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2. RELAÇÃO, CONDIÇÃO E OPÇÃO DE ANTEU

2.1. A Relação de Anteu

2.2.2. A condição do meio social

A sofreguidão com que Torga percorria e esquandrinhava a paisagem

mais recôndita ou perscrutava o monumento mais singelo ou insólito tem correspondência no ardor com que percorria as livrarias e com o tempo e esforço que dedicava à leitura377. Parte do seu pensar pode ter aí alguma influência, se bem que diga de si que tem uma "maneira gratuita e virginal de ver o mundo" e se considere "depoente voluntário dos acontecimentos que testemunhou" e "repórter inquieto dum quotidiano sem fronteiras"378. É possível encontrar várias referências comparativas que podem, essas sim, ajudar a delimitar o seu ideal, sobretudo estético.

O meio social aparece também referido na perspectiva de dissidência de meios e movimentos artístico-literários ou ideológicos e até abandonos de amizades; mas é essencialmente abordado com um ar de algum lamento ou altiva indiferença pelo desprezo a que era votado nos meios oficiais das letras. Quanto a lutas, não se mete claramente, deixando os desabafos para o

Diário379. E o que não fez mesmo foi sair a terreiro defender o valor da sua obra. Nem sequer revelou alguns golpes torpes de que teria sido vítima e cuja consciência será tardia. Para tal – e para conter lamentos – serviria o sétimo dia d'A Criação do Mundo, que, por isso mesmo, não foi escrito.

Finalmente, parece ser mais significativa a perspectiva da relação de Torga com os outros, sejam eles de que meio e condição social forem, mas de preferência que tenham o perfil de robustos cavadores, de bons profissionais ou de intrépidos homens do mar – onde a lisura de intenção e a honradez de actuação possa ser vista como hino à dignidade humana em geral e meio de apologia do modo honesto de ganhar a vida.

Torga não é um autor de citações, como vimos, mas terá necessariamente sofrido influências, isto é, terá pensado, vivido e escrito, pelo

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Por razões de vária ordem, que não foram explicitadas mas que podem ter sido simples, não foi possível o contacto e muito menos a enumeração das obras da Biblioteca de Miguel Torga. Em Anexo IV constam só as obras e/ou autores que ele menciona, pela ordem cronológica de referência nas edições estudadas. Se em muitos casos a posse da obra não significa a sua leitura, neste específico a presença da obra significaria que foi lida pelo menos uma vez. O que não seria garantia, no entanto, de concordância ou até de influência, pelo menos directa ou consciente, evidentemente!

378 Diário I, 45; Diário X, 10; e Diário XVI, 129 ; respectivamente. 379

menos em parte, como os outros. Deixando de lado as mais evidentes, referidas à religião e à situação histórico-política do país e da Europa, importará também considerar os seus ídolos literário-ideológicos. Da vertente ideológica exclui-se por razão de evidência pragmática a mentalidade herdada de uma família em que a honra, o valor do trabalho e a tenacidade da vontade eram consideradas condição necessária e também suficiente para o tornar o homem respeitado, para superar a adversidade ou até melhorar as condições de vida380 ou, em resumo, para realizar qualquer homem.

Álvaro Manuel Machado, ao abordar este tema sobre Torga, distingue dois tipos de modelos que um autor pode ter: os de referência e os de produção381. André Gide, que é um dos autores mais referenciados por Torga, como para os da Presença e para outros que dela se afastaram, não terá deixado muitas mais marcas do que uma certa admiração ou até afinidade pelo modo como a existência poética é encarada. Outra influência do género será Amiel382, que Torga terá conhecido antes de ler uma biografia sobre ele num hotel familiar de Martigny, perto de Genève, na Suíça, através de Mademoiselle Marguerite. Dele restou algo de comparação autobiográfica capaz de merecer o lugar de epígrafe em todos os volumes do Diário de Torga. Álvaro Manuel Machado enumera sucintamente ainda influências de Dostoievsky, Virgínia Woolf, Aldous Huxley, Charles Morgan e Thomas Mann. Algumas das evocações feitas por Torga são aproveitadas para comparar com autores portugueses, como acontece quando refere Charles Morgan e Eça de Queirós – na sequência do que critica Camilo383. Claro que por cima deste modelos episódicos estão os intemporais: Unamuno, Cervantes, Shakespeare, Dostoievsky e Calderón de la Barca.

De qualquer modo, as referências explícitas a estes modelos não terão marcado muito mais do que o sedimentar de convicções ou de dúvidas, isto é,

380

O apelo ao dever cumprido, ao trabalho como forma de dignificação e de honra de cada um e o respeito por quem pelo menos aparentemente o merecia eram recomendações constantes do pai, nas cartas – e Torga comenta essa preocupação do pai. Esta mentalidade levava-o a reconhecer uma certa frieza de elogios, não habituais na família.

381

MACHADO, Álvaro Manuel –Génio Nacional e Modelos Estrangeiros: reflexões comparativistas sobre Miguel Torga, 285.

382

"... herdeiro do Rousseau das Confessions, ... apagado escritor suíço do ‘mal du siècle’ da segunda metade do século XIX" – Idem, 286. Terá vivido de 1821 a 1881 e tem a edição póstuma de Fragments d'un Journal Intime.

383

De entre outras, podemos retirar esta pasagem: "Há um tal mau gosto em toda a sua obra, uma tal vulgaridade, um tão acentuado localismo, uma tão ingénua maneira de olhar as almas e os problemas, que nenhum dos seus numerosos livros consente sequer uma leitura sem tropeções de um português, quanto mais o reparo curioso de estranhos ..."(Diário I, 191).

terão ficado ao nível da referência. Mas esta é também originada pelo olhar atento e comprometido de Torga que perscruta o circundante e lhe dá depois a forma poética mais conveniente, isto é, mais ajustada ao sentimento que lhe provocou e mais capaz de despertar num possível leitor o reverso humano da poesia: compreensão do envolvente e sentimento e sentido para a peça que é cada um; ou explicação do presente e teimosia para o futuro. Não sendo poeta de circunstâncias, é poeta de ocasião; não podendo deixar de ser poeta, é poeta de todos os homens e do homem todo. Assim se compreende o seu sentido de presdestinado e de profeta: condenado a ser poeta, tem de encontrar no labor poético o sentido que se lhe escapa noutra esfera. E então se entende porque é que o primeiro verso é dado e os outros são trabalhados384. Mesmo sobre estes modelos, e sobretudo sobre estes, Torga sedimenta um conteúdo cultural mas não constrói algo que se possa dizer reproduzido.

Nestes outros com quem Torga teria aprendido algo ou, pelo menos, de quem teria recebido hipóteses de correcção para aperfeiçoamento, deveriam incluir-se os críticos de arte, nomeadamente críticos literários. Talvez se possa afirmar com mais rigor que houve mais críticos silenciosos do que críticos maldizentes. E se neste grupo incluíssemos autores de antologias, ainda poderíamos acrescentar o número dos que optaram pela pior das críticas que é

o silêncio malvado385. Já em 1962 Rui Polónio Sampaio se dava conta do

silêncio dos críticos perante a obra de Torga386. Mas esta atitude, que à primeira vista poderia conduzir-nos a um comentário não menos criticável numa perspectiva valorativa, pode ser compreendida mesmo para além dos parâmetros do enquadramento ideológico-religioso, sócio-político, ideológico- literário ou psico-sociológico: não mencionar Torga ou não o incluir em Antologia poderá ter a ver com o pelo menos aparente ateísmo e até satanismo torguiano, com a sua feição de esquerda socialista, e ao mesmo tempo com o descompromisso em movimentos literários organizados e com o feitio altivo e sociofóbico; não o criticar pode significar também uma incapacidade de o

384

Mais que uma vez Torga reconhece esta vertente de ‘inspiração’ que precede o trabalho árduo da produção poética.

385

Um certo lamento por esta forma de tratamento tem justificação. Para além doutras antologias, a de NEVES e FERREIRA –800 Anos de Poesia Portuguesa– tem qualquer autor menor e nada produzido por Miguel Torga.

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abordar, de o caracterizar e de o apresentar resumido aos leitores. De algum modo, poderia haver neste grupo de silenciosos homens cuja honestidade os impedisse de falar do que não alcançavam plenamente; ou, pelo menos, homens cujo medo de elogiarem ou de aconselharem as obras do autor sem fundamentarem seguramente a opção os levasse a preferir o silêncio.

Por estas razões, pelo seu feitio e pela descoberta (algumas vezes muito tardia) de algumas atitudes menos correctas, menos justas e até menos dignas, tem de ver-se Torga também contra os outros. A indiferença e até desdém que mantinha em relação à maior parte dos críticos foram notórios e até acintosamente mantidos. À crítica muitas vezes maldizente ou até maléfica sobre uma obra, vai responder com a produção de outra e outra.

Na atitude de rejeição de dogmas impostos ou de catalogação em correntes que lhe coarctassem os movimentos teria de estar subentendida a possível rejeição ou até o simples esquecimento do autor. Com necessidade de se afirmar sem a menor sombra de o não fazer senão por esforço e valor e, consequentemente, por mérito, Torga vai deixar de lado até os circuitos comerciais da literatura. Assim, se as suas obras tiverem saída, não poderá criar-se-lhe o desânimo do interesse ou valor que adviria da hipótese da venda ser efeito da publicidade.

Mas que Torga deu conta de ser desconsiderado parece evidente. Fátima

França Neto387 menciona duas provas objectivas e uma subjectiva dessa

constatação: não faz parte de Um Século de Poesia, da Assírio e Alvim (1988) e das nove antologias estrangeiras saídas entre 61 e 85 só saiu em quatro; por outro lado, as referências que lhe fazem são parcas e não tem sido objecto de estudo e divulgação à altura do seu valor. Casais Monteiro chega mesmo a desconsiderar o valor da obra de Torga por considerar os seus poemas autobiográficos e, por isso, do género dos de José Régio, a propósito do que afirma: "Torga teve a fatalidade – é-o (deve sê-lo) para um poeta de tão desmedido orgulho – de não vir primeiro"388. Felizmente, embora muitas vezes também sem a aprofundada justificação, os elogios à obra de Torga são bem

387 NETO –A Palavra e a Vida na Poesia de Miguel Torga e Giuseppe Ungaretti e outras reflexões,380-381. 388

mais numerosos, tantas vezes resumidas no lamento de que o estudo sobre ele não seja tão vasto e diversificado quanto seria merecido e, sobretudo, útil. David Mourão-Ferreira abre o capítulo sobre Torga em Lâmpadas no Escuro, exactamente com este lamento. E do sugestivo capítulo, para além de outras conotações relacionadas com o possível papel da poesia e também da literatura em geral, poderíamos mesmo aproveitar para o escuro que Torga teve de vencer – de algum modo partindo do escuro da sua existência e da solidão enclausurada da sua luz. Felizmente, no entanto, já se passaram quase vinte anos sobre esse lamento e pelo menos o número de interessados no obra de Torga tem aumentado. Veja-se, a título de exemplo, a quantidade e novidade de nomes que constituíram os oradores do I Congresso Internacional Sobre Miguel Torga, realizado no Porto em Março de 1994, ou o facto de até antes ( Outubro de 1992 ) se ter realizado um Colóquio Internacional sobre ele em Massachusetts. As reedições dos Novos Contos da Montanha, dos Contos

da Montanha e a entrada do autor como opção no ensino secundário anunciam

mudanças seguras.

Que o autor mostra claramente o desejo de ser ouvido/lido é perfeitamente confirmável pelas metáforas em verso de desassossego, solidão e movimento do poema ‘Testamento’:

Meu testamento de poeta, quero Que fique na pureza destas ilhas, Gravado pelas ondas sem sossego. Para que o leia o sol,

E o vento,

E quem goste da Vida em movimento.

(...)

Talvez que finalmente seja ouvido,

(...)

E que o farol, à noite, quando alguém vier,

Ilumine o que eu digo, e o deixe ler Até ao fim (Diário IV, 46-49);

ou pelas metáforas de contradição do vento e dos rochedos, do poema ‘Marca’:

Um verso, ao menos, nestas serranias!

Que passe o vento sem deixar sinais

No rosto enxuto e sério dos penedos; Que a neve vista e dispa os arvoredos Como um velo de ovelha imaginada;

Mas que fique gravada

Na carne imaculada da paisagem

De uma voz inspirada! (Diário VII, 154);

ou pelas metáforas de ânsia e insegurança do poema ‘Contemplação’:

Mar, seara sem ninhos!

Ave de fantasia, a inspiração

Olha a rama das ondas, e não pousa...

Escrever o quê, na movediça lousa

Onde se muda em espuma o giz dos versos?

Voar entre os azuis da inexpressão... Por caminhos diversos,

Nunca chegar ao fim da imensidão! (Diário VI, 93 );

ou ainda pela metáfora em prosa do pico a gravar na fraga um poema – necessariamente para os homens que procurassem a segurança da fraga, o infinito da altura e a humanidade do trabalho:

"Repouso! (...) Mas cá por dentro o bicho da inquietação continua a roer. Há bocado, na serra, tive ganas de arrancar o pico das mãos de um

alvanel que cortava pedra, e de escrever com ele um poema nas fragas"

(Diário IX, 64).

Sob uma expressão negativa, essa necessidade pode ver-se criticamente expressa no Diário de 04 de Maio de 1974, a propósito da saída do quinto dia d'A Criação do Mundo e da pouca procura que esses dias de revolução continuavam a manifestar: " O V Dia da Criação do Mundo a secar nas montras (...). Se o livro tivesse aparecido quinze dias antes, talvez muitos se felicitassem, não de o ler, mas de o ter nas mãos. Mas saiu... já quando ninguém precisava de exibir credenciais de rebeldia"389.

Torga não é cego quanto à imagem que podem fazer de si e procura compreender-se na sua imagem de "tojo arnal"390: de tanta pancada e pisadela, fechou-se. Mas quando fez esforço por se abrir, entrou muito vendaval pela porta adentro. De todas estas circunstâncias, mais a vontade de afirmar um padrão ético-político não consentâneo com o regime e a necessidade de vencer para se sentir fiel aos seus, seguro na liberdade e útil aos outros, resultou alguém que aproveitava muito as razões para se fechar, recusava subordinações e até reagia bruscamente a críticas nem sempre isentas ou até bem intencionadas, ou simplesmente mal documentadas na sua obra.

389

Nomeadamente nos últimos volumes do Diário, aparecem referências a perdas de amizades e a desgostos por constatar uma certa falta de coerência, ou até de verticalidade, e um certo oportunismo em antigas pessoas julgadas amigas. E muitas das referências ou desabafos aparecem datadas de Chaves! Mas não parece possível aceitar a afirmação que Fernão de Magalhães Gonçalves faz a essa perspectiva: "a sua obra – diz esse autor – foi escrita no passado recente (e está sendo escrita) contra o seu tempo e contra os homens do seu tempo"391. Porque a preocupação de Torga não é escrever contra, mas a favor dos homens. Com o que ele não concorda é com a má-fé deste tempo e o acerto que muitos homens fazem com esse tempo. Isso não. Torga sente- se errado na sua época e critica quem se acerta por má-fé, mas procura despertar o homem para o que lhe é fundamental.

Sendo certo que era de feitio insubmisso, muito menos o seria à indignidade de se fazer conhecido pela força da propaganda – até porque a

propaganda não vai dominar o leitor de amanhã392 – ou pelo consentimento

dos outros: "viver a vida sem o consentimento dos outros, principalmente quando eles a todo o custo no-lo queiram dar"393. E não deixa de criticar o que lhe parece errado, sobretudo numa perspectiva de identidade e liberdade da pessoa: o aventureirismo, a ascensão por favores ou até a citação do nome ou pequena tradução a troco de um almoço ou de um café394.

Torga não é, como dissemos, indiferente às atitudes que têm para com ele. Mas o seu trabalho esforçado e honesto justifica-o e dispensa-o de depender de elogios ou de ter medo de apupos; não exige a coragem que não tem, mas também não deixa a sinceridade no tinteiro: "faço o que posso, à sobreposse. E isso me basta para me sentir justificado no plano social e no plano pessoal, e dispensar foguetes e não temer apupos"395. Mas não deixa de reconhecer que é um risco ser como é porque na comédia da vida, na vida a

390 Diário IV, 42 ( 20 de Maio de 1947).

391

GONÇALVES –Sete Meditaçõs Sobre Miguel Torga, 22.

392

Diário XIV, 94. "Prefiro mil vezes o ódio dos que estão, ao desprezo dos que hão-de vir" – diz ele no início do Diário

X , 10. Assim, poderá ser lido por um leitor sincero do futuro – diz também. 393

Diário XI, 43.

394 Diário X, 86; Pão Ázimo, 77; e Diário VI, 104; respectivamente. 395

fingir que é o nosso tempo, se aparece alguém autêntico, é preciso eliminá- lo396.

Do conjunto dos outros faz parte um terceiro grupo: foi com os outros que Torga deu um sentido mais profundo à sua profissão e à sua devoção; e de modo mais construtivo, serão também estes para quem Torga servirá de exemplo, incentivo e compreensão. E estes são um número suficientemente grande de pessoas dos mais variados lugares, formação intelectual e modos de vida. Em todas elas parece ter-se juntado um quádruplo sentimento: amizade, admiração, tolerância e orgulho. Se os limites da formação intelectual impediam os pais de reconhecerem o valor e alcance poético do filho, a amizade e o orgulho não faltaram; se a admiração e o orgulho dos colegas foram grandes, a amizade que daí decorreu perdurou e manteve-os unidos em confraternizações e até esforços de reconhecimento público; se a tolerância ideológica dos Padres Avelino, pároco de S. Martinho, e Benjamim, da Gráfica de Coimbra, foi apreciada por Torga, a amizade e a admiração não deixaram de surgir em moldes de avaliação objectiva; se o amor de Andrée e Clara seriam o factor de maior apoio e compreensão, não será difícil reconhecer a admiração literária que as duas nutrem pelo marido e pelo pai, expressa com grande isenção sobretudo nos estudos em que a filha analisa vertentes da obra de Torga. Delas não se falará claramente de orgulho porque a sua timidez e recato as colocava sem exibicionismo nas homenagens e sem espaventos nas referências à obra de Torga.

Mas uma análise mais sistemática do conjunto destes outros poderá levar-nos a uma reflexão mais profunda do que a ver simplesmente aqui os amigos (de algumas ocasiões ou de toda a vida), os estudantes (de vários graus e com visitas esporádicas ou assíduas) e os leitores (assíduos ou não, anónimos ou identificados) e estudiosos.

Nestes outros estão não só os que o ajudaram pela vida fora com incentivo moral ou até material – como sucedeu com o casal dr. Almeida e D.

396 Diário VIII, 20. Este desabafo é de Novembro de 1955. Mas continuaria a ser repetido pelos anos fora, com os

Adélia397 onde estudou para fazer o curso liceal, ou o tio do Brasil, ou até o tipógrafo Lara, de Coimbra; estão também os professores Gonçalo e André – que se completavam na crítica e no incentivo – ou até o Alvarenga; ou ainda os médicos e enfermeiros que nas termas e nos hospitais o ajudaram a manter-se vivo, bem como os colegas de caça. Mas o que mais o terá marcado será o início da sua carreira profissional com o reconhecimento que os doentes o preiteavam. Não se tratava de recompensas materiais, que nem sequer lhe seriam tão úteis como o dinheiro da consulta (de que precisava até para custear a edição das obras) e que ele critica no procedimento dos outros colegas e senhores da terra398, mas essencialmente da confiança com que se deixavam tratar e da palavra de gratidão com que, em momento ocasional e sem intenção exploradora, o faziam.

E importa ainda também esclarecer as condições da amizade que mantinha: sem sinceridade e com risco de integridade ou de abdicação, não havia amizade que se mantivesse, mesmo que o corte de relações custasse

muito399. E neste parâmetro têm de ser incluídos os correlegionários

ideológicos da política, quer antes quer depois do 25 de Abril. O sentido e a necessidade de amizade não podiam conjugar-se com uma visão egoísta dos outros nem com benefícios, lucro ou ascensão para si. Por isso, quando esse sentido profundo faltava para a amizade ou quando as relações se desviavam