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1. O LOGOS DE ORFEU

1.3. Poesia e Filosofia

1.3.3. A condição de poeta e de filósofo

Nos programas de introdução à filosofia da reforma Veiga Simão, que perduraram com algumas modificações até à reforma Roberto Carneiro, o segundo ano dos Cursos Complementares e/ou 11º ano dos Cursos Unifica- dos compreendia uma rubrica sobre a criação da ciência moderna, atribuída ao físico Galileu, e a criação da filosofia moderna, atribuída ao filósofo e

matemático Descartes. O primeiro apresentou a primeira lei da física moderna — a lei do movimento uniformemente acelerado na queda dos graves; e o segundo apresentou o cogito — princípio metafísico de fundamentação do conhecimento e até de toda a moral. Ao comparar esses dois autores, dizia-se que Galileu fisicalizou a matemática e que Descartes matematizou a física; mas dois reparos se acrescentavam logo: foi Galileu que mais aproveitou da matemática e foi Descartes que mais insistiu no modelo geométrico tido por Deus ao criar o universo.

Temos vindo a distinguir e a assemelhar o poeta e o filósofo. Parece que o segundo se poderia distinguir pelo modelo de racionalidade consciente com que procura o sentido para o mundo e para o homem, num passado, num presente e até num futuro; e parece que o primeiro se poderia distinguir pelo modelo de racionalidade não consciente com que consegue significar o presente, antecipar o futuro com os símbolos conscientes do passado e com eles, e outros novos, unificar a visão do homem e sobre o homem. Numa síntese de admiração e entusiasmo, ao rever Tempos Modernos, de Charles Chaplin, Torga dá um sentido eterno ao futuro poético: "o génio é aquilo! É prever o futuro eternamente"177. José Miguel Marinas178 caracteriza o poeta como narrador de uma intimidade e apresenta quatro figuras dessa intimidade. Uma dessas fontes ou razões de ser poeta é a figura demónica, ou aquela força que animava Sócrates a revelar o mais fundo do homem e, sobretudo, a não se contentar com a aparência de verdade ou até de realidade que caía diante dos olhos, e que não era mais do que a madeira tosca de que Alcibíades, no Banquete, dizia encobrir o ouro interior. A segunda, a intimidade vazia, é a absoluta necessidade de encontrar um interlocutor sobre quem se possa manifestar a necessidade que a intimidade tem de relação. O que caracteriza a terceira forma, a intimidade dual, é a consciência que o sujeito consegue da experiência e a capacidade de a formalizar ou de se descentrar em relação a ela. Perante a disparidade da experiência (e até da sua contradição, como acontece num regime de ditadura, numa sociedade de gritantes desigualdades sociais, num regime monoideológico, etc.), o poeta

177 Diário XI,151.

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busca o que seria a natureza incontaminada ou a bondade primordial e

fundamental do homem179. A quarta fonte poética apresentada por José M.

Marinas é a intimidade disseminada: o poeta descreve o rosto, o corpo, o exterior de si e, sobretudo, dos outros e revela a intimidade (dos outros e de si) em códigos culturalmente regulados mas não dizível directamente, nem epifânica, sem este suporte, ao comum dos não poetas.

Mantém-se, no entanto, uma enorme questão: porque é que A ou B se tornaram poetas (ou nasceram poetas?) e com C tal não aconteceu? Podemos entender que A ou B tenham contactado com outros poetas, tenham conhecido muitas palavras e tenham aprendido a burilá-las, a recolocá-las ou simplesmente a colori-las. Mas já esse fazer (ποιεω) grego em que “as palavras que designam o poeta e a poesia têm um significado tecnológico e não metafísico ou religioso”180 não é comum a todos; e se pensarmos em criação poética, ou nessa metáfora teológica de inspiração judaico-cristã, a questão fica inexpugnável, como já ficava quando se imaginava o poeta grego a 'fabricar' mas não por sua autoria e sim como intermediário das musas, da inspiração divina. Teríamos de reconhecer a nossa inferioridade ou abandono pelos deuses por não sermos poetas, se assim fosse — apesar de não escondermos a nossa admiração de superioridade por quem o é. Por outro lado, aparecem em confronto teorias teológicas de dotes (embora diferentes) e teorias ateístas de disposição somato-psíquica. Enquanto as primeiras custam a aceitar porque quem não aprender culturalmente uma língua não chegará a poeta (pelo menos no sentido produtivo do termo), as segundas sofrem da mesma limitação e não explicam a razão de certas épocas terem sido mais frutíferas em poetas, não explicam que muitos artistas só se tivessem revelado na maturidade avançada ou ainda que pudesse haver constituição genética diferente para as diferentes artes. As limitações da teoria das localizações cerebrais tornam-se mais agudas se quisermos separar a capacidade de escrita e um modelo estético de grafia; para já não falar da separação dos dotes artísticos segundo as diversas artes. O ateísmo artístico conduziria, por

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Embora ainda sem grande fundamentação, podemos ver Torga aqui situado.

180

Ernest Robert Curtius, citado em GUIMARÃES –Os Problemas da Modernidade, 41. Pode-se aproveitar a transcrição grega para lembrar que poesia pode derivar mais directamente do futuro deste verbo (ποιησω, de ποιεω).

exemplo, mais profundamente à necessidade de tomar o outro como modelo. Isto traria duas implicações: eliminá-lo como outro e torná-lo puro meio de expressão da minha imagem; e eliminar-me como distinto por transferência da minha necessidade para o outro. Feuerbach fazia da essência divina uma projecção da humana; enquanto Kierkegaard tornava a essência humana depositária da essência divina ou, pelo menos, da transcendência. Sabemos que o efeito poético, a capacidade de ‘mise en scène’ do poeta implica um deslocamento das origens, um deslocamento do presente ao passado, um acoplamento de um sujeito a outros sujeitos181; mas é na intimidade de cada um que a poesia surge e na exterioridade da cultura e da experiência que ela se alimenta.

A teoria bachelardiana da imaginação faz com que os elementos primordiais, como vimos, obedeçam a uma disposição pré-consciente do

sonhador182; mas, se pensarmos que até ao nível inconsciente Freud

descobriu constantes de explicação, não se justificaria porque é que necessidades psicológicas inconscientes iguais podem originar expressões artísticas diferentes, até aparentemente contraditórias, ou, sobretudo, não originar nada reconhecível como artístico. Reconheçamos também que, a existir um fundo comum de temperamento artístico, o contexto cultural terá peso na opção metafórica: sabemos que a água para um semita, especialmente se for nómada, é tudo e que uma gota de orvalho é mais romântica poeticamente do que um campo de tulipas da Holanda. No entanto, a própria opção temática e metafórica específica, se bem que possa encobrir, como dissemos, um fundo ou arquétipo comum de inconsciente, pode aparecer contra os modelos mais divulgados. Uma certa falta de bom senso ou de ‘mau gosto’ artístico são um critério de evolução cultural da arte e até de apreciação positiva da mesma: lembremos a pintura geometricamente plana de Mondrian e a arquitectura moderna de propriedade horizontal; lembremos o cubismo ou o ‘naturalismo’ da arquitectura em betão armado não recoberto por pintura, para já não falarmos do ‘mau gosto’ que representa cada época artística diferente, como a polifonia ou a introdução da bateria na produção e execução musicais.

181 PÊCHEUX –Semântica e Discurso, 168. 182

Na obra já citada de Jacobo Kogan há uma abertura para a admissão da inspiração como explicação poética, embora referida só ao aspecto emotivo ideal, não ao trabalho concreto de aperfeiçoamento da produção. Diz o autor que o sonho pode ser comum aos homens, mas que o trabalho e o talento é que conferem beleza artística ao devaneio; ou ainda, que a obra poética resulta da beleza poética da imaginação trabalhada pelo talento artístico183. Numa citação de L’Eau et les Rêves, continua o autor: uma imagem poética traz o testemunho de uma alma que descobre o mundo, o mundo em que ela queria viver, em que ela é digna de viver”...; “deve definir-se o homem pelo conjunto

de tendências que o impelem a ultrapassar a humana condição”184.

Pessoalmente, parece que onde está ’ultrapassar’ se devia pôr revelar, para retirar à frase um carácter maniqueísta e se poder reconhecer que a condição de existência humana é que pode originar e até dar sentido à poesia: não contente com a experiência ou tendo necessidade de comunicar aos outros o seu sentir da experiência, surge a poesia como modo de suportar a experiência ou como modo de lhe dar um sentido humano e até um alcance perene. Será mesmo pelo modo como se insere na realidade e traduz essa inserção que o estilo se poderá caracterizar, nomeadamente na dimensão diegética do discurso poético.

Finalmente, acreditar em génio tem todos os inconvenientes anteriores de injustiça equitativa, de negação do papel da educação e de (in)determinismo genético. Mas facilitava ou simplificava profundamente a questão perante a adversidade económica, social, política e até cultural; também corresponderia à gratificante sensação de sobrenaturalidade do artista e à clara vontade de muitos em ascenderem a esse grau de compreensão da realidade e de produção de formas belas; e tranquilizava as consciências mais religiosas deixando a responsabilidade de ser ou não ser artista para uma missão confiada ou não por um deus. Sem alongar demasiado, mas não deixando em claro a posição de Torga, poderemos afirmar em pé de igualdade o génio e o labor. Se os primeiros versos são dados e os outros trabalhados, como ele

183 KOGAN –Filosofía de la Imaginación, 150 e 146, respectivamente. 184

dizia, não admira que ele tenha referências directas à inspiração e ao árduo trabalho de poeta. Vejamos dois exemplos sobre a inspiração:

"... esse estado de graça e de febre em que as palavras saem da pena fluentes e certas como as ditadas por um profeta em hora de arrebatamento (...) Versos que nenhum esforço, tenacidade e obstinação conseguiriam arrancar das trevas, nasciam dentro de mim, evidentes como coisas naturais e surpreendentes como milagres" (Diário XII, 141); e

"...foi durante a noite que escrevi o poema. Acordei inquieto, estremunhado, fiquei numa sonolência lúcida e, aos borbotões, os versos, na imprevisibilidade do minério arrancado às trevas da mina, começaram a surgir à tona do silêncio ... (Idem, 172)185.

Mas ser poeta é duro e exige não só "a renúncia a certos favores do mundo"186 — o que pode levar até a que os versos não agradem187— mas também todo o trabalho de selecção e burilamento das palavras — a que Torga se refere muitas vezes e sobre o que diz necessitar de muito tempo e esforço; e, além disso, essa dureza advém logo da origem da própria inspiração, que é o pranto e o desespero188.

Se as referências anteriores não nos ilucidam definitivamente sobre o que faz com que A ou B sejam poetas e C o não seja, parece que muito menos nos disseram o que seria ser filósofo. Mas a diferença não é tanta assim. Jacques Derrida, ao abordar a questão da metáfora no texto filosófico, compara de algum modo a metáfora a uma busca do sentido mais primitivo da palavra, ou, o que seria semelhante numa perspectiva ontológica, da realidade. Como à filosofia se atribui essa busca ontológica, haveria nas duas produções humanas algo em comum porque, como já vimos, a filosofia não faz mais do que transformar a linguagem subjectiva numa pretensão de verdade ao juntar o verbo ser à afirmação linguística. De comum, as duas têm ainda a preocupação pela busca de sentido, com uma vertente mais conotativa ou denotativa. As duas exigem uma consciência profunda da realidade e um distanciamento do

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Podia ver-se também Orfeu Rebelde, 35; Nihil Sibi, 17; Odes, 51; e os resumos em Odes, 9; ou Diário XIV, 78.

Orfeu Rebelde abordará as vertentes de inspiração e de trabalho; e Odes e Nihil Sibi terão mais as vertentes de

inspiração.

186

Diário XIII, 116.

187 Cf. o poema ‘Maceração’, in Penas do Purgatório, 40. 188

Vejam-se os poemas ‘Manancial’, in Câmara Ardente, 16-17 e ‘Invocação’, na mesma obra, 12-13. Esta dupla face de inspiração e de trabalho é resumida por João Ferreira Duarte na dupla face do processo de produção poética: a heteropoética e a autopoética. A primeira relaciona-se com o 'entusiasmo’ e apresenta-se como força ou faculdade transcendente; e a segunda relaciona-se com a ‘produtividade’ e apresenta-se como sistema de inter-relações, de associações. (Cf. DUARTE –Modelos de Poesis: entusiasmo e produtividade nos oxímoros de Miguel Torga, in Aqui, Neste Lugar e Nesta Hora, 141-154).

modo mais simplista ou evidente de a ver. Mas neste distanciamento aparece uma das grandes diferenças entre o poeta e o filósofo: alienado por sentimento, o poeta faz da ilusão a metafísica do sentido; situado por vontade, o filósofo faz da metafísica a ilusão do sentido. Com esta ilusão do filósofo não se pretende um agnosticismo, mas repetir a constatação do filósofo que reconhece a precaridade do seu saber. Contrariamente, o poeta, que não se diz iludido (porque aquilo que sentimos e em que cremos não engana porque não são ‘verdades’: trabalha nas palavras como se elas tivessem o dom da fidelidade total ao ser; ou se o diz é porque fez dessa ilusão a condição de suportar a realidade que ele pretende substituir por uma mais humana. Vejam-se os dois últimos versos do poema 'Arte Poética': "e ganho quando sinto a salvação/ No próprio gosto de me ir iludindo"189. Sendo assim, na analogia do poeta torna-se presente a identidade através da união entre a vida e o sonho; e na identidade do filósofo só se pode reconhecer a analogia entre a verdade e a certeza.

No espírito minucioso da análise, o filósofo desconjunta e até desumaniza a realidade e o próprio homem; no esforço de pesquisar e elaborar os símbolos, o poeta toma o pormenor como sendo a realidade; ao refazer uma síntese, o filósofo constrói uma supra-realidade em que o homem aparece como referência ou simples referenciado; no espírito globalizante da intuição, o poeta antropomorfiza a realidade e egocentriza todas as manifestações humanas.

Não raras vezes, a opção humana é apoiada mais em intuições argumentativas do que em demonstrações. E daí que a poesia tenha um poder de convicção que pode não ficar atrás do da filosofia; mas também não raras vezes o brilho externo da formulação das 'verdades’ filosóficas não permite um distanciamento suficiente para lhe perscrutar a ilusão ou a ‘falsidade’. Sucede, ainda, que, se é difícil hierarquizar poesia, também é difícil hierarquizar filosofia. E por estas duas razões, pelo menos, a poesia e a filosofia podem ser instrumentos de convicção, mesmo com finalidades que sobretudo o tempo poderá revelar menos humanas, isto é, menos estimuladoras do compromisso de cada um perante o seu desenvolvimento e o dos outros, mais propiciadoras

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de desigualdades infundadas ou destinadas à satisfação excedentária de um grupo dominante ou, ainda, menos responsáveis perante um sistema ético que possa fazer perigar o futuro da espécie humana em moldes diferentes dos da sobrevivência do mais forte ou da dominância dos indivíduos degenerados fenotípica e até genotipicamente. Quer dizer, a condição de poeta e de filósofo tem duas vertentes: as condições que fazem de alguém ‘dotado’190 filosófica ou poeticamente; e as implicações de o ser. O próximo sub-capítulo procurará desenvolver um pouco mais esta segunda vertente. Por agora, talvez seja útil constatar que aos ‘mentores ideológicos’ ou aos ‘artistas oficiais’ de um regime, de uma seita ou de uma classe que exerceram com grau razoável de consciência própria essa função a história não tem reservado grande lugar, a não ser, por vezes, de hábeis manipuladores de técnicas ou até saberes. Sobre eles não costuma a história fazer mais do que juízos de constatação.

Esta observação não pode ser tomada genericamente como pejorativa na medida em que, como já foi dito, a obra do artista escapa sempre ao seu controlo e pode ser interpretada de modos diferentes por indivíduos ou épocas diferentes. Qualquer juízo de valor que sobre eles se faça tem em conta a finalidade com que os estamos a referir. Por isso, assim como o aproveitamento de uma obra de arte pode ser conscientemente feito com ‘desvio’ da sua intenção, também o não aproveitamento pode pressupor um premeditado juízo de valor em relação a uma finalidade que poderá derivar de critérios externos e alheios à própria obra.

O nascer poeta ou filósofo e o fazer-se poeta ou filósofo não dependem, por isso, só de si nem das circunstâncias que o poeta e o filósofo conseguem controlar: há aquelas circunstâncias que limitam ou impossibilitam e aquelas que favorecem ou até promovem. Uma visão pelo menos aparentemente classista ou despótica dirá, no entanto, que sobrevivem os melhores ou aqueles que se ajustaram e desajustaram de modo equilibrado às circunstâncias; e uma visão individualista ou fatalista dirá que o génio ou o

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Não se entrou aqui por análises de caracterologia, nem se tem em conta as circunstâncias externas de indivíduos com graves dificuldades de aculturação ou então com uma necessidade familiar, social ou política de enveredar por um certo modo de análise, representação ou acção sobre a realidade. Ao usar 'dotado', procura-se distinguir de 'feito' poeta ou filósofo por publicidade ou força partidária. Porque, se estes não perduram, o certo é que influenciam directamente no momento e indirectamente nos sucessores; e enquanto eles medram outros podem

destino determinou que assim seriam. De facto, muitas das circunstâncias que se podem considerar desfavoráveis a Camões foram da sua responsabilidade; mas também não se poderá afirmar com certeza que a perseguição a Galileu não teria travado e até prejudicado irremediavelmente descobertas de cujo valor e de cuja falta só se dá conta quando se lamenta que a sua revelação se não tenha dado antes ou que a humanidade precisava absolutamente de algo não descoberto ou até criado.

Uma ideia tem de ficar assente, mesmo antes de ser analisado o significado do diletantismo ou do proselitismo artístico e filosófico: o poeta e o filósofo estarão sempre com um pé dentro do presente e outro dentro do passado, e as mãos estendidas para o futuro. O coração e a cabeça poderão estar mais num tempo ou noutro, não concordando até muitas vezes uma com o outro nem sobre a melhor fonte de sentido, nem sobre os modelos de metáforas, nem mesmo sobre o sentido da própria vida.

1. 4. Finalidade e Meio na Arte e na Filosofia

O vulgar conceito de 'arte pela arte' não é sinónimo do sentido em que já

foi usado neste trabalho. Acompanhando Fernando Guimarães, tinha sido definido o formalismo na arte como essa capacidade que a arte tem de representar, ou, melhor, simbolizar o universal do homem, nomeadamente da emoção e sentimento. Nessa medida, a metáfora poética seria uma espécie de transcendental kantiano no qual era possível rever as emoções e sentimentos particulares. Claro que, ao contrário de Kant, este transcendental tinha muito de origem na experiência do poeta, a não ser que se propusesse a hipótese de o génio poético preceder a experiência e só se servir dela para ilustrar o seu formalismo. Neste sentido, então, a 'arte pela arte' seria essa capacidade de elaboração metafórica, de algum modo formal, que a faria tornar-se cada vez mais metafórica e cada vez mais expressiva da diversidade sem se prender a

estiolar. E não chega dizer de alguém que seria muito bom poeta ou filósofo, se pudesse ter escrito: é preciso que o trabalho dele se possa revelar.

um particular. Apontaria para o que também se designa por arte pura, na expressão do Padre Bremond.

O outro sentido de 'arte pela arte' pode ter pelo menos uma dupla apresentação: a da arte sem qualquer preocupação pela moral vigente e a da

arte para manipulação e até destruição191. Onde mais se fez sentir este

segundo sentido parece ter sido na escultura; e o primeiro sentido esteve bem patente também na pintura — para já não falar na sétima arte. O carácter global destas formas de arte torna-as mais imediatamente influentes — apesar da imediatez de percepção não ser sinónimo de influência a longo prazo. Uma classificação profunda da pintura e da escultura poderia desfazer alguns destes preconceitos de valorização não estética da arte ou descobrir vertentes de preocupação valorativa naquela arte que parece não sofrer contestação estética. Na realidade, de entre a arte que se apresenta como simples exercício de expressão há a que se destina a exercitar a habilidade académica e aquela que enquadra essa expressão num contexto de revolução ideológica e cultural192. Do mesmo modo, a arte de regime ou apologética pode não passar de um mero exercício de habilidade ou pode apresentar-se com uma profunda capacidade de simbolização que não se deixará abarcar pela finalidade