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2     DESIGN: AVENTURA PELO TEMPO

2.5     Concept art e design

2.5.3  Personagens

2.5.3  Personagens 

Por  mais  que  a  proposta  desta  pesquisa  seja  analisar  como  o  design  contribui  para  a  construção  ética  de  um  personagem,  é  importante  que  se  releve  que  este  não  é  composto  por  apenas  aparência/configuração.  Ele  é  composto  de  vários  outros  fatores,  incluindo  psicológicos.  Para  que  entendamos  a  complexidade  da  produção  de  um  personagem, precisamos apreender o significado do que é personagem. 

Beth Brait, professora pesquisadora e crítica literária, alude sobre a problemática  de se definir um conceito para personagem: "O problema da personagem é, antes de tudo,  um  problema  linguístico,  pois  a  personagem  não  existe  fora  das  palavras  [texto]".  (BRAIT,  1990,  p.  11).  Ou  seja,  o  personagem,  antes  de  mais  nada,  é  matéria  do  texto,  matéria  linguística. A autora continua: 

 

Se  quisermos  saber  alguma  coisa  a  respeito  de  personagens,  teremos  de  encarar  frente  a  frente  a  construção  do  texto,  a  maneira  que  o  autor  encontrou para dar forma às suas criaturas, e aí pinçar a independência, a  autonomia e a ‘vida’ desses seres de ficção. É somente sob essa perspectiva,  tentativa  de  deslindamento  do  espaço  habitado  pelas  personagens,  que  poderemos,  se  útil  e  se  necessário,  vasculhar  a  existência  da  personagem  enquanto representação de uma realidade exterior. (BRAIT, 1990, p. 11) 

 

Nesta  abordagem  que  encara  personagem  como  sendo  uma  criatura  fictícia,  pode‐se entender que personagem seja fruto de criação e que pode ser estudado através do  desmembramento das linguagens que lhe dão vida. Um bom exemplo, segundo Brait (1990),  é o quadro Retirantes de Cândido Portinari (1944): 

   

  Figura 4 – Retirantes, Cândido Portinari (1944)    Fonte: Disponível em: < http://www.portinari.org.br/img/sections/collection/artwork/250/2733.jpg>   Acesso em: 13 de mar. de 2018.    Nesse quadro, segundo a autora, os personagens retratados são uma “versão” do  que  se  tem  como  figura  humana  em  linhas  gerais.  São  figuras  humanoides  com  caracterizações definidas pelo ponto de vista e também pelas técnicas e linguagens usadas  pelo  autor.  Beth  afirma  que  "é  possível  verificar  nesse  quadro  [Figura  4]  que  a  ideia  de 

reprodução  e  invenção  de  seres  humanos  combina‐se  no  processo  artístico,  por  meio  dos 

recursos de linguagem de que dispõe o autor". (BRAIT, 1990, p. 18, grifos do autor)  

Observando  a  declaração  da  autora,  podemos  perceber  que  o  personagem,  mesmo sendo uma criatura fictícia, mantém certa relação com o real. Percebe‐se uma outra  face, a ficcional, que, de certa forma, imita a nossa realidade. 

Esse  conceito  de  comparação  entre  o  real  e  o  fictício  também  provém  de  Aristóteles,  nosso  referencial  maior  no  campo  da  retórica.  Em  sua  obra  Poética,  o  mestre  estagirita dava continuidade aos estudos do texto ao discutir as manifestações lírica, épica e  dramática.  Como  apontado  por  Beth  Brait  (1990,  p.  29):  “esse  pensador  grego  levantou  alguns aspectos importantes, que marcaram e marcam até hoje o conceito de personagem e  sua  função  na  literatura”.  Nesta  obra,  Aristóteles  introduziu  o  conceito  de  mimesis  aristotélica.  Beth  continua:  “durante  muito  tempo,  o  termo  mimesis  foi  traduzido  como 

sendo  ‘imitação  do  real’,  como  referência  direta  à  elaboração  de  uma  semelhança  ou  imagem da natureza”. (BRAIT, 1990, p. 29, grifo do autor) 

O  estudo  da  mimesis  proposta  por  Aristóteles,  como  descrito  por  Beth  Brait  (1990, p. 35) mostra a preocupação que o autor possui não só com aquilo que é “imitado” ou  “refletido”  num  poema,  mas  também  com  a  própria  maneira  de  ser  do  poema  e  com  os  meios  utilizados  pelo  poeta  para  elaboração  de  sua  obra.  Aristóteles  aponta,  entre  outras  coisas, para dois aspectos essenciais: 

 

 O personagem como reflexo da pessoa humana. 

 O  personagem  como  construção,  cuja  existência  obedece  às  leis  particulares que regem o texto. 

 

Ao perceber o personagem como uma criatura que se baseia no real, é evidente  a  comparação  com  a  figura  humana.  E,  como  apontado  anteriormente  (Figura  4),  essa  criatura  pode  ser  moldada  com  base  nas  disposições  do  autor  e  no  uso  da  linguagem  que  utiliza.  Contanto,  as  teorias  que  envolvem  a  tentativa  de  definição  de  personagens  –  haja  vista a evolução da comunicação – sofreram expansões. O personagem como comparativo à  figura humana começou a ser estudado dentro de uma complexidade psicológica e também  de acordo com o uso das linguagens na comunicação. 

Na  elaboração  de  um  conceito  de  personagem,  as  teorias  aristotélicas  perduraram  até  pelos  meados  do  século  XVIII,  uma  vez  que  os  teóricos  que  tratavam  de  questões  ligadas  à  arte,  incluindo  a  problemática  personagem,  começaram  a  mudar  suas  perspectivas  e  começaram  a  considerar  Horácio7,  cuja  obra  propôs  uma  extensão  do  conceito  aristotélico  e  associa  o  aspecto  do  entretenimento,  inerente  da  literatura,  à  sua  função pedagógica. Horácio enfatiza a possibilidade de o personagem ser um modelo a ser  seguido, a mimesis funcionando em outra direção, o homem imitando a personagem, uma  proposição moralizante a mais no papel da personagem. (BRAIT, 1990, p. 35) Esta proposição  se dá ao comparativo com a figura humana, o personagem começa a servir de exemplo.           7 Poeta latino, lírico, satírico e filosófico, nascido em Venúsia, atual Venosa na Itália. Fonte:  <https://brasilescola.uol.com.br/biografia/quintus‐horatius.htm>. Acesso em mar. de 2019. 

Beth, em sua obra, A personagem (1990) asserta em um parágrafo uma metáfora  bastante  interessante;  com  ela  podemos  cruzar  as  teorias  de  definição  e  criação  de  personagens (character design) de maneira eficiente: 

 

Como  um  bruxo  que  vai  dosando  poções  que  se  misturam  num  mágico  caldeirão,  o  escritor  recorre  aos  artifícios  oferecidos  pelo  código  a  fim  de  engendrar  suas  criaturas.  Quer  elas  sejam  tiradas  de  sua  vivência  real  ou  imaginária, dos sonhos, dos pesadelos ou das mesquinharias do cotidiano, a  materialidade  desses  seres  só  pode  ser  atingida  através  de  um  jogo  de  linguagem  que  torne  tangível  a  sua  presença  e  sensíveis  os  seus  movimentos. (BRAIT, 1990, p. 52) 

 

Quando a autora se refere ao termo “escritor”, associamos o mesmo à figura do  orador. E dentro das teorias desta pesquisa temos o orador‐diretor, cujo ponto de vista vai  perpetrar  as  características  do  protagonista  do  filme  de  animação  que  analisamos,  assim  como a perspectiva de sua equipe, por ele orientada. Importante apontamento para a última  asserção  seria:  “a  sensibilidade  de  um  escritor,  a  sua  capacidade  de  enxergar  o  mundo  e  pinçar  nos  seus  movimentos  a  complexidade  dos  seres  que  o  habitam  realizam‐se  na  articulação verbal [trazendo para o contexto retórico, articulação textual]”. (BRAIT, 1990, p.  66) 

A autora ainda faz uma declaração que expressa a relação entre o texto criado e  elementos  a  serem  analisados,  “se  o  texto  é  o  produto  final  dessa  bruxaria,  ele  é  o  único  dado concreto capaz de fornecer os elementos utilizados pelo escritor para dar consistência  à sua criação e estimular as reações do leitor” (BRAIT, 1990, p. 52). Tal declaração mostra que  o texto produzido é uma importante fonte para que se estude a criação do personagem, nele  que encontramos os recursos e ingredientes dessa bruxaria. No âmbito desta pesquisa, é no  texto, mesmo que visual, que encontraremos as pistas para que entendamos a fase character  design (design de personagens). 

Por  fim,  para  entendermos  a  complexidade  que  se  dá  ao  se  construir  um  personagem, é relevante que frisemos que esta pesquisa se delimita a analisar somente os  textos  visuais  na  construção  dos  personagens  e  como  esses  textos  atuam  retoricamente.  Para que entendamos como o texto visual nos instrui, correlacionemos o mesmo ao processo  do character design e aos fundamentos da percepção visual no tópico que segue.