• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 1 Violência de gênero intrafamiliar: conceitos, especificação, tipos, origens

1.2. Origem dos conflitos de gênero

Nos primórdios da existência humana inexistia privilégio de gênero, havendo solidariedade entre masculino e feminino, em equilíbrio e integração com a natureza. Esses laços teriam sido rompidos a partir do surgimento das sociedades de caça, instaurando-se a competição e, com ela, a violência. Essa relação de dominação e violência que vai marcar a relação entre grupos humanos e entre o homem e a natureza também vai se estender às relações homem/mulher. O masculino impõe-se pela força e “passa a ser o gênero dominante”48

, destinando a si próprio o domínio público e relegando a mulher ao privado, o que caracteriza o ciclo patriarcal.

Maria Alice Rodrigues, em acurado estudo sobre a questão da igualdade de direitos entre homens e mulheres através dos tempos, destaca que embora a partir da Revolução Francesa as mulheres tenham conseguido algum espaço e voz própria para exigirem os mesmos direitos conferidos aos homens, esse espaço foi concedido até o momento em que era útil aos objetivos da revolução, sob o olhar masculino; a partir do momento em que os republicanos se instalaram no poder, fizeram calar a voz das mulheres, que foram novamente

48

reclusas ao ambiente doméstico, cuidando da limpeza da casa, do bem-estar da família e da criação. Este papel foi imposto às mulheres através de um processo de violência, o qual se perpetua até nossos dias.

No entanto a face mais grave produzida na dicotomia público/privado é a questão da violência contra as mulheres. Com efeito, não se pode admitir que fiquem restritas à esfera privada as questões pertinentes á violência psicológica, física e sexual sofrida pelas mulheres, mesmo aquelas práticas que se apóiam na tradição (como a extirpação do clitóris).49

Além de sua vida privada, uma espécie de segunda vida, o seu bio politikos. [...] O ser político, viver numa polis, significava que tudo era decidido mediante palavras e persuasão, e não pela força ou violência. Utilizar a violência ao invés da persuasão eram modos pré-políticos de agir, típicos da vida fora da polis.50

Assim como para os gregos (cuja concepção de cidadania traduzia-se na capacidade

de o homem participar na vida da polis, excluindo as mulheres), a noção de cidadania expressa na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, embora se apresentasse como universalista, também era excludente em relação às mulheres. A Revolução Francesa para as mulheres representou um retrocesso em diversos níveis, pois, apesar do importante papel que tiveram no movimento revolucionário, quando da institucionalização, foram excluídas da cidadania política e civil, sob o argumento de que homens e mulheres tinham uma fisiologia diferente, que justificava papéis sociais diversos. Ás mulheres foi estabelecida uma cidadania específica, que deveria ser exercida no espaço doméstico: como mães e esposas dos republicanos deveriam cuidar dos interesses familiares.51

“A Revolução francesa é considerada o momento histórico em que a civilização ocidental descobre que as mulheres podem ter um lugar na cidade”.52

“Inicia-se, assim, um processo de estreita vigilância, em que a participação das mulheres é estimulada, desde que sejam dóceis e submissas”.53

Olympe de Gouges considera que “a tirania exercida sobre as mulheres é a verdadeira matriz de todas as formas de desigualdade”.54

Com seu texto provocador, Olympe de Gouges questiona a política do macho e desnuda a mistificação do pretenso universalismo da Declaração dos Direitos do homem e do cidadão, que, fingindo falar em nome de toda a humanidade, fala apenas do sexo masculino. Além disso, em seus textos, alerta que somente a vigilância

49

RODRIGUES, Maria Alice. A mulher no espaço privado: da incapacidade à igualdade de direitos. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 60. 50 Ibid., p. 43. 51 Ibid., p. 48. 52 Ibid., p. 10. 53 Ibid., p. 12. 54 Ibid., p. 15.

política das mulheres pode impedir que os homens usurpem as conquistas da Revolução, cabendo às mulheres desvendar o seu sentido libertadas.

Olympe de Gouges foi condenada à morte durante a Revolução Francesa, sob a acusação de subverter a ordem natural. Ela foi guilhotinada em 7 de novembro de 1793, por ter “esquecido as virtudes de seu sexo para imiscuir-se nos assuntos da República”, disse o procurador Chaumette, ao anunciar sua condenação à pena de morte, determinada por Robespierre.55

As mulheres foram novamente subjugadas pelo Código napoleônico – incapazes, submetidas à autoridade do marido e sem direitos políticos, o modelo feminino desenhado por Napoleão durou muito tempo e inspirou os códigos Civis de vários países na Europa e América, como o Brasil.

A Revolução Russa decreta ser a mulher eleitora e elegível, direito conquistado pelas mulheres russas antes das inglesas e das americanas.56

É inegável a importância e o significado para a humanidade das declarações de 1789 e, posteriormente da Declaração do Direitos Humanos de 1948, bem como de todos os demais documentos internacionais que tratam de direitos humanos. Contudo não se pode deixar também de observar que esses documentos estão fortemente vinculados á idéia do ser humano centrado na imagem do homem. Esse direitos só tiveram como referência o sexo masculino, considerado como o paradigma do humano, sem se considerar a maneira de sentir, pensar, lutar, e viver do sexo feminino, ou seja, a metade da humanidade. Assim, as mulheres ficaram invisíveis, negando-se o reconhecimento de seus direitos específicos, pois simplesmente elas foram consideradas como se fizessem parte integrante do homem.57

Claude Lévi-Strauss58, em sua obra As Estruturas Elementares do Parentesco, situa de forma pontual a origem da opressão feminina: o tabu do incesto. A proibição de consangüinidade como necessidade de manutenção da própria espécie humana estimula a celebração de verdadeiras transações entre famílias e grupos. Ocorre que, como o masculino é quem domina, esse intercâmbio genético é estabelecido entre homens de grupos ou famílias distintos e a mulher passa a ser o objeto dessas relações sociais.

A mulher fica, assim, muitos séculos limitada ao espaço doméstico e ao desempenho de sua função reprodutiva e demais atividades correlacionadas com o cuidado da casa e a educação dos filhos, papel esse desempenhado sem qualquer questionamento, porque

55 Ibid., p. 16. 56 Ibid., p. 19. 57 Ibid., p. 49. 58

LÉVI-STRAUSS, Claude. As estruturas elementares do parentesco. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Edusp, 1976.

atribuído à mulher em razão de sua própria constituição biológica e, portanto, mera conseqüência da ordem natural das coisas.

É nesse claustro que a mulher torna-se invisível e tem subtraída qualquer possibilidade de exercer sua cidadania, aqui entendida como o espaço público das relações sociais e políticas. Uma mulher era esposa ou filha de um cidadão. Pertencia à classe social do pai ou do marido. Em caso de coabitação por iniciativa pessoal, ela perdia o direito de cidadania aos filhos.

Marilena Chauí assinala a interpretação feita por Hanna Arendt, no sentido de que o lar deixa de ser um espaço de privacidade para ser um espaço de privação feminina no tocante ao participar e construir decisões políticas, onde a mulher não apenas deixa de ser vista, mas também deixa de ser ouvida, de tal forma que deixa de ser sujeito do discurso para ser objeto desse discurso eminentemente masculino59.

Uma visão mais aprofundada desse processo é dada por Maria Alice Rodrigues, nos seguintes termos:

Para ENGELS , o patriarcado teria suas origens no momento em que o homem passou a controlar os meios de produção. Ainda que não se possa estabelecer o momento exato em que o homem apoderou-se das forças produtivas, é aceito por grande parte do estudiosos que foi nesse período que a mulher também passou a ser sua propriedade.

ENGELS atribui ao desmoronamento do direito materno “a grande derrota histórica do sexo feminino em todo o mundo”. Ele destaca que o primeiro efeito desse poder exclusivo dos homens observa-se no surgimento da forma intermediária de família patriarcal. Além disso, essas transformações dão origem ao matrimônio monogâmico. Com a finalidade de assegurar a procriação de filhos de paternidade indiscutível, a mulher passa a pertencer ao homem, que, assim, se asseguraria de sua fidelidade. Quando o homem a mata, não faz mais do que exercer um direito seu. A preocupação com a paternidade indiscutível origina-se do fato de que os filhos receberão, por herança, a posse dos bens de seu pai. 60

[...]

No direito das Ordenações, o poder do marido sobre a mulher era quase absoluto. Tinha o direito de representação da mulher, pois ela própria não intervinha nos atos jurídicos. A mulher era sempre tratada como pessoa sob o poder do marido. A

59

CHAUÍ, M. et al. Perspectivas antropológicas da mulher 4: sobre mulher e violência. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p.52.

60

RODRIGUES, Maria Alice. A mulher no espaço privado: da incapacidade à igualdade de direitos. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 65.

amplitude do poder marital expressava-se pelo direito de “correção física”. O marido podia castigar a esposa imoderadamente ou até matá-la, quando acusada de adultério. Para tanto, não havia necessidade de prova austera, bastando rumores públicos a respeito do adultério61.

Mary del Priore explica que:

A Igreja influenciou de forma decisiva na construção do papel destinado à mulher na sociedade. Nesse sentido: O acordo epistolar entre autores laicos e religiosos gira sempre em torno das mesmas questões: o casamento como elemento de equilíbrio social, e dentro dele, a ausência de paixões, a obediência e a subordinação da mulher. A Igreja, mais minuciosa, fabrica através dos manuais de confissão um saber sobre a sexualidade feminina no passado, pois não capturar o mais íntimo, o mais ínfimo dos gestos, significa não poder controlá-lo e puni-lo.62

[...]

Percebe-se, no entanto, que o Decreto elaborado em 1890 manteve todo o arcabouço de normas limitadoras de direitos para as mulheres, revelando-se, de modo incontestável, que o casamento é a principal fonte dessas desigualdades. Mesmo naquelas situações excepcionais em que às mulheres são conferidos direitos, fundamentam-se tais concessões na necessidade protetiva da mulher em razão de sua fragilidade e fraqueza e na proteção de interesses patrimoniais da família. Com o casamento, a mulher perde a sua personalidade e a condição de sujeito de direitos. 63

No dizer de Marilena Chauí, a “[..] posição social da mulher fica evidente a partir destas colocações; ela é objeto das relações, embora valioso porque responsável pela descendência, pela reprodução64”.

Ao fazer um levantamento histórico sobre o papel da mulher na civilização, Carla Mirella Mastrobuono65 colhe os seguintes adjetivos: os textos históricos sobre Roma mencionam as mulheres como prostitutas, cortesãs, adúlteras e incentivadoras de regicídio; para o ideário judaico-cristão as mulheres são más e incapazes de pensarem livremente.

Assim sendo, a “domesticação” da mulher pelo homem adveio “da necessidade dos homens assegurarem a posse de sua descendência”66, o que sempre explicou – e até mesmo justificou – o autoritarismo masculino e, em conseqüência, tornou natural a violência do homem contra a mulher. A violência de gênero sobressai, assim, como uma questão sobretudo

61

Ibid., p. 70.

62

DEL PRIORE, Mary. A mulher na história do Brasil. 2. ed. São Paulo: Contexto, 1989. p. 20.

63

Ibid., p. 75-76.

64

CHAUÍ, op. cit., p. 69.

65

MASTROBUONO, op. cit., p. 252.

66

cultural, onde “muitos homens não assumem que estão sendo violentos, muitas mulheres também não reconhecem a violência que estão sofrendo”67.

É a partir do final do século XX, em que a mulher já se vê inserida no mercado de trabalho, voltando assim ao cenário público, que se encerra o ciclo patriarcal, deixando um saldo de inegáveis conquistas, sobretudo as tecnológicas, mas que tiveram um preço muito alto: o preço pago pela destruição e violência.

1.3 CONSEQÜÊNCIAS DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO, NOS ÂMBITOS INTRA E