• Nenhum resultado encontrado

A dimensão ética e educativa na obra de Miguel Torga: um poeta do dever

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "A dimensão ética e educativa na obra de Miguel Torga: um poeta do dever"

Copied!
513
0
0

Texto

(1)

Carlos Fernandes Maia

A Dimensão Ética e Educativa na Obra de Miguel Torga

– um poeta do dever –

Dissertação apresentada à Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro para a obtenção do grau de doutor em educação – área de filosofia da educação –, orientada pelo Professor Doutor Manuel Alte da Veiga, da Universidade do Minho.

(2)
(3)

Ao Nano, ao Caló e à Nela

– exemplos grandes do dever.

“Dar sem receber é o único condão dos deuses ao alcance dos humanos” (Miguel Torga )

(4)
(5)

RESUMO

Dirigir-se a um poeta e pedir-lhe uma sistematização filosófica seria tarefa de algum modo condenada ao fracasso. Mas procurar uma perspectiva ética e educativa diferente e mais entusiasmante já é outra questão: os poetas da antiga Grécia eram os mestres de ética; e os poetas dizem também o que os outros não conseguem e o que dizem é mais apaixonante do que a secura dos sistemas filosóficos.

Pois o autor foi procurar a legitimidade de pedir tal favor a Miguel Torga. Achando legítimo procurar um logos num orfeu, visitou-o no seu tempo e na sua obra e pediu-lhe razões para uma nova convicção sobre ética e sobre educação.

Mas quem dirige uma pergunta a um poeta tem uma preocupação mais vasta do que a expressa na denotação da pergunta; e recebe respostas que abrem novas perspectivas. Foi o que sucedeu. E, assim, o autor não só recebeu indicações no sentido da identidade educativa e da liberdade ética, mas também sentiu a força de uma vida orientada e assente no dever.

Com esse apoio, procurou-se englobar o pensamento de Torga numa ética e numa pedagogia do dever e especificar a forma de realizar no sentido inevitável do quotidiano o sentido indispensável da existência humana, e especialmente da existência do professor.

RÉSUMÉ

Se diriger à un poète en lui demandant une systématisation philosophique serait une entreprise vouée à l’échec. Mais chercher une nouvelle perspective éthique et éducative et une perspective plus enthousiasmante c’est déjà une autre question: les poètes de l’ancienne Grèce étaient les maitres en matière d’éthique; en outre, les poètes ont la capacité de formuler ce que les autres n’arrivent pas à exprimer et ce qu’ils disent est plus passionant que la froideur des systèmes philosophiques.

De toute façon l’auteur a cherché la légitimité de demander une telle faveur à Miguel Torga. Considérant légitime chercher un logus chez un ‘orphée’, il l’a visité dans son temps et dans son oeuvre et lui a demandé ses raisons pour une nouvelle conviction au sujet de l’éthique et de l’éducation.

Mais celui qui questionne un poète le fait d’un souci plus ample que celui exprimé dans la simple dénotation de la question; et en même temps il reçoit des réponses qui ouvrent de nouvelles perspectives. C’est exactemente ce qui c’est passé: l’auteur a non seulement reçu des indications dans le sens de l’identité éducative et de la liberté éthique, mais aussi il a expérimenté la force d’une vie orientée et basée sur le devoir.

(6)

Avec cet appui, on a cherché insérer la pensée de Miguel Torga dans une éthique et dans une pédagogie du devoir et aussi spécifier la frome de réaliser, dans le sens inévitable du quotidien, le sens indispensable de l’existence humaine et, en particulier, de l’existence du professeur.

SUMMARY

Addressing to a poet and asking him for a philosophic systematization would be a task somehow condemned to failure. But searching an ethical and educational perspective which was different and more motivation is no doubt another question: the ancient Greek poets were the ethics masters; and the poets also say what the others are no able to, and what they say is more impassioning than the coldness of the philosophic systems.

And yet the author tried to get legitimary to ask such a favour from Miguel Torga. Considering it was legitimate to ask for a ‘logos’ in an ‘orpheus’, he visited him in his age and work, and asked to be given the grounds for a new conviction on ethics and education.

However, he who asks a question to a poet has a deeper concern than that expressed by the denotation of the question: and he receives answers which open new perspectives. It was that happened. Thus, not only did the author receive indications towards educational identity and ethical freedom, but he also felt the power of a life guided by and based on duty.

With that support it was tried to include Torga’s thought in an ethics and pedagogy of duty and specialy the form to achieve the essencial sense of human existence, and specially that of the teacher’s, in the inevitable sense of daily life.

(7)

INTRODUÇÃO

Poderiam ser invocadas pelo menos três autoridades para sossegar o espírito de quem, à partida, lhe parece um abuso ou violência chamar Torga para fundamentos de educação e de ética. Serão dois esses desassossegados de espírito: os leitores deste trabalho e o seu próprio autor no início do mesmo. Essas autoridades encontram-se na história da cultura ocidental, onde os poetas gregos eram os mestres da ética e da moral; encontram-se nos estudiosos da cultura portuguesa, que situam a tradição filosófica portuguesa quase exclusivamente nos artistas da palavra, nomeadamente nos chamados poetas ou, genericamente, nos escritores; e encontram-se ainda outras autoridades, que são comentadores para quem a grandeza de Torga incluirá necessariamente os grandes temas inseparáveis e indispensáveis ao homem. É esta, por exemplo, a opinião de Luciana Stegagno Picchio, que aparecerá mencionada no corpo do texto.

Mas não seria correcto invocar autoridades cuja profundidade e alcance de pensamento só foram conscicencializados no decorrer do trabalho. À partida houve, de facto, uma intuição de importância: Torga é reconhecidamente um máximo da literatura portuguesa, apaixona pela exemplaridade dos contos e lucidez das análises e penetra-nos pela simplicidade e profundidade da lírica; Torga singrou sem ou até contra maquiavelismos do poder; e Torga tem sido objecto de inúmeros estudos.

A essa intuição juntou-se a realidade: uma que me exigia um trabalho académico de síntese e inovação; e outra que me aprovou o entusiasmo no projecto. A primeira foi a minha Universidade, ao propor-me como bolseiro do PRODEP para a realização de provas de doutoramento em Filosofia da Educação. A segunda realidade condicionante e estimulante engloba todos aqueles que, a seu modo, foram responsáveis directos ou indirectos pela persistência no desenvolvimento do trabalho – alguns dos quais aparecem mais claramente mencionados no espaço agradável dos agradecimentos.

(8)

E foi com essa ajuda que se manteve um terceiro factor ou condicionan-te: a vontade, como síntese de uma concepção pessoal de vida, de educação e de responsabilidade. Ela constitui o efeito de retorno educativo em relação a to-dos aqueles que partilharam a responsabilidade deste trabalho e em relação aos ‘parceiros’ que mais de vinte anos de docência permitiram encontrar.

Mas é necessário, num projecto deste género, escolher o domínio da investigação, tanto para uma síntese como para uma inovação exigidas e assumidas. Por isso, à partida não houve só uma intuição sobre a importância do autor a ser estudado: houve também uma intuição sobre o tema a desenvolver . E sobretudo na especificação do tema funcionou essa intuição, que se juntou a um gosto predominante pela temática ética, que vem desde os tempos da licenciatura. Difícil de limitar ou simplesmente de delimitar, ele pretendia salientar o papel do dever na orientação da existência desse homem austero em relação a si e um tanto arrogante em relação às forças de controlo político, económico e social dos homens; e pretendia passar desse modelo para uma generalização a toda a dimensão ética e educativa de qualquer homem. A temática ética na educação não era novidade nos estudos pessoais, embora o fosse na abordagem feita à obra de Torga e ao nível que se impunha. A enorme quantidade de temas existentes sobre o autor passava ao lado da temática ético-pedagógica, salvo breves, indirectas ou até circunstanciais referências.

Várias pessoas a quem foram solicitados apoios pontuais em matérias paralelas ou complementares ficaram algo surpresas, estupefactas ou até incrédulas; mas não evitavam de deixar escapar um incentivador “há-de ser interessante”. E dentro do âmbito ético-pedagógico a temática do dever apresentava-se fulcral não só no contexto de uma sociedade que parece ter como grande ou única prioridade orientar-se exclusivamente por direitos – e de quem se diz estar em crise de valores –, mas também dentro de uma escola em que se diz ter-se agudizado a crise da adolescência, da cultura ou até dos projectos de vida.

No início, juntaram-se, portanto, duas preocupações quanto à especificação da temática: por um lado, manter centrado o interesse pessoal

(9)

da investigação no domínio da ética; e por outro atender às circunstâncias reais ou efabuladas de uma época e de uma escola desta época. Eram considerados objectivos, por ocasião da apresentação do projecto de dissertação, contribuir para uma visão ainda mais multifacetada do autor e, com isso, incentivar a sua justa, necessária e proveitosa extensão nos vários programas dos vários níveis de ensino da língua e literatura portuguesas; e, simultaneamente facilitar a crítica sobre alguns pressupostos do seu pensamento, de modo a que a abordagem, sobretudo escolar, se possa fazer com maior isenção e pluralidade de pontos de vista. Se a obra de Torga é uma Bíblia com a qual se podem pregar diversas crenças, convém não esconder nenhuma. E competirá ainda a um investigador abordar o mais objectivamente possível um autor sem entraves que não sejam as limitações da sua capacidade, as dificuldades que a obra apresente ou o âmbito que for seleccionado. Se as primeiras são muitas, as segundas já não terão sido tantas (pelo teor da obra e pelo gosto despertado); e o terceiro é condição inquestionável – se bem que o seu enquadramento possa exigir uma amplitude maior ou menor. E na abordagem filosófica de um poeta foi necessário recorrer antecipadamente a uma legitimação facilmente compreensível.

Não deixará, no entanto, de estar sempre presente num trabalho deste género um conjunto de pressupostos, talvez mais do que condicionantes, que podem ser considerados factores de limitação, mas que também podem ser encarados como simples opções possíveis. A opção feita pretende-se enquadrada, apresentada com coerência e justificada na própria obra. À partida, a opção não é determinada por qualquer visão redutora feita à custa do encobrimento de outras, ou sujeita a preconceitos pejorativamente ideológicos. Pode, é, suceder que a mesma visão pudesse ter diferente enquadramento ou até outras opções sobre excertos escolhidos – para não falar já de outra ordenação lógica. Mas... houve, acima de tudo, uma preocupação que não se encontra em nenhuma monografia ou artigo consultado: passar em análise toda a obra de Torga. E depois de escutar o que ele diz foi assumido o dever de não encobrir mesmo o que pode ser considerado falha – como são exemplos um certo ‘machismo’ e uma ingenuidade ético-comunitária.

(10)

Dizer ‘toda a obra’ significa referir toda a obra publicada, salvo a que possa estar em partes de revistas em edição anterior a futura colectânea pessoal – em que o autor costumava incluir o disperso mas julgado de interesse. Na Bibliografia de Torga aparecem também essas revistas, mas só aquelas a que foi possível ter acesso. Dentro da publicada está incluída a obra que assinava com Adolfo Rocha, se bem que possam ser consideradas obras não maduras, ou até sobre as quais ele próprio deixaria de revelar grande interesse. Mas não foram objecto formal de repúdio ou rejeição, como muitas vezes é dito e como aconteceu com outros escritos não publicados – os quais renega explicitamente, mesmo em reedição. N’A Criação do Mundo (3º dia) surge, de facto, uma referência a Ansiedade em termos de “uma pobre colectânea de sonetos e canções, que mais tarde destruí”1. Mas a razão será a da falta de profundidade ideológica e até a pobreza formal e não uma questão de discordância ideológica sobre o conteúdo. Além do mais, na Antologia

Poética ficou conservada a memória dessa obra, embora só com um verso. E

sobre a obra publicada foi estabelecido um critério: analisar a última edição revista (quer coincida com a última edição, quer não), já que não se trata de um trabalho exegético. A não inclusão de qualquer opinião pessoal de terceiros obtida por entrevista e/ou de qualquer correspondência particular é baseada em razões que se podem chamar particulares e em razões que se podem chamar sócio-culturais. Deixando de lado as primeiras, importará referir um pouco as segundas. E estas, como de passagem se dirá no segundo capítulo, têm alguma relação com a abertura ou não de certas fontes de informação a circuitos que não se relacionam com a cultura nem propriamente com a verdadeira amizade a Torga. É necessário, por um lado, mostrar obra válida para adquirir um certo grau de confiança (pessoal e científica) e respeito pela idoneidade (também pessoal e científica); e é incontestável que um pouco de espólio de um autor como este tem valor económico: ascende a alguns milhares de euros o valor de algumas das suas obras; e o mesmo se poderá dizer de cartas inéditas – que poderão ser encaradas como fonte de receita ao serem pelo menos publicadas. De outros motivos não interessará falar, a não

1

(11)

ser no contexto de obstáculos. E se nos podemos conformar recordando as palavras de 18 de Junho de 1950 –“... quando eu morrer queimem quanto escrevi e não publiquei. Renego todas as cartas, todos os manuscritos, todos os retratos, todas as anedotas, todas as recordações e todo o rol da minha roupa suja. O legado são os livros que deixar impressos. Esses rilhem-nos à vontade” –, quanto a outras dificuldades... temos de as reconhecer muitas vezes insuperáveis no tempo, na distância ou no esforço, e a obrigar-nos a opções.

Do conjunto das dificuldades, as que mereceram mais cuidado foram as que derivaram de análises algo simplistas, redutoras ou até baseadas em textos que já não eram os fixados por Torga a essa data. E dentro da própria obra do autor tiveram de ser enquadradas contradições pelo menos aparentes. Trata-se de um poeta. E se bem que se possa dizer que um poeta diz sempre o mesmo de modo diferente, o certo é que há conotações e metáforas que parecem também apontar para realidades diferentes; e é preciso respeitar o poeta, mesmo que gostássemos de o ouvir dizer algo diferente. O próprio Torga tem consciência disso e lamenta no Diário de 7 de Agosto de 1990: “o mais dramático na vida dum poeta é que ninguém o aceita como ele é. Todos o querem como eles são”. E também sob a forma de lamento ou simples acto de consciência sobre as implicações de ser lido, já dissera em 14 de Setembro de 1978: “não há dúvida: quem lê, deseja apenas ler-se”. Mas se temos connosco um poeta, temos também um homem. E por isso tem de compreender-se que se possa entusiasmar por algo que não terá tanta importância como parece no momento ou que até se possa iludir por uma visão ingénua. Corrigirá essa ingenuidade de, por exemplo, identificar os ideais de um partido político com os ideais comunitários da sua infância não só pelas atitudes mas também por uma crítica rigorosa e severa à orientação político-partidária do pós-25 de Abril.

Mas porque se trata de um poeta é também permitido, mais do que num autor que o não fosse, aproveitar o implícito da sua obra. Esta possibilidade surge mais evidente e utilizada nos capítulos terceiro e quarto. Por isso, estão presentes neles mais hipóteses de relações e até de conotações aceites com uma certa normalidade que o não poderiam ser num texto de filosofia

(12)

académica. Assim, simultaneamente, temos a dificuldade e a facilidade de estudar um poeta.

Na base do trabalho está a leitura de um texto. E se não é possível escrever-se só o que o leitor quer, também não é possível ler-se só o que o escritor diz. Dentro, portanto, de um texto vamos ter em conta também outras confluências de posições, interesses e situações. Isto é: a um texto já de si assumido por opção juntou-se um contexto interno e externo: interno para decifrar as coerências e as incoerências; e externo para o orientar para a época, o tema e o objectivo específico. A essas duas vertentes junta-se ainda o que se pode chamar o pretexto. Não um pretexto como condicionante redutora, antes rejeitada; mas sim um pretexto como aproveitamento de um ponto de partida para fundamentar e clarificar uma vaga intuição inicial, que se foi progressivamente transformando em convicção. É deveras gratificante ao nível pessoal começar a encontrar grandes ou pequenos matizes de coloração para essa intuição inicial. E não poderia deixar se referir de imediato dois exemplos: a ética do dever, de Ernst Tugendhat, e a perspectiva do dever no próprio Torga. Se aquela aparece explícita, esta será fundamentada também em referências implícitas – mas igualmente válidas pela coerência interna com que a interpretação se apresenta.

O pretexto remete-nos mais para os conteúdos do quinto e do sexto capítulos. O texto estará muito mais dominante e explícito no terceiro e quarto. Que diremos dos dois primeiros capítulos? Que são meros contextos? São necessariamente contextos, mas com funções distintas. O primeiro é um contexto que permite fundamentar a coerência interna e que logicamente justifica uma opção filosófica sobre um poeta. O segundo é um contexto que permite clarificar algumas referências para facilitarem o que com maior rigor se chamará a contextualidade de uma obra – por oposição ao que rigorosamente será a representatividade. No segundo capítulo essa contextualidade incluirá também parte do pensar de Torga que não terá oportunidade directa de entrar nos capítulos seguintes, mas que amplia o contexto necessário de enquadramento e até de exemplificação internos.

(13)

É no meio desta complexidade que tem de entender-se a metodologia seguida. Ela compreende sínteses de investigações, reflexões coerentes e abertas, e argumentação de ordem essencialmente dialéctica, mas sem desprezo por recurso a elementos históricos, psicológicos, pragmáticos ou simplesmente intuitivos.

Vejamos, então, o que se pretende. Cientificamente, e seguindo a estrutura do trabalho, procura-se a legitimação de um estudo filosófico feito sobre a obra de um poeta. Isto é: como temos fundamentalmente de nos basear numa racionalidade ou num logos, torna-se necessário justificar se e porque se pode pedir a um orfeu um pensamento intelectualmente dizível com a coerência que julgamos ser apanágio da lógica. E, em resumo, temos de admitir que não só o poeta procura dizer o que de outro modo era inefável, como também temos de reconhecer que o logos se pode apresentar de diversas formas. O capítulo primeiro desenvolver-se-á dentro desta preocupação. Num primeiro momento, tenta-se caracterizar a racionalidade poética, isto é, descobrir até que ponto uma compreensão exige razão e sentimento, até que ponto a poesia revela uma verdade e até que ponto é legítima uma ou várias interpretações. Num segundo momento, identifica-se a filosofia como sendo também uma certa forma de mitologia – a mitologia branca de que falava Jacques Derrida. E essa identificação assenta no reconhecimento de que a poesia usa a analogia e a filosofia também usa a metáfora; assenta na descoberta de conexões entre razão e imaginação; e assenta na relação necessária entre a lógica e o sentimento para a constituição de um sentido. Num terceiro momento, esse primeiro capítulo aborda directamente a questão da relação entre poesia e filosofia e estabelece, através de uma fenomenologia da verdade, uma unidade que o sentido existencial apresenta com a situação concreta e palpável do homem e a constatação de uma certa identidade entre a condição de poeta e a condição de filósofo no que respeita a parâmetros como o temperamento, a cultura e o génio. Depois de distinguir e fazer inter-relacionar a chamada arte pela arte e a arte apologética, começa-se, no quarto momento, uma exemplificação com Torga do que pode ser uma poesia filosófica e aplica-se a este autor a

(14)

dimensão pessoal e universalista da poesia, considerando a obra de Torga dentro de uma literatura apaixonada. A compreensão literária e a força do sentimento unem-se nesta caracterização.

Ainda no âmbito científico, o segundo capítulo pretende situar Torga numa existência e num pensamento, num meio físico e num meio social, numa opção fenoménica e numa opção existencial. A existência cronológica, as condicionantes políticas e a actividade profissional relacionam-se num primeiro subtema com um pensar estético, religioso e até filosófico. Especificando a sua existência, é analisada a condição que suportou ou assumiu tanto em relação ao meio físico como ao meio social. Torga sai e regressa fisicamente a S. Martinho, mas é um habitante da cidade e do mundo e um cidadão do seu Portugal e da Ibéria. Quanto às opções fenoménicas, elas relacionam-se com o ser médico e poeta e ter, por isso, uma vertente pública e uma intimista, uma profissão e uma devoção (ou, antes, duas profissões e duas devoções!). Na opção existencial vêmo-lo como escravo de Proteu, como arcanjo do humano e como urze do infinito, isto é, vêmo-lo como condenado a ser poeta, coriféu da humanidade a aberto à transcendência.

Feito o que se pode chamar a fundamentação da legitimidade de um estudo e feito o enquadramento crono-ideológico do autor a estudar, surgem dois capítulos com a análise explícita da temática educativa e da temática ética na obra de Torga. Os dois, como já foi dito, divididos em dois momentos: num primeiro procura-se apresentar o explícito do pensamento de Torga e num segundo, num esquema que até parece mais formal, desenvolve-se o pensamento mais implícito.

Sobre educação, ordenada sinteticamente em torno do tema ‘educar para a identidade’, procuram caracterizar-se os intervenientes no processo educativo: a escola, o conteúdo, os educadores e os educandos – a quem foi dado o nome de templo, fogo, sacerdotes e prometeus, respectivamente. E isto porque a ânsia e apelo de Torga à verdade funcionam como um terceiro alicerce da existência humana digna – juntamente com a liberdade e o amor. Numa segunda fase, desenvolve-se a temática mais implícita dos meios e finalidades educativos. Os meios compreendem o meio físico e social, bem

(15)

como o que se poderá chamar as faculdades de intuição e vontade. Os fins incluem o conhecimento ou verdade, a participação na existência concreta (ou o que se chamará no quinto capítulo cidadania, como capacidade de fazer opções) e a formação da identidade propriamente dita.

Sobre ética, e com o tema ‘viver para a liberdade’, surgem agora os trabalhos de Sísifo e a liberdade de Sísifo. A primeira parte procura ser a síntese da moralidade explícita através da caracterização dos caminhos ou modos de uma actuação moral, os companheiros ou o papel dos outros, as energias ou a(s) fonte(s) de moralidade, e a visão do alto ou o conceito e objectivos da boa acção moral. A segunda parte é de algum modo a justificação de um título um tanto ‘desconcertante’. De facto, normalmente apareceria para a ética algo temático como ‘viver em identidade’ e para a educação algum tema como ‘educar pela liberdade’. Tais opções não se justificariam em Torga: primeiro, porque a liberdade será fim ético e não meio educativo; e segundo porque só ao nível da identidade é que será possível uma intervenção mais ou menos directa de tipo educativo (tanto auto como hetero-educativo). E, por outro lado, tais opções não seriam bem aceites dentro de todo o desenvolvimento do trabalho, nomeadamente nos quinto e sexto capítulos por razões que deles se depreenderão e por aquela intuição inicial de que no princípio se falava. A segunda parte do quarto capítulo é, por isso, a apresentação da liberdade possível de Sísifo, que parte de uma condenação mas que não se deixa eliminar, soterrar ou simplesmente abater. E, assim, analisam-se os meios de que Sísifo dispõe na sua opção – os mesmos que Torga considera ao dispor de cada homem: o instinto e a fidelidade à natureza, a consciência e a lisura de procedimento e o sentido produtivo e humanista. De seguida, apresenta-se, no género do que sucedeu quanto à educação, os fins éticos. Divididos em três, eles poderão resumir-se à responsabilidade, à criação e à liberdade.

Em jeito de síntese dos temas anteriores, nomeadamente do segundo, terceiro e quarto capítulos, e simultaneamente em jeito de fundamentação da perspectiva dada ao sexto capítulo, apresentam-se especificados os tropismos torguianos ou as três grandes linhas de orientação concreta da existência: ser

(16)

consciente, ser socialmente empenhado e ser humanamente (ou humanis-ticamente) responsável. Aí se procura definir o processo educativo como orientando-se essencialmente para a assunção de uma perspectiva de dever – forma ou meio de unificar as dimensões interna e externa da educação e de conjugar a identidade e a liberdade pessoais e sociais.

Finalmente, o sexto capítulo toma uma figura apaixonante do conto ‘Natal’ e desenvolve um conjunto de itens ordenados em forma de processo considerado crescente da afirmação e da realização humanas ao nível pessoal e social. Em resumo, procura-se fundamentar uma ética de dever como a forma concreta e possível de realizar a liberdade. Nesse processo, e para enraizar e corporalizar o dever, inicia-se com a condição, passa-se à consciência, delimita-se a liberdade no sentido mais habitualmente tratado, caracteriza-se o amor ético e chega-se ao dever. O capítulo conjuga três fontes de informação: autores diversos contemporâneos, autores clássicos da ética e Miguel Torga. Na selecção e nesta ordenação estará o pressuposto essencial do autor deste trabalho ou aquilo a que se pode chamar o objectivo de tomar Miguel Torga como um pretexto. Será este também o único pretexto no sentido de inclinação inicial condicionante de um trabalho – a que o autor admite e que constitui a sua ‘tese’.

Passemos então a um segundo parâmetro ou objectivo que se pretende com este trabalho. Ideologicamente falando, os conteúdos cientificamente abordados têm, como se acabou de admitir e assumir, uma orientação: ela estrutura o texto e ela condicionou as pesquisas. E esta dimensão ideológica é clara para o autor – embora não satisfatoriamente ilucidada ou fundamentada: é necessário e urgente repensar uma ética e uma educação de direitos. Ao nível do equilíbrio pessoal, ao nível da organização colectiva, ao nível da relação entre nações, ao nível da comparação entre norte e sul ou ocidente e oriente mundiais, a predominância dos direitos sobre o dever não foi benéfica: a instabilidade e incerteza racionais e afectivas aumentaram, sem correspondência na criatividade; as sociedades tornaram-se conflituosas e simultaneamente indiferentes; as nações parecem ter regressado ao estado natural de guerra e desconhecem a sua história e cultura; e as nações ricas

(17)

exploram demagogicamente as pobres e armam-se em garantes da liberdade. Mesmo politicamente, aumentam as nações dependentes e a abstenção dos cidadãos nas que se dizem livres. O medo ou simples desconfiança, nas sociedades ditas democráticas, já leva a falar de necessidade de ‘transparência’ ou até de ‘deficit democrático’. Pobre iluminismo é o dos direitos que só escolhem a tonalidade da luz ou que diminuem o comprimento do túnel para este parecer mais claro! Mais do que cada um dizer ‘estou aqui’ é importante todos saberem para onde vão. A perspectiva ética e educativa do dever é apresentada como condição da realização pessoal e colectiva do homem.

Mas um trabalho deste género tem necessariamente em vista a ambiência escolar como parte muito específica, e actualmente muito importante pelo menos no tempo, do que genericamente se chama educação. Por isso,

pedagogicamente encarado, este trabalho procura contribuir para apoiar a

reflexão sobre as questões máximas da educação humana, que são a procura do sentido da educação em si mesma e nas relações entre os seus agentes. Todas as épocas se queixam mais ou menos de ‘crise’ na educação, nos valores, etc. Mas esta nossa época e esta nossa crise doi-nos especialmente e há indicadores de destruição (sobretudo de auto-destruição e não só de contestação) que justificam uma grande apreensão quanto ao futuro. E a solução que se tem aplicado talvez não tenha sido bem fundamentada. É esse o contributo específico esperado para o âmbito ético-educativo. E é também este sentido de procura que fará encarar a proposta como o início de um processo concreto de reflexão filosófica sobre uma temática importante das questões educativas. A história das ciências da educação mostra-nos que a filosofia da educação demorou a ser aceite nestes domínios. Mas também os temas éticos pareciam banidos da reflexão da modernidade e hoje eles perpassam domínios e áreas que seriam inimagináveis há poucas décadas atrás. É importante criar novas convicções que possam merecer a paixão dos educadores. O homem age racionalmente, mas fá-lo mais eficaz e intensamente quando age apaixonado. Torga dirá que é mais difícil e importante criar e seguir uma nova teoria ética do que respeitar a existente.

(18)

Faz falta, sobretudo, desenvolver condições que facilitem o apaixonamento dos homens por si mesmos: porque o amor a si próprio é condição e derivação do amor aos e dos outros e porque o sentimento generalizado de ‘descartável’ é o que de maior frustração psicológica existe.

Só de passagem, e academicamente falando, o objectivo é ver reconhecida essa capacidade de investigação e inovação no domínio educacional que a Universidade de Tás-os-Montes e Alto Douro – como outra que fosse – exige para que seja concedido a um candidato o grau de doutor em educação – e, no caso específico, na área de filosofia da educação.

Foi essa paixão antes referida (e que resulta de um clarão de intuição e de uma acto de vontade) uma das razões que fez iniciar este trabalho. Ele compreende a estrutura normal de uma obra do género e ainda um conjunto de anexos. O objectivo destes é simultaneamente esclarecer ou completar algumas passagens do corpo do texto e evitar desvios prejudiciais ao encadeamento desse mesmo texto. De entre todos, dois merecem uma chamada de atenção: o que se refere ao auto-retrato, pelo facto de se ter respeitado a expressão de Torga e não se ter preferido uma coerência sintáctica ou gramatical; e o que pretende resumir os contos focados sob o ângulo do dever. Este exige uma dupla referência: que se aceite o pressuposto da intenção que lhe deu origem; e que seja encarado como uma primeira abordagem possível do tema no autor.

A bibliografia indicada na estrutura normal da trabalho inclui só aquela que foi analisada, quer tenha sido objecto de citação quer não. Nomeadamente sobre Miguel Torga, não se desconhecem outras recolhas bibliográficas, como a organizada pelo Departamento de Extensão Cultural da Biblioteca Municipal de Castelo Branco (Ensaio Bibliográfico de Miguel Torga) e, sobretudo, a que José de Melo apresenta na obra “Miguel Torga: fotobiobibliografia”, nas páginas 165 a 188. Mas o carácter circunstancial, subjectivo, repetitivo, aparentemente despropositado, ou simplesmente a não acessibilidade limitaram mais contactos. Com o tempo, o autor procurará reunir toda a bibliografia possível na Biblioteca da UTAD. Nas colectâneas, optou-se pelo título genérico das mesmas, indicando só em separado os capítulos que foram

(19)

objecto de citação: são os casos de “Aqui, Neste Lugar e Nesta Hora” e de “Sou um Homem de Granito”. Na obra de Torga incluem-se partes de revistas cujo conteúdo não foi identificado com partes de monografias publicadas pelo autor. Na citação será utilizado só o nome da obra , mesmo abreviado, e o número da página. Os itálicos dos excertos são da responsabilidade do autor.

Mas houve outras razões que fizeram continuar essa paixão inicial. E elas são objecto do meu agradecimento. Este vai para pessoas cujo nome desconheço e que são funcionárias de muitas instituições por onde fiz pesquisas –algumas das quais só possíveis por um acto de confiança muito grande, especialmente em relação a obras em mau estado de conservação, como aconteceu na Biblioteca Nacional. Vai também para instituições como a Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, a Bibliotreca Municipal de Coimbra ou a Biblioteca Pública Municipal do Porto, onde a disponibilidade revelada só pode ser apreciada por quem sabe como é importante possuir fotocopiadas obras fora de mercado. E a lista poderia continuar com a Hemeroteca Nacional, o Palácio das Galveias e a Biblioteca Municipal de Chaves. Mas nessas instituições há nomes que conheço, e recordo agora, sobretudo no Pólo da UTAD em Chaves, como o Sr. Emídio e a D. Teresa, e os funcionários administrativos, em especial o Dr. Mário; ou na Biblioteca Pública Municipal de Chaves, como a menina Cristina Rodrigues. Houve também apoios institucionais, embora não personalizáveis: a reitoria da UTAD, pela confiança revelada ao propor-me a bolseiro do PRODEP logo que as Ciências da Educação foram contempladas e ao conceder apoio na variedade bibliográfica adquirida e no financiamento de diversas deslocações, especialmente a Salamanca, a Lisboa, a Coimbra e a Braga. Esta confiança tinha já sido revelada pela pessoa do Magnífico Reitor, Professor Doutor Torres Pereira, aquando da minha proposta para a frequência do Mestrado na Universidade do Minho. Outros apoios não se podem considerar institucionais, mas foram realizados por pessoas concretas ligadas a instituições. A Professora Maria Teresa Lopez de la Vieja, da Universidade de Salamanca, mostrou-me saber, disponibilidade e confiança, e facultou-me útil bibliografia ou até sugestões de enorme importância. O Professor Lopes Gomes, da UTAD,

(20)

pela amizade e simplicidade com que o fez talvez não se recorde do incentivo que deu na altura da minha opção pelo ensino superior. À Professora Clara Rocha, da Universidade Nova de Lisboa, também devo disponibilidade de orientação para situar filosoficamente seu pai. À Professora Assunção Monteiro, da UTAD, devo informação bibliográfica, o contacto com a filha do autor e o grande sorriso de satisfação com que rematou o entusiasmo pela vontade de alguém em estudar um novo tema de Torga. E à Professora Conceição Azevedo, representante do nosso Magnífico Reitor no Pólo de Chaves, devo apoio bibliográfico, disponibilização dos serviços dela dependentes e, sobretudo, a grande amizade que revelava quando o meu desânimo se deixava transparecer (sobretudo quanto ao cinismo profundo que parece ter invadido a nossa época, embora também quanto ao esforço do trabalho em si mesmo).

Há ainda um grande número de pessoas amigas que fizeram o que puderam, quer mantendo-se atentas a bibliografia do meu interesse (e quero salientar a Doutora Otília Monteiro) quer, genericamente, incentivando. Estão aqui muitos dos outros colegas da UTAD ou de escolas básicas e secundárias; estão aqui globalmente todos aqueles que sabem que estiveram comigo no incentivo e que fazem gosto que a obra se tenha realizado – e a quem eu digo que continuarão objecto de gratidão sempre que a memória recordar o mais pequeno pormenor; e nestes todos estão incluídos muitos dos antigos alunos. Finalmente, e transcrevendo textualmente o agradecimento final que expressei no trabalho de mestrado, “falta-me agradecer a uma pessoa que talvez não gostasse de ser referida porque a sua modéstia, humanidade, saber e compreensão a levam a ser disponível sem regateios, sem sobrancerias, sem exibição e sem fastídio; falta agradecer a uma pessoa que me orientou e apoiou desde o primeiro encontro ainda no CIFOP da UTAD; falta agradecer ao meu orientador, Professor Doutor Manuel Maria Alte da Veiga”. Mas não poderia deixar de acrescentar outro motivo especial de agradecimento por este trabalho: a confiança com que aceitou este salto que parecia para o desconhecido.

(21)

1. O LOGOS DE ORFEU

Há-de haver alguma justificação aceitável para enquadrar um poeta2

num trabalho de âmbito filosófico-pedagógico.

Antes de mais, convém delimitar minimamente os conceitos em relação, apesar de haver outro procedimento possível: abordar directamente o conjunto de subtemas que se seguem e deles extrair-se uma dimensão implícita do que significam estes conceitos. Referindo-nos a Torga, a questão mais directa poderia ser enunciada em termos de relação poesia e filosofia. Mas levantava-se a necessidade de explicar porque é que as outras produções literárias (o romance, os teatros, os diários e a autobiografia romanceada) também seriam poesia. E a resposta tem de ser dada aprofundadamente por quem tenha maior autoridade no assunto, embora se não enjeite a responsabilidade em altura própria.

Fiquemos por um conceito de literatura que engloba todos os géneros literários cujo conteúdo pode ser mais explícito, informativo ou denotativo – como o Diário e A Criação do Mundo – ou mais implícito e conotativo. Entendamos por literário todo o texto que foi produzido essencialmente para expressar o prazer de manipular significativamente a palavra, traduzir metaforicamente uma visão emocional da realidade e/ou revelar de uma forma artística3 uma concepção sobre si, sobre o mundo físico ou sobre os outros — e o respectivo sentido profundo de tudo isto que daí o leitor possa tirar. Três breves exemplos, na ordem respectiva:

Rio feliz a ir de encontro ao mar / desaguar (Diário XVI, 201).

Deixa cá ver, que quero acender o cigarro num verso desses4 (Diário XI, 17 ). A mãe bebia as palavras do filho, a beijá-lo todo com a luz da alma (Bichos, 82).

Quanto a filosofia... Se fôssemos a enumerar só as definições, gastaría-

2

Torga raramente se referia a si mesmo com o termo escritor, e era o termo poeta que aparecia como objecto de referência a si ou aos outros poetas que admirava, ou até como tema dos seus próprios poemas.

3 Artístico significará resumidamente: com ritmo, melodia, inovação graciosa de formas e diversidade de significação,

isto é, com sentido de beleza de acordo com padrões compreensíveis e/mas abertos.

4

(22)

mos dezenas de páginas; se enumerássemos só os autores ditos filósofos, isto é, os que a opção histórico-ideológica consagrou e que produziram o que se chama filosofia em sentido objectivo, ainda teríamos muitas páginas preenchidas; se tentássemos caracterizar uma atitude dita filosófica, ainda teríamos um longo trabalho; e se enumerássemos o que se chama sistemas filosóficos, teríamos muito que dividir e até chegaríamos a deixar várias "respostas" numa encruzilhada, sem saber onde as encaixar.

O que se pressupõe desde já é que nessas respostas também poderão estar compreendidas as dadas pelos poetas. Isto é, a filosofia académica, como diz Carlos Thiebaut, não é toda a filosofia5. Mas antes de a filosofia ser uma resposta é uma interrogação. Não uma pergunta sem sentido, porque os filósofos não são nem idiotas nem meros diletantes; não uma pergunta sem nexo, porque os filósofos são tenazes; não uma pergunta sem espera ou intervalo, porque os filósofos são homens; não uma pergunta sem resposta, porque os filósofos não são deuses. E essa interrogação é feita directamente sobre o próprio interrogante e indirectamente sobre a realidade existente ou possível e os modelos ideológicos, com vista a dar sentido à existência pessoal ou a constituir alternativas de fundamento de orientação. A história mostra que esse sentido foi buscado ou organizado em torno da natureza, do conhecimento, da realização social, do sentido moral, etc. Mas era sempre fundamental uma resposta, a partir da qual a vida humana individual ou colectiva encontrava sentido, isto é, uma resposta que permitia pelo menos temporariamente fazer a opção fundamental pela vida e aglutinar em torno desse ideal os comportamentos, as actividades e as instituições de uma época. Vejamos duas definições separadas por vinte e três séculos: a de Aristóteles e a de Piaget. A tradicional definição da filosofia como 'ciência de todas as coisas através das últimas causas' entrou em desuso talvez pela conotação de causa última com um deus e a contradição, pelo menos aparente, com a evolução e o evolucionismo científicos. Mas altissimas causas também podem ser os meios mais elevados pelos quais o homem possa compreender-se e não só interpretar a realidade; e o termo scientia pode

5

(23)

entender-se por sabedoria. Ora, sobretudo a partir dos estóicos, o que interes-sa mais ao homem é a interes-sabedoria da vida e não tanto o interes-saber dos sofistas6. Filosofar é esse importar-se com tudo o que diga respeito ao homem de modo directo ou indirecto e responder à inquietação subsequente sem recusa de qualquer ponte de significação possível, embora atribuindo-lhe duas características: de utilidade, mesmo que pareça abandonada, e de restauração, mesmo que pareça de uma firmeza inabalável.

Já na segunda metade do século XX, Piaget definiu a filosofia como uma 'tomada de posição raciocinada em relação à totalidade do real'. Deixando de lado possíveis indefinições que a filosofia possa apresentar com ideologia, e com isso ter de admitir algo de emocional na orientação existencial7, atentemos na referência à totalidade do real. Aqui pode ser incluído não só o real de percepção racional mas também o real de percepção intuitiva ou emocional que, não sendo logicamente consciente, não deixa de ser existencialmente racional; e nessa totalidade está não só a dimensão do real existente mas também a do real possível que, se difícil ou até impossível de fundamentar positiva ou logicamente, não deixa de ser poderoso na teleologia existencial, apoiada também na emoção. E neste possível incluem-se dois grandes conjuntos: o daquilo que existe e o homem desconhece, fundamentado analogicamente por desconhecimentos anteriores que tiveram de admitir a descoberta posterior — devendo o homem procurar conhecer e compreender com interrogação existencial; e o que não existe, mas que é indispensável que venha a existir para melhorar as condições de ser do homem, para repor uma

ordem negligencialmente alterada ou até do ser homem em si mesmo8— e

cujo fundamento se poderá encontrar na dimensão de teleologia de perfeição. Quanto ao aproveitamento pedagógico da literatura, a história mostra-nos vários exemplos de textos literários que revelam observações perspicazes

6

Podemos pensar que de algum modo os estóicos, pelo menos do último período (ou superior, segundo Chaïm Perelman), recuperaram a resignação da tradição mítica, a sensatez ecológica dos cosmólogos e a humildade socrática.

7

Sobretudo a partir da crítica ao racionalismo idealista, ficou claro que nem sempre é nítida a razão da manutenção da existência própria só por uma vertente lógica. O modernismo cedeu terreno nesse aspecto, pelo menos.

8 Aos enciclopedistas foi evidente a necessidade de separação dos poderes, que não existia, para que o homem

pudessse realizar uma das suas vertentes fundamentais: a liberdade. Mas pode-se considerar que a consciência da liberdade foi ainda mais importante do que a separação dos poderes: a segunda era uma condição de ser homem; a primeira caracterizava o ser homem em si mesmo.

(24)

sobre o comportamento humano e seu significado9, deixou-nos páginas

belíssimas em que se procuravam humanizar atitudes entre os humanos10 ou

até em que se definiam conceitos de desenvolvimento e consequentes estratégias de ensino-aprendizagem11. Martha Nussbaum12 procura mostrar que a literatura constituirá uma forma de educação que levará a uma racionalidade pública superior à conseguida com manuais de economia política13.

O aproveitamento político-jurídico da literatura constituiu uma das maiores fontes de inspiração literária desde os discursos de Cícero até aos modernos discursos federalistas, ecologistas e solidaristas, passando por todas as páginas inflamadas de teóricos de revoluções religiosas, políticas, culturais e sociais14.

O aproveitamento científico da literatura não deixa de estar presente tanto

no entusiasmo do Ευρηκα de Arquimedes, como nos Diálogos Sobre os Dois

Grandes Sistemas de Galileu, como até na ficção científica. Não resisto, a este

respeito, a exemplificar com uma história em Banda Desenhada de há uns

anos — O Pó das Estrelas — ou então com o filme História Interminável I15

onde, a par do sentido poético sobre a força da vontade, está o apelo ao uso de energias de novas fontes ou de fontes tradicionais reformuladas pelo esforço, tenacidade e sentido humano para ser homem.

A publicidade, a propaganda política e ideológica, as campanhas de sensibilização para a saúde, contra o racismo e a xenofobia, pela qualidade ambiental, etc., devem muito ao poder expressivo da língua trabalhada artisticamente e não só ao suporte psicológico de desperto da necessidade e sua forma de satisfação.

9

Veja-se a acuidade interpretativa das descrições sociais de Eça de Queirós ou o sentido moralizador das fábulas literárias ou o poder ideológico das baladas de intervenção político-social.

10

Recordemos os Sermões do P. António Vieira ou os Apólogos Dialogais de Francisco Manuel de Melo.

11

Relembremos O Emílio de Rousseau e a sua influência também para a história de uma psicologia do desenvolvimento.

12

Cf. A Imaginação Literária na Vida Pública.

13 Não são os trabalhadores dos campos de concentração mas os que literaturalizaram sobre eles que mudaram o

sentido de uma nação; não são os manuais escolares que anulam mentalidades desumanas, mas os professores dedicados a incentivar o progresso humano dos alunos.

14

Nas metáforas de Confúcio ou nas cenas poéticas dos Evangelhos, nos socialistas utópicos ou no Livro Vermelho de Mao e nos Poemas Ibéricos de Torga não deixam de estar belas páginas poéticas e grandes mensagens de intervenção nitidamente focalizadas numa destas perspectivas.

15

(25)

Que a filosofia se serve de uma bela expressão para transmitir uma ideia boa, isto é, capaz de gerar uma concepção clara, é também facilmente exemplificável. Tomemos os diálogos de Platão para clarificar o conceito de justiça ou de beleza, por exemplo, e as peças de teatro de Sartre para concretizar o coesão entre liberdade e responsabilidade na perspectiva

existencialista humanista ateia16. Mas olhemos também, sob o ângulo da

literatura, para o extraordinário trecho de Kafka sobre o templo da justiça, para exemplificar a obstinação do homem pela verdade e pela defesa da sua dignidade, mesmo depois de lhe ser negado o acesso à justiça17 — já que só ao homem interessam determinados valores. Muitos outros trechos e até obras completas levam-nos a reconhecer que "... a literatura apresenta notáveis exemplos de como se pode transmitir, por meios não directamente conceptuais, uma visão do real, completa e coerente; como se pode pôr de pé todo um universo moral, mesmo que sem a generalização que caracteriza o

ponto de vista moral18. Os exemplos podem passar por Dostoiewsky,

Cervantes, Dante, Shakespeare, Gil Vicente ..., por toda a dita literatura comprometida, pela literatura de vanguarda, etc.

O homem apresenta uma pluralidade de facetas, atributos e manifestações. Uma dimensão global suporta cada uma destas vertentes, mas a especificação de ser homem em cada um permite e até obriga a que uma de muitas facetas possa salientar-se e aglutinar o conjunto das outras. Num estudo, como forma também específica de explicação, podemos encarar especialmente essa dimensão saliente. Dela partiremos para a compreensão do homem todo, como também acontece se partirmos de uma pequena diversidade para a compreensão de todos os homens.

A racionalidade não é o único atributo do homem: ele é também emoção e vontade19. Ou, então, digamos de outro modo: a racionalidade humana não se reduz ao rigor de uma lógica puramente intelectual: há uma explicação para

16

Os Sequestrados de Altona talvez seja uma das mais bem conseguidas pela simplicidade do espaço cénico exigido, pelo reduzido número de personagens e pela clareza da questão colocada: a opção entre a vida de um prisioneiro novo que pode denunciar os resistentes por não aguentar a tortura e a de muitos resistentes cujo paradeiro não deverá ser revelado.

17

O Processo, 209-210. Em Anexo I, apresenta-se este texto como extraordinário exemplo de uma metáfora de desilusão e esperança face à justiça - ou talvez do dilema entre sentido externo e interno da justiça.

18 VIEJA –Figuras del Logos, 6-7. 19

(26)

a emoção, há um sentido na vontade. Isto é, a compreensão de si, da realidade, dos outros e do conjunto da história não se reduz à inteligibilidade lógica que respeita os princípios abstractos que a suportam. O que sucedeu ao

longo da história foi uma crescente separação20 de duas especializações

disciplinares, de dois modos de actividade intelectual, e até de duas valorações opostas do compromisso humano com a subjectividade, o mundo, a história e o transcendente: por um lado, a literatura com a preocupação estética, o gozo emotivo da existência e a alienação na ficção; por outro lado, a filosofia com a preocupação pelo rigor lógico, o olho perscrutador sobre os indícios da verdade e a procura de uma realidade numénica capaz de ancorar toda a existência fenoménica.

Mas têm sido colocadas ultimamente de forma muito clara, ou pelo menos de forma muito premente, questões de relacionamento entre estas duas disciplinas, estas duas formas de trabalho intelectual, estes dois modos de encarar e perspectivar a existência. De tal modo que M.ª Tereza de la Vieja, ao referir-se às "figuras do logos entre a filosofia e a literatura", diz, imediatamen-te na entrada da obra com esimediatamen-te mesmo título, que a filosofia e a liimediatamen-teratura são usos diferentes da razão21. Embora seja difícil a quem se habituou a tratar isoladamente o seu território reconhecer a invasão dele por ourem, as reflexões e experiências de interdisciplinaridade vão-se sucedendo; ao mesmo tempo, a tendência para especialização continua a manter-se, mas o sentido de pragmaticidade também tem aumentado e daí que a literatura não seja encarada como mero diletantismo ou devaneio misantropo nem a filosofia exacerbe a sua linguagem isotérica ou de apologia desactualizada.

A autora antes referida reuniu e resumiu num conjunto de alto nível de reflexão uma diversidade de personalidades que focam diversas perspectivas de análise sobre este relacionamento. Pelos subtemas abordados, parece que são os filósofos os mais propensos a uma reflexão aberta e até a uma aproximação. Para essa autora, a problemática da relação entre literatura e filosofia coloca-se em três níveis: o do tipo de relações, o da

20

Na mais antiga tradição grega, não era costume distinguir entre considerações filosóficas e literárias em relação aos problemas dos homens: "os poetas é que eram considerados os mestres mais importantes da ética"; e também alguns dos grandes filósofos foram poetas: Xenófanes, Parménides e Empédocles. Platão recorre aos trágicos, nos seus diálogos (Cf. NUSSBAUM –La Fragilidad del Bien, 180).

(27)

de e o das perspectivas. A primeira análise, que ela faz sob o ângulo de relações externas, mas que têm implicações internas, permite-lhe ver, no primeiro caso, a presença da literatura na filosofia. Quer como excepção (textos de filósofos marcadamente poéticos, como os aforismos de Kierkegaard e as metáforas de Nietzsche), quer como norma, alguns autores defendem a descontinuidade absoluta ou uma interdependência. Os argumentos dos primeiros estão na diferença das práticas reflexivas; e os dos segundos apelam para o uso da narrativa e da metáfora na filosofia22. A presença da filosofia

na literatura é vista pelo lado da continuidade e, assim, reconhece-se que nos

textos literários também há reflexão, questões morais, etc.; ou pelo lado da descontinuidade e então a filosofia tem de excluir os elementos emotivos da literatura como corpos estranhos. De qualquer modo surge uma aproximação possível: a filosofia na literatura pode ser encarada como um efeito não desejado ou uma contingência não prevista23.

A segunda análise, sob o ângulo da interdisciplinaridade, procura descobrir formas de aproximação entre literatura e filosofia. Embora disciplinas diferentes, mesmo pela linguagem específica, as duas são modos de aproximação ao real pela informação que usam e são modos de conhecimento sobre o mundo, os porquês de vida, os sistemas de valores, as crenças, etc. As duas revelam graus de estimação de valores e expressam um sistema ideológico24.

No âmbito das perspectivas, a autora enuncia algumas questões que levarão necessariamente a um aproveitamento conjunto: por um lado, da filosofia para fundamentar dialecticamente a retórica, para reconhecer os limites analógicos da metáfora, para universalizar os conteúdos exemplares das narrações (reconhecendo o valor de argumentos mostrativos e não só dos

21

VIEJA –Figuras del Logos, 5.

22

Interrogado sobre o recurso a ensaios ou a novelas para abordar a temática ética, Fernando Savater dizia que usava a linguagem em expressões diferentes do mesmo tema.

23

VIEJA –Figuras del Logos, 10.

24 Parece, no entanto, que a ideologia passa mais pela literatura e por toda a arte do que pela filosofia, embora esta

seja mais argumentativa. Porquê?! O carácter epistemológico da filosofia permite-lhe uma maior autoconsciência; e o alcance inconsciente da arte torna o seu destinatário mais vulnerável a uma visão apresentada como realidade ou pelo menos como verosímil. Vejamos um exemplo: a mito-poética de Aljubarrota engrandece o papel do povo a matar os prisioneiros franceses e mantém a dignidade dos nobres, quando, afinal, foram estes que calcularam o seu perigo na retaguarda aquando do segundo combate, agora contra a infantaria castelhana – de acordo com a opinião de José Hermano Saraiva.

(28)

demonstrativos25), para aprofundar o sentido moderno da subjectividade, para explorar a diversidade dos tipos de conhecimento e facetas da verdade e até para atribuir à ficção um estatuto merecido no âmbito do sentido existencial humano; por outro lado, da literatura, para fornecer tópicos de argumentação, para chamar a racionalidade à prática humana concreta, para romancear a consciência dos limites da racionalidade e da relatividade noética, para ampliar a força da interpretação e construção textual e até para fornecer à filosofia uma base simbólica mais sólida para a representação.

Está fora de tratamento uma questão de prioridades e de hierarquia de estatutos destas duas disciplinas. Historicamente, sabemos que a linguagem na sua função mais pragmática é necessariamente anterior à filosofia; no entanto, o estudo sistemático das questões de linguagem remonta só aos inícios do século XIX, segundo Fernando Belo. De acordo com este mesmo autor, neste estudo distingue-se uma vertente alemã, que põe a filosofia da linguagem como parte da filosofia; uma vertente inglesa, em que a tendência empirista põe a filosofia da linguagem a substituir a filosofia metafísica; e uma vertente francesa, influenciada pela psicanálise, que faz uma releitura da filosofia ocidental sob o ângulo literário e que, considerando a filosofia um discurso sobre o homem e o mundo, reconhece que se desenvolve dentro da

linguagem e que por isso pode ficar presa nas redes desta26 — donde a

necessidade de uma análise semântica para desmontar os equívocos possíveis ou para fazer revelar todas as potencialidades linguísticas.

Também estará fora de aprofundamento o tema da origem destas duas áreas disciplinares, apesar de ser impossível deixar de associar a linguagem à comunicação e a filosofia às condições existenciais, nomeadamente às situações-limite. Desde explicações meramente lúdico-genéticas, passando pelas hierárquico-funcionais ou até teocrático-fânicas até às explicações lógico-somáticas, a linguagem tem recebido várias origens. Porque, de algum modo, Miguel Torga se situa dentro de uma simbologia que obriga a conhecer minimamente uma origem crato-erótica, resume-se esta perspectiva

25 VIEJA –Figuras del Logos, 14. 26

(29)

da por Hans Sperber em parte da obra Feiticismo e Linguagem27: alguém des-cobre que o som produzido podia influenciar os outros. Para além desta verten-te social28, que implica pelo menos dois indivíduos, Hans Sperber exige ainda mais cinco condições: que um dos indivíduos tenha uma emoção que o leve a gritar, que haja forças que levem o segundo a reagir, que a reacção do segundo seja desejada pelo primeiro, que a situação se repita sem grande mudança e com frequência e que a situação seja pouco complicada. Com este modelo condicional, após aplicação à caça, à amamentação e ao cio, o autor reconhece que no caso da caça não há desejo de comportamento no caçado; que no caso da amamentação não se pode reconhecer origem da linguagem na criança mas no adulto; e que, por isso, resta a terceira hipótese, a do cio, em que todas as condições postas estão reunidas.

A constituição da linguagem processar-se-ia por estabilidade da família e dos instrumentos de trabalho. Estes seriam mesmo prolongamento dos órgãos sexuais, como se pode verificar no lavrar das terras, no pisar das uvas, no moer do grão, na produção do fogo por fricção, na persistência em tarefas morosas ou até dolorosas, mas que dão prazer, etc. É uma explicação. É evidente que a relação entre trabalho e satisfação é necessária para explicar a ordem, a regularidade, a persistência, o entusiasmo, etc., pelo trabalho que desgasta, que cansa, que até faz doer ou que parece desnecessário. Até se poderia explicar o uso da linguagem pelos homens mais do que pelas mulheres, nos ritos. Mas fica por explicar que os primeiros instrumentos sejam de matar e não de cultivar a terra. Por outro lado, a reacção da fêmea ou não era voluntária, porque ia ser ferida, ou era subordinante do macho pelo descontrolo que lhe produzia o cio despertado. Finalmente, retirar implicações desta teoria poderá levar-nos a relacionar a falta de gosto actual pelo trabalho (pelo menos com esforço) com a falta de relações de cio ou a

27

Cf. páginas 115-164. Na página 118 a formação da linguagem é apresentada em três estádios: 1º, alguém expressou emoções por sons; 2º, outro alguém reagiu regularmente a esses sons; e, 3º, o primeiro reconheceu nexo entre o seu som e o comportamento do segundo. E convém acrescentar que se pressupõe que este processo se repete em iguais ou pelo menos idênticas circunstâncias!

28

Notemos que a relação entre linguagem e inteligência é infendável e que um autor como Edgar Morin fez depender o processo e progresso da hominização da permanência da criança junto à mãe, para que a adaptação à sobrevivência não seja precoce e impossibilite a diversidade de maturação das potencialidades genético-culturais. René Spitz atribui à ausência de estímulos de oralidade da mãe com a criança no primeiro ano de vida a responsabilidade por deficiências irreversíveis na linguagem e na inteligência.

(30)

talização da relação sexual; ou ainda a relacionar a sobrecarga de tarefa labo-ral com a compensação de falta de relações amorosas profundas.

Regressando ao autor, a mudança de radical deveu-se a duas razões: ensino da linguagem às crianças, desprovidas de consciência sexual, e perda da relação sexual com o trabalho por este se tornar quotidiano e imposto; e a nova palavra teria relação com a invenção de uma nova tarefa. Mas aqui parece já ser a tarefa a condicionar a feição sexual e não vice-versa. Porque no caso de ser uma nova feição sexual a fomentar uma nova tarefa, então a quinta condição (que a situação não seja complicada) já não se verificaria.

As perspectivas sobre a origem da linguagem, e nomeadamente sobre a língua, podem incluir, como foi dito, uma outra que apresentaria conexão directa com a racionalidade essencial do homem de tal modo que ele criasse a necessidade de um instrumento de comunicação que utilizasse o potencial sonoro vocal, que lhe seria anterior, e que ao mesmo tempo revelasse uma criação destinada a exibir potencialidades perante os demais, sendo-lhe ao mesmo tempo útil. Sabe-se ainda como a linguagem oral ou escrita foi apreciada pelo seu carácter sagrado, pela sua reduzida extensão e pelo poder daí decorrente, como acontece ainda hoje em relação a quem manipula uma linguagem técnica de uma actividade restrita mas absolutamente necessária ou muito proveitosa. E, então, se a perspectiva fosse a racionalidade primordial, a sua origem teria de aproximar-se da filosofia: pela racionalidade que esta

revela e exige; pelo carácter não primordialmente pragmático29; pela

intencionalidade de ultrapassar a realidade existente em captação simbólica ( na linguagem) ou em superação da função imediata em favor de um sentido intemporal (na filosofia); e até pela recusa essencial em admitir o não-sentido integrado entre as coisas, as coisas e o homem, os homens entre si, o homem e o mistério e, sobretudo, entre o homem e o possível.

De seguida, especificam-se alguns itens que permitirão aprofundar o binómio em análise.

29

São comuns, numa introdução à filosofia ou numa caracterização de uma atitude filosófica, as referências ao carácter não instrumental ou não utilitário da filosofia; e mesmo sobre a literatura aparecem títulos como "Por Que No

(31)

Conjugando racionalidade e sentimento, verdade e metáfora, realidade e imaginação, procurar-se-á determinar o alcance e o limite da interpretação de um texto poético ou de qualquer outro texto mostrativo, mesmo que não demonstrativo. Sabendo também que o homem não se contenta com a aparência e o existente, mas que procura um transcendente que possa considerar real e um real que seja mais sublime que o passageiro fenómeno, será preciso procurar uma fenomenologia da verdade que permita tomar consciência dos seus vários indícios e concluir que a verdade não é apanágio exclusivo de uma metodologia experimental nem de um rigoroso discurso lógico; e que uma 'verdade' de sentimento e intuição tem tanta legitimidade como as da ciência e da filosofia e tanto direito a criar uma certeza opcional e

uma força existencial como aquelas outras verdades30 — pelo menos no

âmbito do que interessa primordialmente ao homem, que é a construção de uma sabedoria do viver. Finalmente, abordando o dilema da arte como fim e como meio, procurará definir-se uma possível justificação para se analisar um poeta em moldes filosóficos de tal modo que se possa encaminhar este primeiro enquadramento do poeta que nos ocupa e ver a sua obra numa literatura que é apaixonada, isto é, que procura a beleza e tem todos os critérios de arte da linguagem, mas que ao mesmo tempo é comprometida31 e que tem conteúdos explícitos ou implícitos de interrogação e resposta existencial humana referente a todos os homens, embora partindo de si próprio.

1.1. A Racionalidade Poética

Vamos centrar-nos agora na possibilidade de uma forma literária espe-

30

Para já não falar das 'verdades' políticas, religiosas, amorosas, etc., nem, num plano mais pragmático, da necessidade de certezas para o desenvolvimento de um projecto existencial através do qual se actualiza o ser homem e através do qual a pluridimensionalidade do homem e a natureza ganham sentido.

31

Em Torga esta expressão teria um sentido pejorativo de dependência do poder político, económico, religioso, ... e será substituída por 'empenhada'.

(32)

cífica, o poema – ou do que mais vulgarmente se designa por poesia32 – servir de transmissão viável de uma concepção filosófica, incluindo esta um misto de concepção sobre o que seja a realidade, sobre o homem e seus valores, o destino e a esperança, a responsabilidade e a autonomia, e sobre a transcendência. Isto é, vamos procurar definir o valor ontológico e existencial de uma expressão essencialmente analógica e metafórica, vamo-nos procurar servir das formas simbólicas da literatura para as representações da filosofia. Sabendo que há perspectivas diferentes sobre qualquer realidade que se aproxime do homem ou com a qual o homem tenha ou possa vir a ter relação física ou mental, teremos de admitir linguagem, métodos e até conteúdos diversificados para melhor traduzir essa realidade. Mas a extensão da racionalidade a todo o alcance humano aparece como uma fatalidade. Por outro lado, a perspectiva pessoal ou o modo como uma cultura é vivida por alguém nunca deixa de estar presente, mesmo na opção pelo objecto de estudo, de referência ou de ficção. Assim, importa conjugar critérios de verdade e critérios poéticos, reconhecer a presença da emoção na determinação de sentido, respeitar os limites da interpretação das metáforas construídas pela inteligência, a emoção e o que de criatividade é possível atribuir a cada um e, ainda, reconhecer o alcance universal da obra de arte particular. Com esta análise será possível fazer inferências ético-pedagógicas de todo o conjunto da obra torguiana.

1.1.1. Razão, poesia e compreensão

A obra Conhecimento e Poesia, de Fernando Guimarães, apresenta logo nas primeiras páginas a crença algo inesperada no papel da poesia: forma de

conhecer, para além da razão33. O termo 'conhecer' poderia ser bem

substituído aqui por compreender, dado o alcance mais vasto deste verbo segundo a terminologia usual nos contextos epistemológicos actuais. Mais do que conhecer ou referir uma imagem a um conjunto restrito de conceitos para orientar a sua relação causal ou descritiva, compreender inclui a situação de

32

Como serão os próprios Contos de Torga (incluindo Contos da Montanha e Novos Contos da Montanha, mas também Bichos, Pedras Lavradas, Rua e Pão Ázimo) e algumas páginas de prosa de A Criação do Mundo ou até do

Diário. 33

(33)

um acontecimento ou de um conceito dentro do que se poderia chamar uma análise sistémica com implicações para o próprio situar-se pessoal perante uma realidade física e social, um sistema de interpretação ou um transcendente. A posição de Fernando Guimarães merece ainda outro comentário: ao limitar a relação entre conhecer e para além por uma vírgula, este para além não assume um carácter hierárquico colocando a poesia como conhecimento superior à razão mas um carácter disjuntivo, colocando a poesia como outro modo de conhecer.

Com marcas pelo menos indirectas de uma análise existencialista, o autor situa o homem revelador do dasein no conjunto do mundo. Daí que, apesar de

ser através do homem que o ser ganha consciência e sentido34, o homem

também é mundo e isso obriga a aceitar todas as formas de revelação possíveis. Nesta unidade de consciência e matéria teria de incluir-se o sentimento de unificar de novo o que foi sendo fragmentado ao longo da história. Citando Rilke, Fernando Guimarães diz que a dificuldade de abertura ao ser se deve exactamente ao facto de o homem ter fragmentado o todo em objectos particulares. E aqui aparece a poesia como uma voz ausente a revelar a unidade do homem35.

Teríamos, então, a necessidade de reconhecer à poesia uma dimensão racional de unificar o esforço destas duas manifestações humanas e de as usarmos para a compreensão, que não será mais do que a abertura multifacetada ao ser36.

Esta questão de reconhecer à poesia um estatuto de forma de compreensão pode dizer-se muito recente. Aristóteles e a posterior filosofia medieval referiam-se simplesmente à verdade e esta não cabia no domínio da retórica e da poética. Até ao século XIX a compreensão era sinónimo de inteligibilidade e esta era função e atributo da razão – mesmo que o positivismo reduzisse essa razão à razão experimental e o conhecimento à determinação positiva de relações causais. A primeira abertura dá-se com o que se chama a crise da razão que foi encabeçada pelos críticos do idealismo, nomeadamente

34

GUIMARÃES –Conhecimento e Poesia, 33.

35

(34)

de Hegel. A partir daí, será a dimensão de fé na possibilidade de transcendência humana, a vontade de poder, a fuga à alienação ou uma teologia antropológica, a luta entre classes, etc. que passarão a elemento de compreensão e aglutinação do sentido da acção humana. Com Freud, até a dimensão inconsciente é reconhecida como indispensável e subjacente a toda a compreensão. Nele, a simbologia religiosa e artística em geral ganha um estatuto de relevo. Já na segunda metade do século XX, um autor como Dilthey reconhece a necessidade e o valor de todas as variáveis de explicação possível para a elaboração de uma compreensão global.

Não fica, no entanto, resolvida uma disputa entre emotivistas e cognitivistas. Perante a recusa destes em reconhecerem racionalidade aos juízos estéticos (como aos éticos ou religiosos) e perante a fragmentação e dispersão da racionalidade a que conduziria um relativismo emocionista, será necessário afirmar que mesmo que os enunciados literários não sejam verdadeiros37, a obra literária pode transmitir conhecimentos. Estes não são

conteúdos, são mediador — diz Christiane Schildknecht38. Mas isto não

significa que se ponha em pé de igualdade toda a obra literária. A diferença entre a dimensão poética e a dimensão retórica da linguagem literária já foi reconhecida por Kant: enquanto a poesia promete pouco e oferece muito, a retórica promete muito mas oferece pouco; e por isso Kant ataca a segunda e elogia a primeira39. Já os sofistas usavam um belo falar para dificultar a revelação da verdade. Ora, a poesia, se não é a verdade, facilita a sua revelação e contribui para o homem compreender o que conhece do passado, o que sente no presente e o que imagina para o futuro. Na voz de Eva, d’O

Paraíso’, aparece esta potencialidade poética de traduzir o inefável: "Até que

enfim oiço o que há muito queria dizer e não era capaz..."40. Embora tenham em comum o labor sobre as palavras, a retórica usa uma frieza intelectual de imagens para ofuscar os olhos de quem está numa encruzilhada e não sabe que caminho seguir; a poesia abre todas as faculdades (intuitivas, racionais e

36

Fica em aberto uma questão que divide, pelo menos aparentemente, todos os filósofos em dois campos: é no homem que o ser existe ou, pelo menos, é definido como consciente – posição existencialista – ou no homem o ser só se revela, nomeadamente sob as três formas absolutas do espírito – posição essencialista e idealista?

37 No ponto seguinte será abordada a questão da verdade e veracidade dos enunciados poéticos. 38

SCHILDKNECHT –Entre la Ciencia y la Literatura, 22-40, nomeadamente 22.

39

Referências

Documentos relacionados

Acreditamos que o estágio supervisionado na formação de professores é uma oportunidade de reflexão sobre a prática docente, pois os estudantes têm contato

d) independentemente dos registros contábeis cabíveis, nas notas explicativas aos balanços da sociedade - conforme determinado pelo item XVI do Título 4 do Capítulo II

No código abaixo, foi atribuída a string “power” à variável do tipo string my_probe, que será usada como sonda para busca na string atribuída à variável my_string.. O

A variável em causa pretende representar o elemento do modelo que se associa às competências TIC. Ainda que o Plano Tecnológico da Educação preveja a conclusão da

Para analisar as Componentes de Gestão foram utilizadas questões referentes à forma como o visitante considera as condições da ilha no momento da realização do

Neste estudo foram estipulados os seguintes objec- tivos: (a) identifi car as dimensões do desenvolvimento vocacional (convicção vocacional, cooperação vocacio- nal,

Todavia, nos substratos de ambos os solos sem adição de matéria orgânica (Figura 4 A e 5 A), constatou-se a presença do herbicida na maior profundidade da coluna

•   O  material  a  seguir  consiste  de  adaptações  e  extensões  dos  originais  gentilmente  cedidos  pelo