ordem natural das coisas.

É nesse claustro que a mulher torna-se invisível e tem subtraída qualquer possibilidade de exercer sua cidadania, aqui entendida como o espaço público das relações sociais e políticas. Uma mulher era esposa ou filha de um cidadão. Pertencia à classe social do pai ou do marido. Em caso de coabitação por iniciativa pessoal, ela perdia o direito de cidadania aos filhos.

Marilena Chauí assinala a interpretação feita por Hanna Arendt, no sentido de que o lar deixa de ser um espaço de privacidade para ser um espaço de privação feminina no tocante ao participar e construir decisões políticas, onde a mulher não apenas deixa de ser vista, mas também deixa de ser ouvida, de tal forma que deixa de ser sujeito do discurso para ser objeto desse discurso eminentemente masculino59.

Uma visão mais aprofundada desse processo é dada por Maria Alice Rodrigues, nos seguintes termos:

Para ENGELS , o patriarcado teria suas origens no momento em que o homem passou a controlar os meios de produção. Ainda que não se possa estabelecer o momento exato em que o homem apoderou-se das forças produtivas, é aceito por grande parte do estudiosos que foi nesse período que a mulher também passou a ser sua propriedade.

ENGELS atribui ao desmoronamento do direito materno “a grande derrota histórica do sexo feminino em todo o mundo”. Ele destaca que o primeiro efeito desse poder exclusivo dos homens observa-se no surgimento da forma intermediária de família patriarcal. Além disso, essas transformações dão origem ao matrimônio monogâmico. Com a finalidade de assegurar a procriação de filhos de paternidade indiscutível, a mulher passa a pertencer ao homem, que, assim, se asseguraria de sua fidelidade. Quando o homem a mata, não faz mais do que exercer um direito seu. A preocupação com a paternidade indiscutível origina-se do fato de que os filhos receberão, por herança, a posse dos bens de seu pai. 60

[...]

No direito das Ordenações, o poder do marido sobre a mulher era quase absoluto. Tinha o direito de representação da mulher, pois ela própria não intervinha nos atos jurídicos. A mulher era sempre tratada como pessoa sob o poder do marido. A

59

CHAUÍ, M. et al. Perspectivas antropológicas da mulher 4: sobre mulher e violência. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p.52.

60

(39)

amplitude do poder marital expressava-se pelo direito de “correção física”. O marido podia castigar a esposa imoderadamente ou até matá-la, quando acusada de adultério. Para tanto, não havia necessidade de prova austera, bastando rumores públicos a respeito do adultério61.

Mary del Priore explica que:

A Igreja influenciou de forma decisiva na construção do papel destinado à mulher na sociedade. Nesse sentido: O acordo epistolar entre autores laicos e religiosos gira sempre em torno das mesmas questões: o casamento como elemento de equilíbrio social, e dentro dele, a ausência de paixões, a obediência e a subordinação da mulher. A Igreja, mais minuciosa, fabrica através dos manuais de confissão um saber sobre a sexualidade feminina no passado, pois não capturar o mais íntimo, o mais ínfimo dos gestos, significa não poder controlá-lo e puni-lo.62

[...]

Percebe-se, no entanto, que o Decreto elaborado em 1890 manteve todo o arcabouço de normas limitadoras de direitos para as mulheres, revelando-se, de modo incontestável, que o casamento é a principal fonte dessas desigualdades. Mesmo naquelas situações excepcionais em que às mulheres são conferidos direitos, fundamentam-se tais concessões na necessidade protetiva da mulher em razão de sua fragilidade e fraqueza e na proteção de interesses patrimoniais da família. Com o casamento, a mulher perde a sua personalidade e a condição de sujeito de direitos. 63

No dizer de Marilena Chauí, a “[..] posição social da mulher fica evidente a partir destas colocações; ela é objeto das relações, embora valioso porque responsável pela descendência, pela reprodução64”.

Ao fazer um levantamento histórico sobre o papel da mulher na civilização, Carla Mirella Mastrobuono65 colhe os seguintes adjetivos: os textos históricos sobre Roma mencionam as mulheres como prostitutas, cortesãs, adúlteras e incentivadoras de regicídio; para o ideário judaico-cristão as mulheres são más e incapazes de pensarem livremente.

Assim sendo, a “domesticação” da mulher pelo homem adveio “da necessidade dos homens assegurarem a posse de sua descendência”66, o que sempre explicou – e até mesmo

justificou – o autoritarismo masculino e, em conseqüência, tornou natural a violência do homem contra a mulher. A violência de gênero sobressai, assim, como uma questão sobretudo

61

Ibid., p. 70.

62

DEL PRIORE, Mary. A mulher na história do Brasil. 2. ed. São Paulo: Contexto, 1989. p. 20.

63

Ibid., p. 75-76.

64

CHAUÍ, op. cit., p. 69.

65

MASTROBUONO, op. cit., p. 252.

66

(40)

cultural, onde “muitos homens não assumem que estão sendo violentos, muitas mulheres também não reconhecem a violência que estão sofrendo”67.

É a partir do final do século XX, em que a mulher já se vê inserida no mercado de trabalho, voltando assim ao cenário público, que se encerra o ciclo patriarcal, deixando um saldo de inegáveis conquistas, sobretudo as tecnológicas, mas que tiveram um preço muito alto: o preço pago pela destruição e violência.

1.3 CONSEQÜÊNCIAS DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO, NOS ÂMBITOS INTRA E EXTRA-FAMILIAR

O tema violência de gênero intrafamiliar está inserido no cenário mundial, onde a maioria dos países está comprometida com sua prevenção, punição e erradicação, sendo certo que urge sejam buscadas soluções eficazes para que, em sede de procedimento criminal, a punição dos crimes que caracterizam esse tipo de violência seja eficaz, de tal forma a possibilitar sua prevenção e erradicação.

O RNB/CEDAW68 reputa que a violência contra a mulher, em especial aquela

ocorrida no âmbito doméstico e intra-familiar, tem graves e sérias conseqüências não apenas para o pleno desenvolvimento da mulher, comprometendo o exercício de sua cidadania e os direitos humanos que lhe são assegurados, mas também o desenvolvimento sócio-econômico do país. Segundo dados estatísticos apurados pelos elaboradores do referido Relatório,no Brasil, a cada 4 minutos uma mulher é agredida em seu próprio lar por uma pessoa com quem mantém relação de afeto; as estatísticas disponíveis e os registros nas delegacias especializadas de crimes contra a mulher demonstram que 70% dos incidentes acontecem dentro de casa e que o agressor é o próprio marido ou companheiro; mais de 40% das

67

Ibid., p. 15.

68

Imagem

Figura 1 – Ciclo da violência
Gráfico 1 – Violência de gênero intrafamiliar  Fonte: Da autora
Gráfico 2 – Comportamento dos agressores  Fonte: Da autora
Gráfico 3 – Status profissional  Fonte: Da autora
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Referências

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