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2. RELAÇÃO, CONDIÇÃO E OPÇÃO DE ANTEU

2.3. Opção de Anteu

2.3.2. A Opção Existencial

Poderemos descobrir em Torga três formas ou modos de opção

existencial: a retratada, a humanizada e a enraizada.

Comecemos por ver a opção retratada, isto é, Torga como escravo de

Proteu. Torga foi o que com propriedade se pode chamar um escravo de

Proteu. Só não se lhe poderá chamar Proteu porque ao dom recebido teve de

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A Criação do Mundo, 184.

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Poema ‘Esperança’, de Penas do Purgatório, 24.

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Diário XVI, 200.

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“O campónio de Agarez, a caminho da formatura, pragmático, acautelado, instintivamente necessitado de prolongar a espécie; e o poeta, sedento de absoluto, inconformado com a precaridade das coisas terrenas, insocial e rebelde” (A Criação do Mundo, 167).

juntar muito trabalho; e porque quando não falava era também por uma espécie de inspiração do seu δαιμων e não por simples arbitrariedade.

O retrato repetido de si é o de poeta, como já vimos. Essa condição é ao mesmo tempo uma opção, assumida muitas vezes a custo. E este lado custoso tem duas vertentes: a negativa, da ausência – temporária sempre, mas muito sentida – das musas; e a positiva da criação artística que se impõe. O custoso e o gratificante desta vertente são difíceis de separar na medida em que é árdua a tarefa de retocar – segundo um princípio de economia absoluta de palavras – e é desgastante a quantidade de tempo – noites inteiras se insónia – que dedicava à produção poética; e ao mesmo tempo é imperativa a necessidade de escrever. Não raras vezes, e de uma assentada, "cobria de tinta laudas a fio"; "era no próprio bloco de receitas (...) e ao fim de uma procissão de mazelas, que registava freneticamente frases e fragmentos de poemas, que me ocorriam"435. Não pode deixar de escrever, como o crente não pode deixar de rezar436. Custosa era também a crítica e a maledicência por causa do abandono da Presença, e até o abandono de amigos por discordâncias aparentemente estéticas. Mas custoso, custoso, era o desespero que a sua parte poética introduzia na sua existência e o conflito constante com todo o seu ser: nem em férias podia estar sem sentir remorsos de infidelidade às Musas. O gratificante da produção estará na consciência que se vai desenvolvendo em relação ao seu destino de artista, que lhe ia sendo dado

também por incentivos exteriores437, mas que é sobretudo profundo no que

pode ser o génio e a inspiração. Ele prefere dizer que os primeiros versos são dados e os outros trabalhados. E, de facto, inúmeras composições ainda na versão final aparecem com os dois ou três primeiros versos sem rima, nem entre si nem com os restantes do poema. Satisfação vem-lhe de escrever em liberdade, sobretudo debaixo de uma tirania438. Satisfação vem-lhe ainda de poder dizer sobre si o que também António Nobre subscreveria: "os poetas são como os faróis: dão chicotadas de luz à escuridão"439.

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A Criação do Mundo, 191 e 196, respectivamente.

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Diário II, 58.

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Veja-se a referência ao livreiro Lara, cujas palavras "eram as primeiras, desde a formatura, que me lembravam o meu destino de artista, e que o não devia atraiçoar" (A Criação do Mundo, 190 ).

438 Diário V, 60. 439

Satisfação, embora acompanhada de ansiedade, vinha também do livro acabado de editar. E esses sentimentos aparentemente contraditórios acompanharam-no não só pela idade fora como até em relação a edições revistas, sobretudo das revisões que lhe exigiram mais trabalho. É pelo trabalho que Torga presta serviço a Proteu. Se, por um lado, as Musas fizeram algo, por outro, existe um aturado e persistente esforço de humanizar a inspiração e de aperfeiçoar a produção. As referências directas a este trabalho incansável são muitas; mas agora interessam mais as referências também directas ao seu destino ou condenação de poeta – que até numa simples viagem de combóio tem de cumprir – como expressa na ode 'À Poesia'.440 E no mesmo poema reconhece resignado: "Poeta sou e a ti me escravizei,/ Incapaz de fugir ao meu destino";441 e continua, parafraseando Camões: "...Sei que serve quem ama,/ E que eu jurei amor à minha dama,/ À mágica senhora das paixões..." Quinze anos antes, o poema 'Átrio', de Tributo, é bem claro: "Eu que nasci Poeta e quero sê-lo,/ Não posso transigir;/ E o meu barco rabêlo/ Anda no mar em novelo/ Sem que eu lhe possa acudir!"442.

Não tive de Miguel Torga a experiência de um contacto pessoal. O mais perto que estive dele foi, salvo erro, numa manhã fresca de fim de Verão, no Largo da Caldas, junto às Termas de Chaves, talvez em 1992. Devia ser o dia seis de Setembro, pelo ar abatido de debilidade física e triste de quem se despede: Torga refere a hospitalização por falta de ar, devido ao frio repentino, de um de Setembro; e no dia seis refere a necessidade de convalescença mas ao mesmo tempo de ir para Coimbra – coisa que não fará sem passar também por S. Martinho de Anta. Deverá, portanto, ser essa a data. Alguém das suas e minhas relações sabia do meu interesse em cumprimentá-lo e, sobretudo, em saber do segredo e da possibilidade de ser independente do poder, bem como da origem da tenacidade com que enfrentava uma espécie de missão que se impôs e que conseguia manter-se contra tantas adversidades. E talvez houvesse outras razões para uma profunda, embora idealizada, empatia! Mas nenhum de nós sabia do seu estado físico recente. E suponho que me limitei a

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Odes, 9-14. No mesmo poema faz duas perguntas em vez de dois agradecimentos – como faria qualquer um

lisonjeado por ser poeta: "E porque hei-de ter eu nos meus sentidos/ As tuas formas brancas e aladas?" (linhas 12 e 13); e "Porque me destinas/ este cilício vivo de cantar?" (linhas 19 e 20).

curvar ligeiramente a cabeça na sua passagem lenta e próxima dentro do automóvel que o transportava e resguardava; não sei a cara que fiz, mas imagino um misto de ar de confirmação do que procurava saído da altivez do seu olhar sedento e de recusa ou revolta meio infantil pela condenação física em que se ele encontrava. Se veio a sair do carro, foi muito mais tarde. Por outro lado, vim a confirmar, já depois da sua morte e de me ter imposto continuar o encontro desse dia, que havia gente (não digo pessoas propositadamente!) que o acompanhava como quem se exibe junto de um trofeu e se considera, ainda hoje, ao mesmo tempo capaz de usufruir do estatuto dessa companhia para se fazer elevar em consideração. Vem este desabafo a propósito de gente que enche a boca das palavras 'amigo de Torga', mas que não facilita ou até dificulta que alguém queira dar esse amigo a conhecer – para fazer mais amigos, quanto mais não seja, ou – passe a pretensão – para dar mais alcance à obra de um grande homem que, por razões do género, não viu mais pessoas usufruírem cabalmente do seu trabalho e, assim, não se pôde sentir plenamente realizado como homem de doação.

De Torga eu não sabia mais nada do que as referências feitas na comunicação social e outras de pessoas para quem ele falava nas visitas a Chaves; e da sua obra conhecia o que a instrução literária e académica e o acaso e curiosidade me tinham feito ler.

Talvez tivesse sido bom para mim esta falta de oportunidade: não incomodei um homem que sofria por não poder ajudar na medida da qualidade e do alcance que o seu exigente critério impunha; e não corri o risco de expor a minha ignorância (apesar da boa-fé) que o magoaria, porque o seu sentido humanista impedia-o de se considerar um objecto de uso ou de exposição e porque o sentido do seu trabalho era que os outros aproveitassem dele, contestando-o ou completando-o, mas tomando consciência de si próprios.

Não poderei ficar por esta lamentação. E, pelo menos ao jeito da raposa de La Fontaine, terei de dizer: “ainda bem; não sofro de preconceitos”. Não é este o espírito; mas não há outro remédio senão usar os retratos que outros

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deram dele ou o que ele próprio deixou de si – e sobre eles talvez reconstruir a minha imagem dele – com a complacência que ele próprio antecipadamente revelou: "quem um dia quiser saber o que fui, terá de me adivinhar".443 Isto porque, mesmo contando com o que disse de si e que "apesar do pudor com que me confessei ao longo dos anos, ainda fui eu até hoje (em 1983, já com setenta e seis anos) quem mostrou de mim o mais fiel sudário".444

O retrato de Torga não difere muito conforme o artista que o pinta. Até os fotógrafos têm uma certa coincidência em relação ao ângulo com que lhe captam a imagem física: de frente, com ar sereno, rosto fixo no adiante e olhos perscrutadores; ou a quarenta e cinco graus de lado esquerdo, com ar pensativo, qual Moisés que caminha ligeiramente alquebrado com o pensamento nos homens e algo receoso de ferir inutilmente o chão em que pisa. De feições vincadas e de algum modo doridas, parece à espera e já em contacto. Não há arrogância na postura, mas sente-se que só verga esse necessário para se dar conta do chão onde pisa e dos outros que caminham a seu lado. Não pisa o chão para o espezinhar, mas tem prazer em deixar nele as suas pegadas; aprecia a companhia amiga, mas não se sente bem na multidão e recusa a companhia em rebanho sem consciência do motivo da reunião ou a companhia sem finalidade esclarecedora e dignificadora.

É quase impossível encontrar um estudo sobre o autor que não meta uma pincelada de retrato. Vejamos algumas dessas pinceladas. Resumidamente, Torga é apresentado psicologicamente como dominado por uma vontade férrea que o torna de uma persistência inquebrantável e de uma frontalidade que raia a altivez ou até o orgulho. Arrasta consigo uma revolta contra as dificuldades da vida, mas usa-a para as superar e expressa-a sobretudo na análise das desigualdades sociais. Embora independente psicologicamente e fazendo alarde da sua isenção e honradez moral, não deixa de, socialmente, se empenhar perante as dificuldades dos semelhantes – ou dos 'próximos' evangélicos. Este empenho não é, no entanto, resultado de um carácter sociofílico: é mais solitário caçador do que convivente inofensivo; e é mais irmão de família do que militante de associações. De moral ascética e até

443 Diário XI, 37.

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estóica, revela aos outros uma dependência grande da obrigação, embora se mostre também dependente do que aparentemente (e só aparentemente!) é a devoção poética. Politicamente, é bem significativa a caracterização de Ribeiro da Silva: "iberista pátrio". O que não significa esquecer o poema

Pátria445 – onde sobressai uma noção vivida e interiorizada da pátria. A expressão "sou um português hispânico", que Salvato Trigo lhe atribui,446não aparece na edição revista (a 3ª), embora diga que é peninsular e português447. De qualquer modo, é-lhe reconhecida acima de tudo, a sua independência em relação ao poder e até a contestação ao regime fascista, incluindo a preferência que nutria pelo republicanismo espanhol – perante a luta da qual ainda sentiu remorsos de não se alistar para ajudar fisicamente. Os traços

profissionais não sobressaem especialmente, mas a sua dedicação, honradez

e protecção aos mais necessitados é referência normal e, como vimos, foi até deste reconhecimento humilde que tirou força para continuar nessa direcção. Quanto ao estilo, também não há grandes divergências nos seus estudiosos, quer na superioridade da poemática e do contismo sobre o romance e até sobre o teatro, quer no estilo em si mesmo: limpidez, economia, espontaneidade aparente e casticismo apropriado são características que, a par de um polimorfismo métrico e de uma liberdade formal, são sempre referidas. O consenso já não é o mesmo quanto aos traços religiosos nem mesmo quanto à importância ou focalização da temática abordada.

Para não maçar e ao mesmo tempo percorrer uma certa diversidade de facetas e autores, apresentam-se esquematizados alguns traços em Anexo