1 RETÓRICA DESBRAVADA
1.2 Gêneros retóricos
1.2 Gêneros retóricos
Aristóteles, em seus estudos sobre a Retórica, distinguiu três grandes gêneros retóricos no discurso. Não coincidentemente, o mesmo número de elementos que compõem o processo discursivo, pois relaciona‐os com um tipo específico de gênero retórico. Ou seja, na busca de estruturar uma ciência que estude a argumentação, definiu que os discursos proferidos podem se adequar às três instâncias do tripé retórico, sendo que cada gênero de discurso pode ser classificado de acordo com o papel desempenhado por cada um dos componentes do tripé retórico.
Pode‐se fazer também, de modo mais filosófico, tal como descrito por Meyer (2007), uma equivalência dos três componentes do dispositivo discursivo com problemas que o homem coloca para si desde sempre, sendo o orador/ethos relacionado ao “eu”, o auditório/pathos ao “outro”, e o discurso/logos ao “mundo”.
Com a retórica, o eu, o outro e o mundo são implicados em uma interrogação em que o outro é solicitado como auditório, como juiz e como interlocutor, posto que é instado a responder e a negociar. Com a ciência, dada a obrigação de objetividade, não deveria haver tripla dimensão, mas a vida em sociedade é feita de forma tal que as opiniões são múltiplas, problemáticas, e é essa problematicidade que a retórica se esforça para afrontar. (MEYER, 2007, p. 30)
Vista a citação de Meyer, e tangenciando a problemática, pode‐se afirmar que o que limita a Retórica é tão somente os tipos de problemática que ela embate. Como na literatura, a retórica define gêneros com as questões que são tratadas e colocadas para o auditório para que haja uma resposta, uma consequência a respeito de um discurso apresentado. Portanto, os três grandes gêneros retóricos se definem na gradação do tratamento das respostas dadas a discursos expostos. Os gêneros retóricos do discurso são definidos a partir da classificação das respostas que são obtidas do auditório, ou seja, de acordo com o tipo de resposta pretendida em relação ao tipo de discurso feito se obtém a classificação: epidíctico, judiciário ou deliberativo.
No gênero epidíctico, o auditório desempenha um papel específico, suas respostas são precisas, não havendo divagação entre uma ou outra, promovendo aclamação ou censura para o que é decidido ser belo ou feio, virtuoso ou vicioso. Já no gênero
judiciário, o auditório se manifesta com uma reposta em que se define o que seria justo ou
injusto em determinado embate. E, por fim, no gênero deliberativo, o auditório define o que é útil ou prejudicial. A esse respeito, Meyer (2007) explica reunindo os três conceitos de instância e componentes do dispositivo argumentativo com os três tipos de gênero de discurso:
Esses três gêneros têm todos um componente de ethos, de páthos e de lógos. O auditório julga se é belo (epidíctico), justo (judiciário) ou útil (deliberativo). Temos aí o páthos, quer dizer, as reações da alma, das paixões, que são ativadas. O orador, ou ethos, intervém igualmente nesses três gêneros de modo distinto, pois defende, ornamenta ou delibera. Quanto ao lógos, nos três casos ele repousa sobre o possível: o que teria sido possível, o que o é, e o que será. (MEYER, 2007, p. 29) O quadro 1 organiza e relaciona os gêneros retóricos com o auditório, o tempo, a intenção e o objeto. Na linha “auditório”, são apontadas as funções que o auditório assume ao reagir a um discurso. Já na linha “tempo”, faz‐se uma relação entre o tempo em que os fatos do discurso são tratados. Na linha “intenção”, descreve‐se o modo que o auditório atua. E, por fim, na linha “objeto”, relaciona‐se o predicado que o auditório aplica como possível resposta ao discurso retórico.
Quadro 1 – Os três gêneros do discurso e algumas particularidades
Discurso Deliberativo Discurso Judicial Discurso Epidíctico
Auditório Age como assembleia Age como juiz Age como espectadores
em um conselho
Tempo Futuro Passado Presente
Intenção Aconselhar/Dissuadir Acusar/Defender Elogiar/Censurar
Objeto Conveniente/prejudicial Justo/Injusto Virtude/Vício
Belo/Feio Fonte: elaborado pelo autor
Para tanto, em um discurso judicial trata‐se de algo do passado em que o auditório se comporta como juiz atribuindo ser justo ou injusto a resposta para o embate colocado, acusando ou defendendo, condenando ou absolvendo. Assim como nos inúmeros júris pelo mundo afora, literalmente condenando ou absolvendo. Ou, ainda, como em uma conversa de bar entre amigos em uma calorosa discussão sobre a inocência ou não por alguém condenado pela justiça.
Por sua vez, o discurso deliberativo trata de algo do futuro. Seu auditório age como membros de uma assembleia aconselhando ou dissuadindo e constatando como conveniente ou prejudicial, útil ou nocivo. Exatamente como ocorre nas reuniões de condomínio, que visam a tomar decisões em relação ao bem comum dos moradores do conglomerado.
Já o discurso epidíctico trata de algo do presente, cujo auditório se coloca como espectador de um conselho, elogiando ou censurando, definindo‐o como virtuoso ou vicioso, belo ou feio. Normalmente em uma apresentação de cinema, teatro ou show em que é apresentado conteúdo artístico, que também pode ser considerado um discurso, os espectadores apreciam o conteúdo definindo‐o como belo ou não. É justamente neste gênero que se classifica o corpus dessa pesquisa: o epidíctico. O filme de animação –
discurso – é apresentado aos espectadores – auditório – no tempo presente, pelo orador – diretor. E o auditório, por sua vez, assume o papel de conselho, elogiando ou censurando, o
Ainda sobre os gêneros como um todo, é de valor que se note que, como apontado por Aristóteles, os gêneros retóricos não são absolutos e podem se sobrepor. Como Meyer (2007, p. 30) disse: “Invocamos o justo em política, ou o que é útil ao bem comum em direito, o que torna pouco defensável essa tipologia das questões retóricas”.
É de bom proveito que, já que o posicionamento do auditório foi objeto dos parágrafos anteriores, se siga com algumas de suas implicações. O conceito que deu abertura para a definição de auditório foi um conceito aristotélico, em que se notava a eficiência de um discurso para certos públicos e para outros não. Nesse sentido, Aristóteles classificava o auditório por idade ou fortuna ‐ segue observação feita por Perelman e Olbrechts‐Tyteca (2005):
Foi em sua Retórica que Aristóteles, ao falar de auditórios classificados conforme idade e fortuna, inseriu muitas descrições argutas e sempre válidas da psicologia diferencial. Cícero demonstra que convém falar de modo diferente à espécie de homens “ignorante e grosseira, que sempre prefere o útil ao honesto” e à “outra esclarecida e culta, que põe dignidade moral acima de tudo.” (PERELMAN e OLBRECHTS‐TYTECA, 2005, p. 23)
O Tratado da Argumentação (2005) de Perelman e Olbrechts‐Tyteca considera o auditório como sendo diverso e não se limita ao exame de técnicas de discurso público a uma multidão não especializada, uma vez que o discurso retórico, em seu objetivo de persuadir, sempre se apresenta em uma linguagem comum ou em uma linguagem comum adaptada, de acordo com a situação e com o auditório presumido. Nessa perspectiva, discorrem os autores:
A argumentação efetiva tem de conceber o auditório presumido tão próximo quanto o possível da realidade. Uma imagem inadequada do auditório, resultante da ignorância ou de um concurso imprevisto de circunstâncias, pode ter as mais desagradáveis consequências. Uma argumentação considerada persuasiva pode vir a ter um efeito revulsivo sobre um auditório para o qual as razões pró são, de fato, razões contra. (PERELMAN; OLBRECHTS‐TYTECA, 2005, p. 22)
Aprofundando no conceito de auditórios, os autores ainda fazem o comparativo entre a individualidade e a coletividade, no prisma de que dentro de uma coletividade as individualidades ainda existem e não devem ser ignoradas. Caracterizando uma expansão
dos conceitos básicos de auditório que Aristóteles presumiu e referendando este fato no Tratada da Argumentação (2005), Perelman e Olbrechts‐Tyteca advogam:
E o que vale para cada ouvinte particular não é menos válido para os auditórios, em seu conjunto, a tal ponto que os teóricos da retórica acreditaram poder distinguir gêneros oratórios pelo papel cumprido pelo auditório a que se dirige o discurso. (PERELMAN; OLBRECHTS‐TYTECA, 2005, p. 24)
Observa‐se que a importância do auditório é extrema; por isso é necessário que o auditório seja levado em consideração pelo orador que objetiva a eficiência retórica. Assim, para melhor se preparar e conseguir maiores chances de sucesso, os autores Perelman e Olbrechts‐Tyteca apresentaram a definição de auditório particular e auditório universal, definindo também um auditório reflexivo, em que o orador discursa para ele mesmo em seu íntimo.
Os conceitos de auditório se pautam na qualificação e na aplicabilidade do discurso. Portanto, o auditório universal vem do conceito generalizante de todos os seres racionais que serão expostos a um discurso, uma maioria que se admite ter os mesmos, ou mais próximos possíveis, conjunto de conceitos e valores. A esse respeito, Chaïm e Lucie descrevem em sua obra: “O auditório universal é constituído por cada qual a partir do que se sabe de seus semelhantes, de modo a transcender as poucas oposições de que tem consciência”. (PERELMAN; OLBRECHTS‐TYTECA, 2005, p. 37)
Já auditório particular alude ao conceito de auditório que seria composto por membros que possuem uma determinada especialidade ou característica em comum, diferindo dos valores universais. Da citação a seguir, podemos depreender a definição dos auditórios: É, portanto, a natureza do auditório ao qual alguns argumentos podem ser submetidos com sucesso que determina em ampla medida tanto o aspecto que assumirão as argumentações quanto o caráter, o alcance que lhes serão atribuídos. Como imaginaremos os auditórios aos quais é atribuído o papel normativo que permite decidir da natureza convincente de uma argumentação? Encontramos três espécies de auditórios, considerados privilegiados a esse respeito, tanto na prática corrente como no pensamento filosófico. O primeiro, constituído pela humanidade inteira, ou pelo menos por todos os homens adultos e normais, que chamaremos de auditório universal, o segundo formado, no diálogo, unicamente pelo interlocutor a quem se dirige; o terceiro, enfim, constituído pelo próprio
sujeito, quando ele delibera ou figura as razões de seus atos. Digamos de imediato que somente quando o homem às voltas consigo mesmo e o interlocutor do diálogo são considerados encarnação do auditório universal é que adquirem o privilégio filosófico confiado à razão, em virtude do qual a argumentação a eles dirigida foi amiúde assimilada a um discurso lógico. (PERELMAN; OLBRECHTS‐TYTECA, 2005, p. 33) Por fim, o auditório precisa ser presumido e definido pelo orador que almeja o sucesso na persuasão. Nesse sentido, as definições de Perelman e Olbrechts‐Tyteca trazem o objetivo de auxiliar o orador nesse aspecto, visto que a pluralidade de um auditório ou a sua especialização definirão o trajeto no qual o orador discursará. Seguindo o conceito de trajeto do orador, os autores associam a importância do gênero do discurso com as definições de auditórios. Para tanto, dedicam um tópico somente para o gênero epidíctico, pela maior importância que vários estudiosos, inclusive Aristóteles, concediam a tal gênero. Na sequência desta dissertação, abordaremos o gênero epidíctico por tamanha influência nesta pesquisa, sendo o gênero ao qual é classificado o discurso que compõe seu corpus e que será analisado em capítulo específico.
Essa asserção provém da relação entre a função básica do auditório ‐ um dos parâmetros da classificação dos gêneros e a adesão que se almeja obter. No gênero epidíctico em que o auditório age como espectador – aquele que assiste a um espetáculo –, o orador o presume como universal, usando este gênero para intensificar a adesão do auditório e trabalhando com o conjunto de valores comuns que pertencem aos espectadores. Assim, o orador acaba por tentar usar em seu discurso não somente o seu ponto de vista, mas o de todo o auditório, pois leva em consideração um conjunto comum de traços culturais ou ideologias.
Em se tratando do filme de animação, de maneira preponderante, ele se enquadra no gênero epidíctico, especialmente os filmes narrativos e com função de entretenimento. “O orador, nesse gênero, não defende nem ataca, ele promove valores.” (PERELMAN; OLBRECHTS‐TYTECA, 2005, p. 58)
Por meio de seu discurso no filme, o orador‐diretor tenta angariar a adesão do público, fazer com que seu auditório se emocione e se envolva com a narrativa. Para tanto, faz uso de um conjunto de valores comuns.
Portanto, as definições de auditório e suas relações com os gêneros do discurso são importantes para que as análises deste projeto sejam executadas, por demonstrarem
que os valores almejados pelo orador‐diretor são valores que se supõem pertencer ao auditório, auditório universal.