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1. O LOGOS DE ORFEU

1.1. A Racionalidade Poética

1.2.3. Lógica, sentimento e sentido

O cuidado e até a precaução a ter no tratamento da verdade dos poetas não pode justificar a recusa de um estatuto de sentido humano da lógica do sentimento e da estética do sentido com que os poetas trabalham. Temos de conceder ao poeta um estatuto superior ao do artífice da palavra e reconhecer- lhe a dignidade de um artífice da finalidade ou da disposição profunda: não só o que põe um trabalho, mas o que o põe ao serviço de, ou o destina a revelar um comportamento. Talvez por isso mesmo Gerard Vilar leve a relação ao

ao cinema" não tem nada que se pareça com "Está fora de frase interrogativa ires ao cinema" (Cf. MEYER –

Linguagem e Literatura, 49) 145

Diário IV, 128.

146 MEYER –Linguagem e Literatura, 54 e 93, respectivamente. 147

Para este último caso, e sem aprofundar muito, poderíamos chamar em auxílio as teroias humanistas de motivação, como a de Maslow, que pôem no topo da pirâmide das necessidades as de ordem estética.

ponto de dizer que o texto literário pode ser lido filosoficamente, e vice-versa, embora nalguns casos seja um pouco absurda esta equivalência, a não ser

para os fanáticos de um autor149. Só que, contrariamente ao que seria de

esperar, apesar de haver na arte, como vimos, um formalismo metafórico que universaliza sentimentos e até emoções, o traduzível da linguagem poética não é fácil, ou é até impossível , enquanto no pensamento lógico podem dar-se substituições sem se afectar o pensamento. No complicado da ambiguidade poética há um sentimento e origina-se um sentido não porque essa ambiguidade seja traduzível logicamente, mas porque encaixa ou enxerta

numa fracção profunda e pessoal do leitor150. Já a filosofia recusa a

ambiguidade, na qualidade de sofia, embora pretenda a sua substituição por mais/melhor saber, na qualidade de filos.

A ambiguidade do poeta não cabe no rigor da lógica porque o poeta não diz o que as coisas são. Quando se serve do verbo ser, o poeta ou diz que um sentimento é como, e usa uma comparação, ou diz que alguém é o sol, a lua, o vento, o fogo, a gota de orvalho... e usa uma metáfora. Mas o é do poeta não passa do nível subjectivo de uma excitação que cria uma ponte entre o real sentido e um irreal que chama ou, quando muito, de um nível objectivo que faz encarnar o desejado num outro ser capaz de se subtrair ao efémero do tempo, ao precário da matéria, à sofreguidão da necessidade. Ao contrário, o é da lógica é uma pretensão à verdade151. Não está em causa o poder sedutivo da verdade, a paixão da opção argumentativa, nem a ternura pelas vítimas, pela ingenuidade ou pela naturalidade. Mas a possível construção de verdade através do dito do poeta terá de ser fruto de um esforço de rebusca entre uma dispersão de seres que são reunidos pela imaginação do poeta. Para a lógica, esse rebuscar não tem sentido porque a relação que ela estabelece é vazia de

ser152. Também não está em causa o valor desse símbolo abstracto que é o

conceito: ele permitirá o enquadramento formal da diversidade do trânsito,

148

Diário X, 52-53.

149 VILAR –La Ética y el Campo de Fuerzas de la Filosofía, 246. 150

Usar aqui o termo leitor e não simples destinatário significa que o poema lido é mais puro na sua ambiguidade do que se fosse ouvido: não tem o intermediário da interpretação feita pelo falante do poema. Isto porque até a leitura monotónica já é um acrescento ao texto – para não falar duma deturpação comparável ao que acontece numa declamação ou até no canto de um livrete de ópera.

151 DERRIDA –Margens da Filosofia, 223. 152

indicando-nos que a estrada é ampla e recta ou que tem curvas e até direcções sem saída. Só que para o poeta não há becos sem saída e no trânsito só são colocados sentimentos ou até passageiros encobertos que carregam no íntimo uma finalidade a que nenhuma barreira pode impedir de chegar ao destino, que são outros sentimentos, de outros passageiros, que circulam à procura de confirmar o destino ou até de encontrar uma nova mensagem que o faça alterar. Será talvez por isso que se poderá aplicar à poesia o que Clifford Goertz diz sobre a força da religião: “é justamente o facto de colocar actos íntimos, banais, em contextos finais que torna a religião... tão poderosa”153. Ou até que Richard Rorty diga que os textos melhores são os que “nos ajudam a

mudar os nossos pressupostos e assim a mudar a nossa vida”154. Ou ainda

que se ligue a má literatura a uma degenerescência moral155.

O sentido para que qualquer poema aponta implica necessariamente a elaboração de um suporte ontológico. Independentemente desse suporte ser realidade que se possa afirmar ou não autónoma do homem, o certo é que ela é merecedora do esforço do homem. E nessa mesma linha poderemos dizer que a poesia conduz a um conhecimento de uma entidade valorada que ganha conteúdo mental e gera apetência por uma 'realidade' representada como boa. Deixando de lado a análise da literatura ou da poética como uma possível ciência que tratasse de seres que não eram estudados por outros ramos do saber, interessar-nos-á, no entanto, encarar a poética como um discurso em que o referente material pode não existir, sem que, por isso, ele deixe de ter uma existência ao nível do sentido que dá aos interlocutores ou leitores. De algum modo, todo o discurso poético é ficcional e por isso pode abdicar da referência, pode abdicar da denotação e até do controlo das consequências da emissão156; mas não pode abdicar de constituir um sentido que seja suportado por referência à experiência do interlocutor, por conotação com a sua experiência e circunstâncias, e por enquadramento numa lógica de vida em que uma teleologia do mediato esteja presente. Também não teria sentido a

153

GEERTZ –Interpretação das Culturas, 138.

154

COLLINI –Interpretação Terminável e Interminável, 20.

155 BELLOT-ANTONY –Les Constantes d’un Genre: le conte moral de Marmontel a Eric Rohmer, 82. 156

ficção se a experiência transportada para o plano da simbologia não pudesse ser um indício de teleologia dessa mesma experiência.

Parece, assim, que a poesia compartilha com a filosofia (ou o pensamento mais lógico) uma dupla constante que conduz à afirmação de uma metafísica: a responsabilidade de um eu com físico e espírito, que actua com outros ao longo da vida; e a relação entre a continuidade da vida e a busca do bem e/ou verdade da vida como totalidade157.

Mas importa também considerar pressupostos mínimos para que a poesia seja recebida. Vimos algumas condições para que ela seja interpretada. Mas falta ainda que o interpretado possa ter correspondência no leitor. Podemos repetir as condições de imaginação, poderemos aproveitar do que veremos sobre o génio pessoal; e podemos ainda apoiar-nos na experiência dos contactos estéticos. Em resumo: tudo o que possa apresentar-se como necessidade da poesia pode associar-se à capacidade de a sentir.

Ernest Fenollosa considera difícil sentir a poesia num contexto em que tudo parece uma fábrica e quando parecemos incapazes de ver a natureza e a sua diversidade e ficamos só com a indicação mais fria e simplista da palavra158. Contudo, é exactamente porque o relógio desperta e o combóio não espera, e porque no combóio vão os amigos, que temos de sonhar com diligências de horários maleáveis e com galanteios às damas que sobem e descem das mesmas diligências com ar discreto de quem pede ajuda. Assim, não negamos que a realidade seja deste ou daquele modo, mas não dispensamos a liberdade de a encarar conforme a diversidade das necessidades de cada um; e, sobretudo, é possível construir um sentido que faz enquadrar todo o concreto percepcionado numa dimensão teleológica construída em moldes capazes de desencadear o sentimento dos outros segundo as suas necessidades.

E se "há ocasiões em que os sentimentos valem como argumentos",

como acontece com a liberdade159, ou como reconhece Kant em relação à

vontade, também teremos de reconhecer que a poesia é uma forma de dar

157

LIMA –El Punto de Vista Moral en la Litaratura, 47.

158 FENOLLOSA –Os Caracteres da Escrita Chinesa como Instrumento para a Poesia, 115-162, nomeadamente 140. 159

sentido à existência, mesmo na perspectica teleológica. O fim do racionalismo idealista foi preconizado exactamente pela falência dessa visão exclusiva — pelo menos segundo os seus detractores. De facto, se fizermos fé só no panracionalismo, não conseguiremos explicar tantos fracassos e momentos desastrosos da humanidade — embora a inversa também tenha argumentos históricos contra si. Diz Torga que nos piores momentos da história houve sempre três caminhos: dois da luta dos contrários e um pessoal. Este conduz "à morada das musas, dos deuses e do amor. O homem é como um flutuador de cortiça: quanto mais se mergulha no mar do anonimato, maior força de emersão adquire. E à tona da vida, há-de dar sempre beleza, religião, afecto e outros frutos assim, gratuitos e saborosos..."160 Será por isso que "parece que na vida só a inteligência fraqueja de tempos a tempos161. A diversidade de fontes de sentido é grande e corresponderá, como sugerimos, à diversidade de perspectivas e dimensões da constituição e realização do homem. É por isso que um poeta como Torga e um autor pelo menos aparentemente ateu como ele não sabe quem salvará o homem, mas reconhece: "filosofia, religião e poesia – três pessoas distintas de uma santíssima trindade una e perfeita"162. Decerto serão as três, pela sua unidade!