1 RETÓRICA DESBRAVADA
1.1 O tripé retórico
1.1.2 O pathos
1.1.2.1 Doxa e verossímil
1.1.2.1 Doxa e verossímil
Tratando‐se de paixões despertadas e também de juízo e decisão do auditório, faz‐se importante que tenhamos um subitem que trate dos valores que um auditório possa possuir e também dos locais de valores.
Como alegado por Meyer (2007, p. 39, grifo do autor): “O páthos é o conjunto de valores implícitos das respostas fora de questão, que alimentam as indagações que um indivíduo considera como pertinentes”.
Ainda de acordo com Michel Meyer (1998 apud FERREIRA, 2015, p. 23): “A paixão é a opinião que a acompanha é o único juiz. Pronunciamo‐nos em função daquilo que sentimos”. Mais uma vez, é apontada a relação entre auditório, pathos, paixão.
Tendo como ponto de partida o funcionamento do processo persuasivo, é certo que, em algum momento, exista um posicionamento em relação a uma discussão. É sensato também dizer que os costumes e culturas em uma determinada época exercem influência sobre o juízo do auditório, retificando suas decisões e cedendo aval aos argumentos colocados. Isso seria a doxa: “Reunião dos pontos de vista que uma determinada sociedade elabora numa dada circunstância histórica, julgando ser uma ação evidente; contudo, para a filosofia, isso seria uma crença sem comprovação”.2
É inerente ao processo argumentativo que haja uma tensão retórica em relação à doxa. Essa tensão consiste na possibilidade dos valores estabelecidos pela doxa serem reorganizados ou contraditos. Afinal, se não houvesse o embate, não haveria retórica.
2 [DOXA]. In: DICIO, Dicionário Online de Português. Porto: 7Graus, 2018. Disponível em: [https://www.dicio.com.br/doxa/]. Acesso em: 15/10/2018.
Tratar de uma decisão final pode requerer muita reflexão. A tomada de decisão só poderá ser efetuada a partir do momento que se toma como uma possível verdade uma das alternativas apresentadas no processo argumentativo do ato retórico. Nesse caso, não se trata realmente do verídico, e sim do verossímil, pois cabe à retórica o que demanda embate e discussão.
Para tanto, um orador competente consegue adesão de um auditório argumentando sobre algo menos ou mais verossímil. Dentro dessas colocações, define‐se como verossímil o que é plausível de confiança ou o que possui uma confiança presumida. Vale lembrar, como descrito por Reboul (2004), que, ao usar premissas verossímeis, o orador apela para a confiança do auditório, para a sua presunção.
Em todo caso, a presunção varia segundo os auditórios e as ideologias. Assim, para um conservador, o costume não precisa ser justificado, e sim a mudança. Para um liberal, o que não compete justificar é a liberdade, mas sim a coerção. Para um socialista, a igualdade é de direito, cumprindo justificar a desigualdade. O orador, portanto, precisa conhecer as presunções de seu auditório. (REBOUL, 2004, p. 165)
Contudo, o orador competente sempre deverá levar em consideração o pathos, as paixões do auditório antes de tomar tal decisão; isto é: se elas exprimem o aspecto subjetivo de um problema.
Encontrar as questões implicadas no páthos é tirar partido dos valores do auditório, da hierarquia do preferível, que é a sua. É o que o enraivece, o que ele aprecia, o que ele detesta, o que ele despreza, ou contra o que ele se indigna, o que ele deseja, e assim por diante, que fazem o páthos do auditório a dimensão retórica da interlocução. (MEYER, 2007, p. 39)
No trecho acima, extraído da obra A retórica, percebe‐se o uso dos termos “valores” e “hierarquia do preferível”. Tal ocorrência se dá pela associação entre o que seria
doxa e o pathos, o que seria o campo de valores universais e o campo das paixões que
ordenam tais valores. Por esse fato, esses valores variam de acordo com o auditório. Entretanto, uma questão levantada por (REBOUL, 2004, p. 165) carece ser apresentada: “Seria então preciso renunciar aos juízos de valor para atingir a objetividade? Nos domínios da argumentação […] é impossível, pois neles todas as questões (inocente ou culpado; útil ou nocivo; belo ou feio; bem ou mal) são formuladas em termos de valor”. Logo, é preciso
considerar que, como os fatos, os valores são presumíveis, há quem imagine que levar um tiro em seu pé seja algo ruim, até oferecer‐lhe todas as riquezas do mundo para escolher entre o direito ou o esquerdo. Nessa colocação, é evidente que alguns valores e fatos são totalmente presumíveis e também relativos, apesar de ser um exemplo esdrúxulo. Corroborando esse ponto de vista, Perelman e Olbrechts‐Tyteca (2005) afirmam que:
Numa discussão, não podemos subtrair‐nos ao valor negando‐o pura e simplesmente. Assim como, se contestamos que algo seja um fato, temos de dar as razões dessa alegação [...]assim também, quando se trata de um valor, podemos desqualificá‐lo, subordiná‐lo a outros ou interpretá‐lo, mas não podemos, em bloco, rejeitar todos os valores: estaríamos, então, no domínio da força e não mais no da discussão. (PERELMAN; OLBRECHTS‐ TYTECA, 2005, p. 85)
Ao ignorar os valores do auditório, não resta, senão, a imposição, uma ditadura, uma visão unilateral, termos e expressões completamente opostos à prática da Retórica. Pois que nesse joguete estratégico de preponderar os valores do auditório com o fim de conseguir adesão, faz‐se necessária a distinção de valores.
O orador competente, em princípio, exprime‐se em consonância com as ideias do interlocutor, quer para concordar, quer para opor‐se às teses do outro. Precisa também levar em conta o presente, o passado e o futuro da causa que defende, pois o auditório assume um papel preponderante nas decisões e envolve, no decidir, múltiplos fatores de qualquer natureza, tais como a moral, os valores em vigor, o bom‐senso, os interesses pessoais e de grupo, a intensidade das paixões, a capacidade de discernimento daquilo que, na situação proposta, é conveniente, justo, legal, útil, nocivo, vergonhoso ou honrável. (FERREIRA, 2015, p. 23)
Existem dois tipos de valores: os abstratos e os concretos ‐ segundo Perelman e Olbrechts‐Tyteca ‐ os quais afirmam: “a argumentação sobre os valores necessita de uma distinção, que julgamos fundamental e foi muito menosprezada, entre valores abstratos, tais como a justiça ou a veracidade, e valores concretos, tais como a França ou a Igreja”. (PERELMAN; OLBRECHTS‐TYTECA, 2005, p. 87)
Enquanto na posição de auditório, faz‐se necessário o uso dos valores para que se justifique alguma escolha. Esses valores, pelo Tratado da Argumentação, são chamados de lugares do preferível, os quais “expressam um consenso generalíssimo sobre o meio de estabelecer o valor de uma coisa”. (REBOUL, 2004, p. 166)
Os valores seriam classificações funcionais dos argumentos. Esses valores sugerem a fundamentação dos valores e hierarquias instituídas no auditório, sendo que o uso dessas classificações ajudaria na intensificação da adesão. A esse respeito, Reboul comenta sobre três divisões de lugares de valor e conclui dizendo que alguns outros lugares derivariam destes mesmo três, entretanto não os define. Já Perelman e Olbrechts‐Tyteca fazem a mesma divisão dos três como sendo também principais, mas concluem com uma quarta classificação, outros lugares.
Para fins de esclarecimento, faremos uma breve explanação utilizando as teorias de Reboul (2004, p. 166) e complementaremos com a quarta classificação de Perelman e Olbrechts‐Tyteca (2005, p. 105‐107).
a) Lugares da quantidade: são valores que se apoiam nas ideias de número, ou seja, de volume quantitativo. Quanto menos mal, melhor; quanto mais bens, melhor ainda. Comumente, estes lugares são também usados como referencial para base de alguma atitude. Por exemplo, na frase: “Como algo é feito por todos, deve ser o certo!”. Na dúvida se esse algo é certo ou errado, o orador, autor da frase, usa o lugar de quantidade para que se instaure no auditório uma possibilidade de resposta.
b) Lugares de qualidade: sua funcionalidade acontece pelo contrário do quantitativo, valendo‐se da importância do único ou raro. Isto é: o que possui valor é o original, a normalidade, por sua vez, já não tem valor. O verdadeiro conceito de metais e pedras preciosas, quanto mais raro mais valorizado.
c) Lugares da unidade: faz‐se o uso do valor do absoluto, considerando‐se mais valoroso o trabalho executado por uma única pessoa do que por grupos e multidões. Ou seja, tem maior mérito quem realiza algo sozinho.
d) Outros lugares: levando em consideração a importância da classificação dos argumentos dentro da etapa da criação no processo argumentativo, ainda é conveniente que se mostrem outras classificações além das três já citadas. Ainda, não é o caso de ter‐se apenas uma ou duas classificações com a finalidade de facilitar entendimentos e ter‐se menos classificações. Pelo contrário, requer‐se que sejam expostas sempre, pois são classificações que se apresentam úteis, por mais que suas definições não sejam tão empregadas quanto as anteriores. Para tanto, Chaïm e Lucie (2004) justificam:
Poder‐se ia reduzir todos os lugares aos da quantidade ou da qualidade, ou mesmo em reduzir todos os lugares aos de única espécie ‐ teremos a ocasião de tratar dessas tentativas ‐, mas parece‐nos mais útil, dado o papel que representam e continuam a representar como ponto de partida das argumentações, consagrar algumas exposições aos lugares da ordem, do existente, da essência e da pessoa. (PERELMAN; OLBRECHTS‐TYTECA, 2004, p. 105) Ainda que definições acerca dos lugares de valor tenham sido feitas, os autores citaram e acharam importante que fossem definidos ainda mais alguns lugares, quais sejam: d1) lugares da ordem: firmam‐se na supremacia do anterior, o que veio primeiro, preposto. A causa é, por si só, a justificativa dos meios e dos fins, levando à reflexão do pensamento existencial, dando importância ao futuro e buscando remontar as origens, as fontes originais.
d2) lugares do existente: alocam‐se na afirmação do que já é concreto e existente sobre o possível ou eventual.
d3) Lugares da essência: distinguem argumentos que usam a essência como base. Para tanto, atribui‐se valor maior, por meio de comparação, ao que se encaixa melhor em uma determinada instância ou característica. Na análise entre dois indivíduos concretos, o que se apresentar melhor definido em um determinado parâmetro é mais valorizado.
d4) Lugares derivados aos valores da pessoa: são lugares subordinados aos traços morais, éticos, dignos e meritosos de outrem ou à sua autonomia.
Os lugares de valor são uma forma estrutural de classificar os argumentos. Aqui neste projeto foram alocados junto com as paixões, por sua relação intrínseca com o auditório. Essa classificação funciona como instrumental ao orador que almeja maior eficiência no ato retórico.
Firmando sobre pathos, pode‐se determinar que o ato retórico presume a dialogia e o embate. A exposição de argumentos ao auditório fatalmente vai obedecer a essa premissa e acarretará na produção de alguma resposta. Eis o pathos: a instância do tripé retórico que se relaciona ao auditório. Definido como paixões, pois as paixões que fazem com que se mude de ideia, com que se aceite ou reafirme uma proposição.
Desse modo, o pathos é influenciado pelos valores que o auditório possui, sendo que o grupo desses valores, quando comuns e padronizados em relação à cultura de um determinado tempo, está associado à doxa. Esta, por sua vez, estabelece uma hierarquia para esses valores que a constituem. Porém essa hierarquia pode ser modificada com argumentos que estabelecem uma nova organização, alterando e construindo um pathos favorável ou não à tese que o orador apresenta. Por fim, a terceira e última instância do tripé retórico a ser conceituada é o logos, instância que se relaciona com o discurso.