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2. RELAÇÃO, CONDIÇÃO E OPÇÃO DE ANTEU

2.1. A Relação de Anteu

2.2.1. A condição do meio físico

Geófago insaciável,357Torga é habitante do torrão, da cidade e do

mundo. É um caminhante marcado pelo torrão que o viu nascer: um torrão de

fragas que só cavadores honestos transformam em pão e rogas assalariadas transformam em vinho. Tirando a exuberância da paisagem brasileira que conheceu em Minas Gerais, só a paisagem alentejana rivaliza na inspiração e na plenitude com a de Trás-os-Montes. Nesta, o ar masculino vem da rudeza e do rigor do clima; naquela, essa masculinidade vem da coragem que o alentejano revela ao enfrentar solitário a imensidão da paisagem. O Minho, verde, monótono e matriarcal, não o seduz, a não ser no que tem de alturas: a solidão transcendente do Gerês e a natureza virginal do Soajo. E o deserto, como o de Moçâmedes em Angola, também o não atrai nem desperta poeticamente.

No entanto, Torga não suportava facilmente a distância física em relação aos centros de maior movimento social. Aparentemente, era para contacto, como vimos, com a produção cultural; mas a solidão só o atraía como necessidade poética, não como estado social: "com a febre da criação, vinha a sede da cidade. Apesar de tudo, era nela que havia cinemas e convívio. E aos sábados, depois do último doente auscultado e medicado, não andava, voava através dos pinhais e dos lameiros que me separavam da estação"358. Vai ser, por isso mesmo, a proximidade de centros culturais de estudo, de movimento editorial e de convívio tertúlico a grande razão para montar consultório em Coimbra. A consideração pelo ambiente citadino não é a maior, apesar se

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sobre ele reflectir e até de o aproveitar poeticamente. De Lisboa, por exemplo, o que ela tem de melhor é o Tejo e do Porto o melhor é a linha de comboio que o leva pelas margens belas do Douro ( o Doiro, que Torga usa ) até Trás-os- Montes. Das várias cidades que Torga conheceu sobretudo na Europa, as opiniões são diversas; mas deprecia sempre as que aparecem com ar de prepotência, dominância ou desenquadradas em relação à paisagem física e, sobretudo, em relação à paisagem humana; e aprecia sempre aquelas em que a arte e a vida parecem ter conseguido uma harmonia útil às pessoas.

O temperamento rural de Torga não o impedia de ser educado e até cordial, sobretudo quando era anfitrião na sua terra e mormente na sua casa – onde servia o vinho fino da região e explicava a beleza da paisagem359; mas não lhe permitia deixar sem resposta uma ofensa feita à sua dignidade e honradez por um político, uma devassa mórbida ou sensacionalista de um jornalista ou uma atitude incoerente ou oportunista de um falso amigo.

Para além de correr o seu país, Torga procurou conhecer a Europa e o resto do mundo. O maior lamento é o de não poder ir, no Continente Asiático, para além de Macau e das antigas possessões portuguesas na Índia: gostaria de conhecer o espaço onde a imaginação colocou O Senhor Ventura.

Mas o que procurava Torga em todas essas viagens, correrias pelo mundo, esse revisitar de Espanha e esse pesquisar de recônditos de Portugal? No resto do mundo, nomeadamente na Europa, apreciava a cultura desenvolvida, o modo como a humanidade foi satisfazendo simultaneamente a fome de pão para o corpo e para a alma, bem como o funcionamento das instituições mais ou menos democráticas; na Espanha procurava completar a sua cidadania ibérica e apreciava a altivez e honradez espanhola – se bem que maldissesse a arrogância castelhana; nos recônditos da sua pátria, procurava o Portugal nuclear, aquele que nos definia como nação e donde podia vir o sentido da nossa identidade, o orgulho da nossa história e até a esperança do nosso futuro.360 Era com dor e preocupação que reconhecia a descaracteriza- ção de muitos desses recantos, passado algum tempo após uma visita anterior.

358

A Criação do Mundo, 192.

359

De tanto conhecimento da terra portuguesa dirá ele que retirará pelo menos um proveito: não estranhará a cama, seja enterrado onde for361.

Quanto mais não fosse, por este constante desejo de conhecer o seu país, Torga não merecia que tivesse sido posto em causa o seu patriotismo – que, pelo menos uma vez o levou à cadeia362.

Torga parte de S. Martinho363 e sente necessidade de lá vir "enxertar de quando em quando a debilidade nesta cepa"; mas ao mesmo tempo que se sente desfasado longe da sua terra, também se sente mal ao regressar a ela364 – pela estreiteza de horizontes que ela apresenta e, sobretudo, por ser encarado como estranho pelos seus antigos iguais, a quem também não consegue libertar desses estreitos horizontes. É no seu torrão natal que até um dia de caça lhe sabe melhor. É lá que ele pode viver melhor "uma história das minhas, que meta pedra, terra, violência, pragas, força e esta vontade telúrica que vive em mim como o coração"365.

Mas mais que o gozo pessoal ou a protecção acariciada, o seu berço natal pode dar-lhe a vertente da sua referência pessoal e, de algum modo, a sua identidade:

"falar duma encosta coberta de neve sem ter a alma branca também, retratar uma folha sem tremer como ela, olhar um abismo sem fundura nos olhos, é para mim o mesmo que gostar sem língua, ou cantar sem voz. Vivo a natureza integrado nela. De tal modo que chego a sentir- me, em certas ocasiões, pedra, orvalho, flor ou nevoeiro" (Diário II, 72).

Juntando a isso a experiência e o conhecimento da distância, do além e das grandes obras, pode-se assumir sem perigo a dimensão universal: "só depois de bem avaliar as suas características particulares e de as caldear no grande lume universal, pode um qualquer ser ao mesmo tempo cidadão de Trás-os-Montes e cidadão do mundo"366.

360

Não deixaria de ser interessante ver até que ponto Fernando Pessoa não influencia Torga ou até se não haverá um certo sebastianismo vieirista – que pode explicar os comentários amargos e duros que os governantes do pós 25 de Abril mereceram por não cuidarem de conciliar os portugueses para a formação da identidade nacional.

361

Diário VIII, 11-12.

362

Esteve preso na cadeia do Aljube de Dez. 39 a Fev. 40.

363

"S. Martinho de Anta não é um lugar onde, mas um lugar de onde..." (Diário XI, 31).

364

Diário I, 69 e Diário I, 11-12, respectivamente.

365 Idem, 77. 366

Esta ânsia, aspiração e responsabilidade universais são uma constante, embora com raízes na sua terra: Torga é claramente um cidadão da nação e

da Ibéria.

Muito do que se tem dito e escrito sobre o iberismo torguiano deverá entender-se numa dupla dimensão: o sentido de universalidade do homem como ser sem fronteiras – de que a Espanha representaria materialmente a união, a não prisão, a saída do limitado; e também a expressão política do seu anarquismo – de que as várias províncias exemplificariam a não subordinação a um poder centralizado e tutelarizante. Não parece de interesse, por isso, nem de grande fundamento perspectivar o iberismo de Torga como uma subalternização da sua nação. É esta também a perspectiva de José Maria Moreiro quando diz que nos Poemas Ibéricos se manifesta um amor à pátria e

um sentido universalista367. E igual sentido têm as palavras citadas por

Carminé Nobre acerca do comentário sobre a Serra Amarela: "mora nela o sopro claro das livres asas e o riso aberto dos grandes sóis"(...). "É o Portugal nuclear, a Ibéria na sua pureza essencial e granítica"368. É esta imagem de pureza e grandeza que estimula essa comunhão entre os que aspiram a encarnar a condição humana, os que se irmanam na luta pela liberdade e os que gozam com os sinais de grandeza humana. Nos "Heróis" dos Poemas

Ibéricos há os guerreiros, os santos, os navegadores, os poetas, os filósofos e

os pintores. E em todos eles Torga ressalta a grandeza que os torna mais homens ou homens exemplares. De Goya, admira o ser "homem oposto aos

homens/ que o não souberam ser"369 e em García Lorca vê o símbolo da

poesia, do povo e do sonho da Ibéria e, por isso, é normal "um pobre poeta da montanha/ trazer torgas à rosa de Granada"370.

É, portanto, simbólica a Ibéria. Não deixaria de ser uma pátria mais completa, essa pátria no sentido em que ele fala no Prefácio dos Contos da

Montanha:

"a pátria é um íman, mesmo quando a universalidade do homem, como neste preciso momento, sai finalmente dos tacanhos limites do

367

MOREIRO –El 'antepenultimo' dia de la Creación de Miguel Torga, 363-374.

368

NOBRE –Três Poetas: Eugénio de Castro, Afonso Duarte , Miguel Torga, 54. É numa visita a Vilarinho das Furnas, a que se refere no Diário III, 105-107. A citação é da página 106.

369 Poemas Ibéricos, 61. 370

planeta"371. Mas objectivamente a Ibéria é uma unidade: "um verdadeiro continente, pela singularidade da sua fisionomia física, rácica, idiomática, cultural, económica e política. Mais do que um aglomerado de regiões, um conjunto de nações (...). Nações unidas por uma fatalidade geográfica e por uma teia de cruzamentos históricos, mas tão vincadamente originais que as fronteiras de cada uma, mais do que no mapa, estão traçadas na alma de cada filho" (Diário XIV, 36).

Da pátria que lhe foi destinada, mesmo com barreiras artificiais, diz que seria capaz de viver longe, mas só "na situação de emigrante que ganha o seu pão... Nunca poderia viver fora dela como escritor. Faltava-me o dicionário da terra, a gramática da paisagem, o Espírito Santo do povo"372. E se bem que por várias vezes mostrasse pena por a cultura da sua pátria não ser maior, não deixava de considerar que qualquer pátria "é uma comparticipação íntima nos pensamentos e obras desses mesmos indivíduos" (que falam a mesma língua),

e não a rua em que eles se encontram373. O que lhe custava a ele era ser

"expatriado na própria terra"374. Mas não deixava de ter tiragens do que se pode considerar um nacionalismo lúcido sobre Portugal. Sobretudo as páginas 141 e 142 de Traço de União – quando se refere ao papel de Portugal na relação luso-brasileira- são disso um exemplo: terra singular, cheia de sabedoria humana, coerente na história, sempre referenciado, servidor e não dominador, pleno de qualidades miúdas mas de valor.

Não é, portanto, com conotação política que Torga fala de iberismo, apesar de considerar que "a ideia de nação... não é de certeza a última palavra em matéria de arrumação do mundo"375. E não é o único a reconhecer o que até a história cultural ensina: Portugal e a Espanha já estiveram unidos, até na língua e no intercâmbio cultural, a ponto de muitos autores escreverem em castelhano. António José Saraiva376 refere muitos destes intercâmbios e de movimentos ondulatórios de atracção-repulsão entre Portugal e o resto da Península Ibérica. E outros houve que, como Oliveira Martins, encararam até politicamente esta relação.

371

Contos da Montanha, 10: Prefácio à quarta edição, de 1968 – ano da alunagem.

372 A Criação do Mundo, 295. 373 Diário V, 72. 374 Ibidem. 375 Diário VII, 104. 376