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CAPÍTULO 3 Juizados Especiais e as penas alternativas sob a ótica da Sociologia

3.2 A Sociologia explica o Direito

3.2.3 O desvio

Turner conceitua desvio como sendo “o comportamento que viola normas bastante arraigadas na sociedade”215 . O desvio é tanto mais verificado quanto mais complexa seja a sociedade, onde as forças formais e informais de controle social mostram-se inadequadas e insuficientes para a manutenção da ordem.

A teoria da tensão estrutural – também conhecida como teoria da anomia – do teórico funcionalista Robert K. Merton, explica o desvio como sendo a utilização de meios não institucionalizados para alcançar objetivos legítimos, o que é gerado pela tensão de certas pessoas, em busca do sucesso. Dentre os mecanismos do desvio, interessa-nos o que Merton denominou de inovação, “em que os objetivos de sucesso são aceitos, mas os meios institucionalizados são rejeitados a favor de meios ilegais e ilegítimos – isto é, o crime.”216

Em se tratando de violência de gênero intrafamiliar, cumpre ressaltar que as leis são elaboradas por homens, sendo que somente a partir do século passado as mulheres passaram a poder exercer, ativamente, sua cidadania, esta aqui compreendida em seu conceito clássico, isto é, podendo votar e serem votadas. A partir desse momento, a mulher pode eleger representantes do sexo feminino que, sensibilizadas com o problema de violência de gênero,

215

Ibid., p. 185.

216

MERTON, Robert. apud TURNER, Jonathan. In: Sociologia: conceitos e aplicações. São Paulo: Makron Books, 1999. p.183

puderam vir a elaborar leis que possibilitam o início da erradicação, prevenção e punição dessa violência.

Não conflitante com a teoria de Merton, porém mais radical que ela, explica o desvio a teoria do conflito, de Quinney, aqui revisitado por Turner. A questão, sob esse prisma, cinge-se ao fato de que as “normas que definem o desvio são [...] as dos poderosos. As leis e sua sanção enfatizam a ilegalidade de atividades que são ofensivas à moralidade das classes privilegiadas e que ameaçam sua propriedade e riqueza.”217 É de Quinney, portanto, o enfoque do direcionamento das sanções às classes menos privilegiadas, enquanto aos poderosos permite-se a impunidade de suas ações criminosas.

Sob a ótica da teoria da rotulação, o desvio é explicado como fruto de rótulos ou etiquetas ligados aos comportamentos pessoais; assim, ao se rotular a pessoa como desviante (alcoólatra, prostituta, delinqüente, louco, drogado etc), esse rótulo é absorvido pelos valores da pessoa rotulada e passa a fazer parte de sua personalidade; conseqüentemente, a pessoa recebe não apenas um rótulo, mas sim um reforço para que continue desviante.

Nesse sentido, o desvio propaga-se rapidamente através da interação e da socialização, tal como explicam Sutherland e Cressey218 em sua teoria da associação diferencial, ou seja, o desvio propaga-se facilmente quando há interação e socialização de um desviante e um não-desviante. Esse aspecto é de fundamental importância para a análise da aplicação das penas alternativas nos Juizados Especiais Criminais, como se verá adiante.

Portanto, em sendo o crime, em última análise, um fenômeno humano e cultural, somente poderá ser compreendido mediante “uma atitude aberta e flexível, intuitiva –

217

QUINNEY, Richard apud TURNER, Jonathan. In: Sociologia: conceitos e aplicações. São Paulo: Makron Books, 1999. p.186.

218

SUTHERLAND, Edwin;CRESSEY, Donald R.apud TURNER, Jonathan. In: Sociologia: conceitos e aplicações. São Paulo: Makron Books, 1999. p.187

empática – capaz de captar as sutis arestas e as múltiplas dimensões de um profundo problema humano e comunitário”219.

Além disso, não há uma fórmula pronta, acabada, para solucionar o problema da criminalidade e da violência; certo é que apesar das várias teorias que tentam explicar esses fenômenos para, assim, possibilitarem um controle que se mostre ao menos razoável, mostram-se, ao final, distantes de uma real e efetiva aplicação prática. O crime “é um problema ‘da’ comunidade, nasce ‘na’ comunidade e nela deve encontrar fórmulas de solução positivas. É um problema da comunidade, portanto, de todos: não só do ‘sistema legal’, exatamente porque delinqüente e vítima são membros ativos daquela”220.

Segundo a Sociologia Criminal de Ferri, em especial sua Teoria dos “Substitutivos Penais”...

[...] o delito é um fenômeno social, com uma dinâmica própria e etiologia específica, na qual predominam os fatores “sociais”. Em conseqüência, a luta e a prevenção do delito devem ser concretizados por meio de uma ação realista e científica dos poderes públicos que se antecipe a ele e que incida com eficácia nos fatores (especialmente nos fatores sociais) criminógenos que o produzem, nas mais diversas esferas (econômica, política, científica, legislativa, religiosa, familiar, educativa, administrativa etc), neutralizando-os. A pena, conforme Ferri, seria,por si só, ineficaz, se não vem precedida ou acompanhada das oportunas reformas econômicas, sociais etc., orientadas por uma análise científica e etiológica do delito221.

Embora essa teoria tenha se mostrado já ultrapassada, muito dela pode ser aproveitado em tema de violência de gênero intrafamiliar: este é um fenômeno social, com uma dinâmica própria e etiologia específica, na qual predominam fatores sociais, como foi visto no primeiro capítulo. A punição e prevenção do delito, funções da pena, mereceriam portanto o tratamento sugerido por Ferri. Em especial, o problema deveria ser analisado

219

GOMES, Luiz Flávio; MOLINA, Antonio García-Pablos. Criminologia: introdução a seus fundamentos teóricos: introdução às bases criminológicas da Lei 9.099/95, Lei dos Juizados Especiais Criminais. 3. ed. rev., atual. e amp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 59.

220

Ibid., p. 67

221

FERRI, Enricoapud GOMES, Luiz Flávio; MOLINA, Antonio García-Pablos. Criminologia: introdução a seus fundamentos teóricos: introdução às bases criminológicas da Lei 9.099/95, Lei dos Juizados Especiais Criminais. 3. ed. rev., atual. e amp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

científica e etiologicamente para que, com fundamento nos resultados dessas análises, pudessem ser criadas leis que o solucionassem efetivamente.

A escola ou movimento da defesa social destaca, por outro lado:

[...] a finalidade ressocializadora do castigo, compatível com a finalidade protetora da sociedade, precisamente porque acolhe uma imagem do delinqüente, do homem- delinqüente, como membro da sociedade, chamado a nela se reincorporar, o que obriga a respeitar sua identidade e dignidade. É uma imagem bem distinta da do “pecador” (dos clássicos), da “fera perigosa” (dos positivistas), da do “inválido”( dos correcionalistas) ou da vítima (do marxisismo)222.

Essa teoria, embora tenha sido propagada há vários anos atrás, adequa-se às Regras de Tóquio aprovadas em 1990 pela Assembléia Geral das Nações Unidas, onde se busca a predominância da aplicação de medidas não-privativas de liberdade.

Para Tarde apud Gomes e Molina, são significativas as denominadas “leis da imitação”, segundo as quais:

[...] o delito, como qualquer outro comportamento social, começa sendo “moda”, e depois torna-se um hábito ou costume; e como em qualquer outro fenômeno social, o mimetismo – a imitação – joga um papel decisivo. O delinqüente é, consciente ou inconscientemente, um imitador 223

Em tema de violência intrafamiliar, é relevante salientar que os relatos dos psicólogos integrantes do Núcleo Psicossocial224 destacam que os agressores, quando crianças, foram vítimas dessa mesma violência, ou a presenciaram. Igualmente, fatores outros que conduzem a um ambiente favorável à ocorrência de violência familiar, como, por exemplo, o alcoolismo são vivenciados no próprio ambiente familiar pelas crianças. Veja-se, por exemplo, este trecho de relatório do referido Núcleo elaborado em caso de violência de gênero intrafamiliar:

222

GOMES, Luiz Flávio; MOLINA, Antonio García-Pablos. Criminologia: introdução a seus fundamentos teóricos: introdução às bases criminológicas da Lei 9.099/95, Lei dos Juizados Especiais Criminais. 3. ed. rev., atual. e amp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

223

TARDE apud GOMES, Luiz Flávio; MOLINA, Antonio García-Pablos. Criminologia: introdução a seus fundamentos teóricos: introdução às bases criminológicas da Lei 9.099/95, Lei dos Juizados Especiais Criminais. 3. ed. rev., atual. e amp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

224

O Sr. V. vivenciou em sua família de origem vários conflitos decorrentes do abuso de álcool pelos seus pais, o que, certamente, influenciou na relação que o mesmo estabelece hoje com a bebida. Embora o beber excessivo tenha múltiplas determinações, os estudos comprovam que o ambiente familiar onde existe a disponibilidade e aceitação do consumo de álcool pode influenciar em grande medida a forma de beber dos filhos.225