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1  RETÓRICA DESBRAVADA

1.4    O sistema retórico

1.4.2  Disposição

1.4.2.1    Partes do discurso

A disposição tem três principais funções, nas quais sua existência se fundamenta.  A  primeira  delas  é  a  função  econômica,  em  que  se  aponta  a  macroestrutura  textual.  Macroestrutura, nesse sentido, refere‐se à coesão e à coerência dos argumentos que foram  organizados  pelo  orador;  ou  seja,  está  relacionada  à  sequência  de  argumentos  elaborada  dentro  de  um  discurso.  Já  a  segunda  função  encerra,  em  si  mesma,  o  fato  de  que  a 

disposição é um argumento. Isso significa que, além de indicar o caminho pelo qual o orador  deseja que o auditório percorra, funciona, inclusive, como um artifício estratégico. E, por fim,  a terceira e última função, a heurística, está caracterizada na maneira progressiva com que o  orador vai orientando o auditório de acordo com sua estratégia. Seria, pois, a progressão do  raciocínio ocasionada pela justaposição dos argumentos do orador espelhada nas respostas  conseguidas junto ao auditório.  Aristóteles defendia a ideia de que os argumentos fracos  deveriam preceder os  argumentos fortes, deixando o argumento mais forte sempre para o final. A essa ordem de  argumentos  deu‐se  o  nome  de  ordem  Nestoriana  ‐  associação  referente  ao  Imperador  Nestor,  conhecido  por  sua  sabedoria.  Para  entendermos  melhor  essas  elucubrações  sobre  ordens, conheçamos as partes do discurso. 

   

1.4.2.1   Partes do discurso 

 

Ao  se  tratar  da  disposição,  impossível  não  fazer  menção  às  etapas  do  discurso.  Como  já  apontado,  a  disposição  é  a  etapa  de  organização  dos  argumentos  no  discurso  e  é  indispensável conhecer essa composição. 

Por  ser  uma  etapa  determinante  para  o  sucesso  do  orador  na  adesão  do  auditório  à  sua  tese,  Perelman  (1993,  p.  159)  defende  que  “A  ordem  de  apresentação  dos  argumentos  modifica  as  condições  da  sua  aceitação”.  E,  como  se  fala  em  ordem  acertada,  estratégia e eficiência do discurso são consequências para que haja uma divisão dessa etapa.  Tal  divisão  existe  justamente  para  que  se  consiga  controle  maior  e  também  uma  estrutura  analítica dessa fase do processo discursivo. As divisões da disposição podem variar, de autor 

para  autor,  de  duas  até  sete  partes,  sendo,  porém,  mais  comumente  dividida  em  quatro  partes pela maioria dos autores: exórdio, narração, confirmação e peroração. Cabe comentar  sobre cada uma delas. 

O  exórdio  ou  proêmio  é  uma  introdução  de  um  discurso,  é  nele  que  o  orador  consegue a atenção do auditório e cria um terreno favorável à apresentação de sua tese.    

O  exórdio  (prooimion):  é  introdução  de  um  discurso  retórico,  o  momento  em que o orador estabelece identificação com o auditório por meio de um  conselho, um elogio, uma censura, conforme o gênero do texto em causa. É  utilizado para dar vontade de ler ou escutar um orador. (FERREIRA, 2015, p.  112)    Sendo o exórdio  o primeiro contato direto do orador com o auditório, é sabido  que é nesse momento que o ethos e o pathos são modificados/construídos. Seria, portanto,  imprudência do orador não utilizar essas informações a seu favor. Dessa maneira, podem‐se  traçar objetivos para o exórdio, os quais diminuem a distância entre o orador e o auditório,  podendo ser listados em três: benevolência do auditório; atenção do auditório; e docilidade  do auditório.   Uma vez que a premissa do ato retórico é a de que a distância entre os espíritos  seja reduzida e a persuasão alcançada, é de grande importância que o auditório esteja apto a  escutar  e  a  receber  informação,  compreendendo‐a.  Chaïm  Perelman  (1993,  p.  159)  expõe:  “Para  Aristóteles,  certos  exórdios  assemelham‐se  a  prelúdios  musicais,  mas  o  seu  papel  essencial,  na  maior  parte  dos  casos,  é  funcional:  a  sua  finalidade  é  a  de  suscitar  a  benevolência e o interesse do auditório, de bem dispor relativamente ao orador.”  

É sabido, pois, que as condições e as circunstâncias em que o texto é exposto ao  auditório  influenciam  na  eficácia  dos  argumentos  que  serão  apresentados.  Dos  objetivos  dados ao exórdio se fala em auditório dócil. Dócil, pois, que assimilar e conceber precisam  ser realizados pelo auditório. O exórdio, então, precisa ser célere e o quanto sucinto possível  sobre  a  questão  abordada  ou  a  tese  a  se  defender.  Citando  Reboul  (2004,  p.  55):  “Dócil  significa  em  situação  de  aprender  e  compreender;  por  isso,  é  preciso  fazer  uma  exposição  clara e breve da questão que vai ser tratada, ou ainda da tese que vai tentar provar”.  

Ainda, nos objetivos também se fala em auditório atento. A atenção do auditório  também  é  chave  para  a  realização  da  compreensão,  uma  vez  que,  se  o  tema  for  muito 

distante ou se for apresentado de forma errônea, os outros dois objetivos do exórdio ficam  comprometidos ou sobrecarregados.  

Bem  como  a  benevolência,  citada  também  como  objetivo  do  exórdio,  refere‐se  ao ethos e ao pathos em sua relação direta. Ethos por parte do orador, que precisa de uma  situação favorável pelo que almeja apresentar ao auditório. Pathos, pelo que o orador deseja  despertar  em  seu  auditório  para  que  obtenha  resposta  positiva  na  situação  de  atenção  e  compreensão do texto. 

Desse  modo,  tomando‐os  como  objetivos,  o  orador  eficaz  utiliza  de  forma  positiva  seu  exórdio  do  discurso,  inclusive  suprimindo‐o  caso  julgue  necessário  e  as  circunstâncias do ato retórico pareçam favoráveis. 

Das  quatro  etapas  listadas,  a  segunda  é  a  narração  (diegésis).  Nessa  etapa,  o  orador  expõe  fatos;  e  o  logos  se  sobrepõe  em  relação  aos  outros  dois  elementos  do  tripé  retórico, o pathos e o ethos.  

 

A narração (diegésis) é a exposição dos fatos referentes à causa. Assinala o  partido que o orador irá tomar, marca a escolha de um ponto de vista que  será defendido nas demais partes. Ressalta‐se o logos, pois, aqui, as provas  são  colocadas:  enunciam‐se  o  fato  com  suas  causas  (judiciário),  dão‐se  exemplos  (deliberativo),  ilustra‐se  o  texto  com  episódios  que  ressaltem  qualidades (epidíctico). (FERREIRA, 2015, p. 113) 

 

Na  fase  diegética,  é  necessário  que  o  orador  seja  sucinto,  objetivo  e  confiável.  Nesse  viés,  Reboul  (2004,  p.  56)  advoga:  “E  é  na  narração  que  o  logos  supera  o  ethos  e  o 

pathos. Para ser eficaz, deve ter três qualidades: clareza, brevidade e credibilidade”.  

Ser  claro  na  narrativa  é  ser  organizado  na  estrutura  da  apresentação dos  fatos.  Normalmente de forma cronológica, uma vez que a narrativa se relaciona com o tempo, com  a ordem com que os fatos se deram. Existe também o uso do recurso de flashback, que se  lança  no  uso  de  fatos  passados  para  ressaltar  ou  relembrar  ocorridos  que  já  se  passaram  inseridos no meio da narrativa.  

Ser breve é ser objetivo. Não dispor na narrativa episódios que não serão úteis  ou  tirarão  o  foco  da  exposição,  mantendo  o  equilíbrio  entre  a  economia  e  a  dissipação  de  fatos dentro da narrativa; a moderação que culminará na quantidade de detalhes expostos  suficientes para o entendimento do auditório.  

Ser crível é trabalhar com a verossimilhança dos fatos. É a construção do ethos  do orador para obter afinidade com o auditório de modo a ter valor e credibilidade enquanto  expõe  o  que  sabe  sobre  a  tese.  De  maneira  lógica,  percebe‐se  que  a  narrativa  tem  maior  participação  nos  gêneros  judiciário  e  epidíctico  de  discurso.  Já  no  gênero  deliberativo,  ela  atua  quase  que  somente  como  exemplificação  por  se  tratar  de  fatos  sem  consequências  definidas.   A próxima parte é a confirmação ou pisteis, que é considerada como a parte mais  densa do discurso, por se tratar da refutação dos argumentos adversários. Nela se colocam  em julgamento as provas que estruturam os argumentos e fatos apresentados na narração,  seja do orador, seja do adversário. A confirmação funciona como sedimentação do logos. E  ainda não obstante a fase narração pode se aglutinar com a confirmação se a estrutura e a  estratégia  assim  o  permitirem.  Falando  de  estratégia,  Reboul  (2004,  p.58)  lembra  o  que  Quintiliano (II, 13,7) disse: “impor um planotipo ao orador é tão estúpido quanto impor uma  estratégia‐tipo a um general! No fundo, pouco importa em que ordem o general e o orador  atingem seus objetivos, o importante é que os atinjam”.  

No  entanto,  a  questão  estratégica  na  ordem  em  que  se  apresentam  os  argumentos  vai  mais  além.  Perelman  e  Olbrechts‐Tyteca,  a  esse  respeito,  declaram  que  a  ordem  dos  argumentos  é  relativa.  A  importância  da  ordem  dos  argumentos  é  baseada  no  que já foi e como foi apresentado, e não somente em sua força. Obviamente toda alusão à  ordem  costumeira  e  tradicional  pode  referenciar  uma  lógica  mais  aceitável  e  fácil  de  ser  compreendida  pelo  auditório.  Porém,  Quintiliano,  favorecendo  a  perspectiva  da  estratégia,  afirma  que  não  se  deve  tratar  apenas  de  ordem  fixa  e  básica  da  apresentação  dos  argumentos.  Lembrando  que  a  confirmação  pode  ser  usada  para  refutar  os  argumentos  e  provas  do  adversário:  é  preciso  que  se  tenha  estratégia  a  fim  de  obter  êxito  em  alguns  objetivos  como  evidenciar  argumentos  reputados  como  fortes;  embaralhar  algumas  ideias  ou  informações  do  auditório;  ou  ainda  passar  em  silêncio  e  omissão  certas  questões.  Ou  seja,  o  orador  precisa  optar  entre  uma  estrutura  convencional  dos  argumentos  ou  uma  estrutura  não  convencional  que  favoreça  sua  tese  de  acordo  com  sua  estratégia.  Para  Perelman e Olbrechts‐Tyteca (2004, p. 571), “A ordenação que se espera importa tanto que  muitas vezes será adotada em detrimento de uma outra, tão favorável quanto ela de outro  ponto de vista”. 

Importante deixar claro que, ao lançar mão da ordem convencional, o orador se  arrisca em um terreno incerto; por isso, sua estratégia e estrutura precisam ser muito bem  pensadas e elaboradas. A falta de ordem convencional não exclui a necessidade da lógica, ela  é ainda mais necessária, para que o auditório dirija credibilidade ao orador, uma vez que, ao  acumular diferentes e desvinculados argumentos, o orador se mostra alheio ao tema e à tese  que pretende defender, ficando descreditado.   A parte peroração é a fase que se refere ao final do discurso, etapa em que se  foca na reflexão do auditório. Ela se estabelece na acentuação ou na atenuação das provas  ou  argumentos  apresentados.  Nesta  fase,  o  orador  tenta  garantir  junto  ao  auditório  indignação  ou  piedade;  inflamando  o  pathos  construído  no  auditório  até  o  determinado  momento na progressão que se iniciou na primeira parte do discurso. Como apresentado por  Reboul (2004, p.60), “a peroração é a alma da retórica”. Na peroração, confirma‐se o pathos  despertado no auditório, movendo‐o à ação.  

Ainda em conformidade com Reboul (2004, p. 59), a fase da peroração, por ser  longa,  pode  ser  dividida  3  partes:  amplificação,  paixão  e  recapitulação.  Na  amplificação,  o  orador  insiste  em  algum  ponto  argumentativo  importante,  ressaltando  junto  ao  auditório  alguma  prova‐chave  apresentada.  Já  na  paixão,  o  orador  municia  seus  argumentos  contribuindo  para  que  o  pathos  despertado  no  auditório  seja  inflado  e  exacerbado.  E,  por  fim,  na  recapitulação,  o  orador  resume  todo  o  apanhado  de  argumentos  e  provas  agindo  como reforços da tese defendida. Em si, a peroração não pode ser ou possuir um argumento  novo; senão, quebraria a unidade do discurso em sua estrutura. Por isso, nota‐se que, pela  organização  apresentada,  é  que  a  peroração  se  define  como  o  cerne  da  Retórica,  pois  abrange a comunhão entre a emoção e a argumentação.  

Depois  de  relacionadas  as  etapas  do  processo  argumentativo  e  as  partes  que  compõem o discurso, podemos transferi‐las para o filme de animação em função da análise  que  será  realizada.  A  função  de  exórdio  cabe  ao  prólogo  do  filme.  A  parte  inicial  que,  especificamente na animação, tenta prender a atenção e deixar o auditório‐espectador dócil  e atento.