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3     O RANZINZA: COOPERAÇÃO ENTRE RETÓRICA E DESIGN

3.3     A construção do ethos do protagonista

3.3.1     Início do prólogo, Carl criança

Figura 23 ‐ Momentos da vida de Carl Fredricksen no exórdio do filme    Fonte: Compilação do autor feita com screenshots da animação mais a imagem da figura anterior.      Na figura 23, vemos que esses quatro momentos mostram o crescimento de Carl,  apresentado no prólogo. No momento 1, tem‐se Carl criança; no momento 2, Carl jovem; no  momento  3,  Carl  já  maduro  com  sua  esposa  Ellie;  e,  no  momento  4,  Carl  já  idoso  e  carrancudo.  Analisemos  os  designs  do  personagem  para  que  possamos  perceber  como  os  textos visuais foram elaborados para atender os objetivos do orador‐diretor. 

 

3.3.1    Início do prólogo, Carl criança  

 

Momento  1,  Carl  criança:  o  orador‐diretor  pretende  mostrar  a  vida  de  uma  criança tímida, porém sonhadora e cheia de aventuras.  

       

Figura 24 ‐ Carl criança    Fonte: Compilação do autor com screenshots do filme.    Para o personagem, nessa idade, o design foi estruturado da seguinte maneira:    3.3.1.1 Forma 

A  forma  básica  para  a  estruturação  do  design  é  o  círculo.  De  acordo  com  o  capítulo  sobre  character  design  e  percepção  visual,  tem‐se  a  forma  circular  como  artifício  para compor personagens fofos, amáveis e simpáticos. Bancroft já aponta: “Circles – evoke 

appealing,  good  characters  and  are  typically  used  to  connote  cute,  cuddly,  friendly  types.  Consider  Santa  Claus,  or  endearing,  fuzzy  animals”23.  (BANCROFT,  2006,  l.  500)  Nesse  viés,  Dondis  (1997,  p.  58)  também  afirma  que  ao  círculo  se  associa  à  infinitude,  à  calidez  e  à  proteção.  Para  fins  elucidativos,  demarcamos,  na  figura  a  seguir  (Figura  25),  uma  forma  circular no rosto do personagem na cor magenta.    Figura 25 ‐ Forma circular básica    Fonte: Análise do autor com screenshots de UP.          23 Círculos ‐ evocam personagens carismáticos, bons e são normalmente usados para conotar tipos amigáveis,  fofinhos e simpáticos. Considere Papai Noel ou animais fofinhos. (BANCROFT, 2006, l. 500, tradução nossa) 

  3.3.1.2 Escala  A escala relativa do personagem foi feita para que se configurasse uma proporção  infantil. A escala só pode ser percebida por meio da comparação. Vejamos uma cena em que  o cenário proporciona essa comparação.    Figura 26 ‐ Escala comparativa com o cenário    Fonte: Análise do autor com screenshots de UP.    A altura de Carl está evidenciada com o traçado magenta menor enquanto a casa  está evidenciada com o traço verde maior.     3.3.1.3 Variação e esqueleto estrutural  As formas circulares não são encontradas somente no rosto. Nota‐se também um  emprego majoritário de círculos e suas variações no design.    Figura 27 ‐ Variação e esqueleto estrutural, Carl criança    Fonte: Compilação do autor com screenshots do filme UP. 

 

Figura 28 ‐ Variação e esqueleto estrutural, formas circulares, Carl criança 

  Fonte: Análise do autor com screenshots do filme UP. 

 

Nas  duas  últimas  figuras  (Figuras  27  e  28),  tem‐se,  primeiro,  uma  amostra  de  cenas em que aparece o corpo do personagem de maneira que se possa analisar as formas  empregadas no esqueleto estrutural. Na imagem seguinte, tem‐se a indicação, com traços de  cor verde, da variação do uso das formas circulares em seu esqueleto estrutural: a barriga, o  chapéu  de  aviador,  os  óculos  de  proteção,  joelhos,  as  dobras  das  roupas  curtas  e  até  suas  botas, todos os elementos que usam a forma circular como base de design. Nesse aspecto da  variação  e  do  esqueleto  estrutural,  podemos  encontrar  as  figuras  retóricas,  como  exemplo  temos a repetição. Porém, elas serão explanadas e alocadas no aspecto estilo. Poderiam ser  analisadas  aqui,  mas,  por  uma  associação  conceitual  entre  função  retórica  e  recurso  estilístico, vamos analisá‐las no aspecto estilo do design dos personagens. 

 

3.3.1.4 Silhueta 

A  silhueta  de  Carl  quando  criança  é  bem  característica,  uma  vez  que  ele  foi  projetado  para  ser  todo  circular,  todo  redondo  a  fim  de  deixar  transparecer  suas  características de simpatia e graciosidade.             

Figura 29 ‐ Silhueta evidenciada, Carl criança 

  Fonte: Análise do autor com screenshots do filme UP. 

 

Evidencia‐se aqui, mais uma vez, o emprego das formas circulares. Sua silhueta é  composta principalmente pelo grande volume  circular, que é sua cabeça com um  capacete  de aviador. Percebe‐se a diferenciação da silhueta do personagem quando, em uma cena, se  mostra o protagonista de costas e ao lado de outro personagem. Apesar de aparecer bem no  início  do  filme,  já  é  fácil  de  reconhecer  o  protagonista  em  sua  tenra  idade  em  várias  situações, até pelo auxílio do próximo aspecto a ser analisado.  

 

3.3.1.5 Pose e postura 

Outro recurso que ajuda no reconhecimento do personagem. Nesse aspecto que  se  relaciona  com  o  comportamento  do  personagem,  nosso  protagonista  se  mostra  bem  peculiar. Na fase criança, ele simplesmente é muito tímido e não fala quase nada, além de  umas  interjeições.  Há  somente  alguma  manifestação  de  expressão  verbal  quando  já  está  velho, logo após o exórdio. Seu comportamento é evidenciado, no entanto, por uma fala de  outro personagem: Ellie, que comenta: “Você é muito caladão!”           

Figura 30 ‐ Cena em que Ellie evidencia o comportamento tímido do protagonista 

  Fonte: Screenshot do filme UP em 7’03”. 

 

A figura anterior ilustra o ocorrido, pois, com quase sete minutos de animação,  nosso  protagonista  não  pronunciou  uma  palavra  sequer.  Esse  comportamento  “caladão”  demonstra toda a timidez do personagem que, num intervalo de poucos minutos, pode se  revelar patente, como ilustrado nas figuras a seguir.    Figura 31 ‐ Cenas que comprovam o comportamento tímido de Carl quando criança    Fonte: Análise do autor com screenshots do filme.   

Temos  quatro  momentos  em  uma  única  sequência  em  que  a  timidez  de  Carl,  enquanto criança, pode ser confirmada por suas atitudes e poses. No momento 1 (Figura 31),  Carl se aventura a entrar em uma casa abandonada, movido por sua curiosidade aos gritos e  exclamações  familiares  que  havia  escutado  na  rua  enquanto  brincava  pelas  calçadas  do  bairro. Seus passos curtos e sua postura encurvada demonstram muito cuidado ao explorar.  No  momento  2  (Figura  31),  ele  se  encontra  no  plano  de  fundo  da  cena,  escondido,  observando  de  onde  vinha  toda  a  movimentação  ouvida  anteriormente.  No  momento  3  (Figura  31),  mesmo  sendo  abordado  de  forma  amistosa,  se  recusa  a  dar  a  mão  e  a  cumprimentar.  Seus  dedos  em  contato,  seu  olhar  baixo  evitando  olhar  diretamente  a  situação  estão  igualmente  retratados,  por  outro  ângulo.  No  momento  4  (Figura  31),  suas  movimentações  até  agora  no  filme  são  mais  limitadas  e  comedidas.  Essas  atitudes  –    movimentação,  passos  curtos,  olhar  indiretamente,  esconder‐se  –  ressaltam  seu  comportamento tímido quando criança.  

 

3.3.1.6 Estilo 

Sobre estilos de personagens de CG (computer graphics) Bancroft (2006, l. 1687)  aponta  “characters  can  have  more  textures,  shines,  and  highlights  to  them.  The  most 

attractive  CG  characters  are  the  simplest  ones,  with  their look enhanced  by  details  such  as  patterns on clothing”24. Percebe‐se essa estrutura simplificada em todo o filme UP, cujo estilo  é um aspecto consistente e persistente. Ele vai ser usado como aspecto geral da animação do  começo ao fim, na grande maioria das vezes.  

No caso de UP, buscou‐se inclusive o conceito de simplexity no estilo do filme de  animação. “That is the  art of simplifying an image down to its essence. But the  complexity 

that you layer on top of it – in texture, design, or detail – is masked by how simple the form is.  ‘Simplexity’  is  about  selective  detail”25(HAUSER,  2009,  p.  18),  testemunha  Ricky  Nierva, 

designer  produtor  do  filme.  Essa  citação  corrobora  a  ideia  de  simplificar  as  formas  e 

estruturas além de conferir mais fidelidade em texturas, como assertado por Tom Bancroft.  Outra citação que ajuda a explicar o estilo do design aplicado nos personagens é:          24 Os personagens podem ter mais texturas, brilhos e realces para eles. Os personagens mais atraentes da CG  são os mais simples, com sua aparência aprimorada por detalhes como padrões na roupa. (BANCROFT, 2006, l.  1687, tradução nossa)  25 Essa é a arte de simplificar uma imagem até sua essência. Mas a complexidade que você coloca sobre ela ‐ 

em  textura,  design  ou  detalhe  ‐  é  mascarada  pela  simplicidade  da  forma.  "Simplexity"  é  sobre  detalhes  seletivos. (HAUSER, 2009, p. 18, tradução nossa) 

 

For inspiration, Docter looked to a caricature artist whose work has graced  many  a  Broadway  and  Hollywood  poster.  ‘Al  Hirschfeld  was  brilliant  in  his  ability  to  distill  a  caricature  down  to  just  a  very  few  number  of  lines,  yet  there  is  so  much  more  there.  Not  only  in  terms  of  light  and  shadow,  but  detail and personality.26 (HAUSER, 2009, p. 18) 

 

Além  do  mais,  a  própria  Pixar,  empresa  produtora  do  filme,  propositalmente,  projeta  seus  personagens  para  serem  estilizados  a  ponto  de  deixar  subentendido  que  os  fatos  poderiam  ocorrer  somente  no  mundo  da  fantasia.  Assim,  o  filme  é  verossímil  com  a  realidade, porém somente parecido e não real. Palavras de Jonas Rivera da equipe de design  de UP “This is a story about a man who flies his house away with balloons. So there needed 

to  be  a  certain  amount  of  whimsy,  a  certain  amount  of  ‘once‐upon‐a‐time’  feeling  to  the  design”27.  (HAUSER,  2009,  p.  19)  O  uso  de  um  estilo  que  se  destaca  pela  simplicidade  das  formas e figurações vai ser empregado ao longo de todo o filme de animação. 

Ainda no que se refere a estilos, podemos trazer parte da teoria da retórica, que  versa  que  estilo  é  a  maneira  com  que  se  apresenta  um  texto,  independentemente  de  ser  verbal ou não verbal. E, dentro da retórica, temos um campo que se encaixa perfeitamente  nesse caso, o das figuras de retórica. Como assertado em capítulo anterior, citaremos apenas  as  figuras  pertinentes  à  pesquisa.  Aqui  no  design  de  Carl  criança,  podemos  notar  a  persistência de uma forma geométrica: o círculo. Como já descrito por Dondis (1997, p. 58),  ao  círculo  se  associa  à  infinitude,  à  calidez  e  à  proteção.  Essa  situação  cálida  e  despreocupada  se  refere  à  infância  e  à  persistência  da  aplicação  desta  forma  em  várias  partes do design do personagem, revelando uma figura retórica, a repetição.  

Por sua vez, a repetição é uma figura retórica de presença. E, pela conceituação,  “As figuras de presença têm por efeito tornar presente na consciência o objeto do discurso”.  (PERELMAN;  OLBRECHTS‐TYTECA,  2005,  p.  197)  Mais  especificamente  sobre  a  repetição  “têm  por  efeito  aumentar  o  sentimento  de  presença”.  (PERELMAN;  OLBRECHTS‐TYTECA,  2005,  p.  197)  Assim,  analisando  o  emprego  repetitivo  das  formas  circulares,  temos  um          26 Para inspiração, Docter procurou uma artista de caricaturas cujo trabalho agraciou muitos na Broadway e em  Hollywood. ‘Al Hirschfeld foi brilhante em sua capacidade de destilar uma caricatura para apenas um número  muito pequeno de linhas, mas há muito mais lá. Não só em termos de luz e sombra, mas também detalhe e  personalidade’. (HAUSER, 2009, p. 18, tradução nossa)  27 Esta é uma história sobre um homem que voa para longe com sua casa usando balões. Então, precisava haver  uma certa quantidade de capricho, uma certa quantidade de ‘era uma vez’ no design. (HAUSER, 2009, p. 19,  tradução nossa) 

reforço  do  conceito  de  calidez  e  segurança.  Algo  que,  somado  aos  acontecimentos  do  prólogo,    ajuda  na  interpretação  dos  fatos  e  no  entendimento  do  argumento:  uma  criança  feliz e tímida (Figuras 29 e 30). 

Agora,  tangenciando  os  conceitos  de  partes  do  discurso,  para  justificar  a  intencionalidade da clareza, estilo e vivacidade propostos por Reboul à elocução, usamos o  livro  The  art  of  Up  (2009),  pois  nele  encontram‐se  todos  os  estudos  de  personagens  e  linguagens  visuais  empregados  no  filme.  Além  disso,  no  livro  também  é  destacada  a  intencionalidade, por parte do diretor e toda a sua equipe, na produção dos textos visuais,  visando a melhor representar os objetivos do orador‐diretor. 

 

3.3.1.7 Paleta de cores 

Nesse  aspecto,  o  orador‐diretor,  junto  a  sua  equipe,  elaborou  uma  paleta  bem  viva  para  a  fase  criança  de  Carl.  Afinal,  significar  uma  infância  é  deixar  evidente  a  vida.  E,  para  isso,  é  necessário  que  se  usem  cores  vibrantes,  vivas  e  expansivas.  Mais  à  frente,  a  paleta de cores será uma ferramenta que vai demarcar momentos importantes no discurso  do  orador‐diretor.  Por  enquanto,  limitemo‐nos  a  mostrar  a  paleta  de  cores  empregada  na  infância do protagonista.     Figura 32 ‐ Paleta de cores empregada na infância de Carl    Fonte: Análise do autor com screenshots de UP.   

  Na Figura 32, há três exemplos de uso de cores vivas e saturadas na fase da  infância de Carl Fredricksen. As linhas em cor magenta indicam de onde foram extraídas as  amostras de cor. O uso das cores mais claras e brilhantes é muito maior que as cores mais  escuras ou neutras. As cores, quando não são quentes, são saturadas ao máximo para que  possam brilhar tanto quanto as quentes28. E, como visto no capítulo sobre cores, elas podem  ser  ferramentas  importantes  na  ambientação  das  cenas  dos  filmes.  Nessa  fase  da  vida  de  Carl, o objetivo do orador‐diretor era mostrar vida e felicidade, lançando mão, para tanto, da  vibração e da saturação das cores para que essa atmosfera fosse construída. 

 

Com  base  no  que  apresentamos  acima,  percebe‐se  que,  no  primeiro  momento  da vida de Carl, os designs foram elaborados para que se construísse, de modo verossímil, o 

ethos  de  uma  criança  “típica”,  com  sonhos  e  brincadeiras.  Esse  ethos  é  construído  ao  ser 

apresentado  um  personagem  com  estrutura  e  proporções  de  uma  criança,  com  roupas  de  um aviador, brincando de voar em um dirigível com um balão na mão. Suas formas básicas  são circulares: cabeça, nariz, olhos, boca, rosto, sapatos, mãos e dedinhos. 

No  que  se  refere  às  suas  cores,  elas  são  alegres  e  expansivas.  E  o  garoto  apresenta  um  comportamento  tímido  ao  se  esconder  e  evitar  interagir  com  outro  personagem, Ellie, a garota aventureira e espevitada. Mas, de acordo com que o prólogo é  apresentado, Carl criança vai se entrosando com o personagem de Ellie e logo surge um lindo  e puro sentimento. O adjetivo “puro” é usado pelo fato de que reside na doxa a informação  de  que  sentimentos  infantis  são  sinceros  e  puros.  E  tudo  o  que  os  dois  vão  fazendo  é  encarado dessa maneira: brincar, aventurar‐se e adquirir sonhos. Somando as características  anteriores, desenhadas ou atuadas, elabora‐se um design que colabore para a construção de  um ethos infantil, puro, cândido e deveras tímido.