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1. O LOGOS DE ORFEU

1.3. Poesia e Filosofia

1.4.1. Arte pela arte e arte apologética

Não terá fundamento de razoabilidade nem sentido estético afirmar a

priori a supremacia tanto de uma dimensão grosso modo lúdica ou amoral da

arte como de uma dimensão funcional, pelo simples facto de poder criar-se uma arte que não atende conscientemente a códigos morais estabelecidos ou que se destina a intermediário de um fim que em determinadas condicionantes externas à própria arte se considera bom. O contrário, isto é, negar valor estético a uma arte dentro desses parâmetros, também não será possível de fundamentação, a não ser que imaginássemos o homem sem obrigação de seguir qualquer norma ou que pressupuséssemos a criação artística capaz de ser desprovida de qualquer estética. Parâmetros anteriormente abordados permitem-nos, por isso, afirmar que a novidade não é sinónimo de criatividade absoluta (porque é próprio da imaginação criadora alimentar-se do passado e ter de se contextualizar para ser minimamente inteligível à partida) e que a arte não é mera subserviente de uma intencionalidade consciente: ao narrar a intimidade, mesmo que não haja leitores imediatos, a arte é resultado de um esforço metafórico que inclui e desperta dimensões inconscientes sobre as quais um juízo de valor não é tão linear como sobre a intenção do autor. Na posição contrária, podemos servir-nos deste último argumento para considerar que a obra de arte escapa em grande parte ao controlo do artista (porque a simbologia por ele utilizada tem conotações que ultrapassam a intenção do autor e até da época; e aos destinatários não se impõe uma leitura unívoca da obra de arte, mesmo da arte da palavra). Assim, tal como não é possível retirar de uma obra apologética só a sua finalidade imediata para a julgar boa segundo esse parâmetro, também não é possível recusar-lhe um efeito e substracto simbólico inconsciente que afectará esteticamente os destinatários — e com as respectivas consequências da afectação estética. Se pensarmos que as diferenças de épocas e circunstâncias podem recuperar modelos artísticos anteriores, veremos a sua utilidade estética, pelo menos como alvo de contestação e alternativa, a perpassar o imediato da função apologética que lhe tinha sido atribuída. Também a arte produzida sem o que seria uma finalidade explícita ou um enquadramento cultural normalizado não deixará de

utilizar uma simbologia recuperável conscientemente ou afectadora inconscientemente e de ser aproveitada esteticamente.

Os defensores de uma arte marcadamente apologética confundem facilmente a arte como meio de propaganda ou veículo de um conjunto de valores normalmente vigentes e pelo menos superficialmente aceites194 (ou até claramente defendidos por um grupo sócio-culturalmente dominante) e esquecem não só o lado incontrolável da arte como também a necessidade que toda a arte tem do carácter inventivo ou de imaginação criadora dominados pelo modo como o artista capta, experiencia e traduz a realidade presente, e simboliza a superação do presente pela tentativa de figuração do futuro. Os defensores de uma arte puramente individualista, desprovida de qualquer vínculo normativo e até social, esquecem a sua inserção, fecham os olhos à semelhança dos símbolos com que trabalham e não exercem um sentido crítico sobre os valores que os orientam na sua comparação com os da sua envolvência — para além de serem ingratos em relação ao legado cultural com que se fazem entendíveis na abordagem mais imediata e inicial.

Foram atitudes de oposição demasiado radical que permitiram absurdos de destruição indiscriminada de obras catalogadas como perversas ou de obras consideradas de regime. A primeiras foram identificadas como não sendo sequer arte, porque expressavam o doentio de uma civilização; as outras também não seriam arte porque teriam resultado de uma encomenda, de uma liberdade negada e de um modelo imposto. E com isso pareceu justificar-se tudo.

Ao abordar Os Problemas da Modernidade, Fernando Guimarães refere a opinião de Max Nordan para quem a criação artística que tende para o doentio, o imoral, etc., seria produto de degenerescência. E continua o autor parecendo inclinar-se para uma certa relação de um sentido pejorativo da arte

194

O desfasamento entre moralidade convencionalmente aceite e comportamento moral concreto merecia uma abordagem psico-sociológica. Pelo menos, convém deixar dois reparos: primeiro, não há coincidência total entre os códigos sociais e os individuais, e sobretudo entre os códigos de classes dominantes e dominadas. A moda, por exemplo, é um desvio no gosto generalizado de vestir e só é acessível aos abastados – que a alteram logo que a moda se espalha. Segundo, a generalização do desvio à norma é condição de satisfação pela afirmação pessoal, da diferença. Assim, quando o desvio se generaliza, deixa de ser atraente, e ou se tranformou em vício ou desaparece; e haverá necessidade de fortalecer a norma para valorizar os comportamentos desviantes, tal como é necessário reduzir os níveis de arbitrariedade para que a contestação não seja radical. Repare-se, por exemplo, na coincidência das casas de prostituição tradicional junto dos templos religiosos, nomeadamente quando a prostituição era um desvio mais ou menos controlado e até circunscrito espacialmente!

pela arte com um amoralismo a que conduziu a crise contemporânea de valores195. A justificação filosófica desta atitude artística poderia encontar-se num processo simples: perda de crença no valor da razão, abandono de uma certeza corporalizada na morte de Deus, de Nietzsche, guindar da vontade de querer viver ao grau mais alto do comando da existência, precipitação no absurdo (sem a razão e a certeza), necessidade de apaziguar o nada ou o absurdo, produção da quietude ou do nada identificável196 . Na sua opinião, este período valeu pela descoberta da importância da produção textual, da procura de simbolismo, em vez de uma preocupação quase exclusiva de representação. Mas não se poderá deixar de considerar que, apesar de toda a arte procurar ser vanguarda da situação, a liberdade do artista se situa entre a liberdade objectiva (como dizia Hegel) integrada na sociedade e a "liberdade livre" de que fala Rimbaud. Reconhecendo uma liberdade limitada à produção do texto, até o artista de vanguarda depende da mediação do meio; e o demasiado da sua subjectividade pode produzir um efeito psicológico contrário ao desejado: não ser minimamente capaz de gerar um novo consenso pelo menos dentro de um grupo social com dinamismo suficiente para levar a mudança ao conjunto da sociedade a que o artista sonhava chegar — e não conseguir, assim, atingir o objectivo fundamental da arte de vanguarda, que é provocar revoluções de atitudes no meio envolvente, tomado pelos artistas de vanguarda como fechado, hostil e até retrógrado.

Vejamos de seguida dois conjuntos genéricos de posições: um que aborda a questão específica da moralidade na arte; e outro que posiciona genericamente o compromisso ou não da arte com uma finalidade exterior a si. O primeiro conjunto pode compreender uma posição neo-escolástica e o modernismo. A argumentação de João Mendes resume esta questão à da relação entre arte e mal. Em síntese, o raciocínio é este: a arte segue uma norma; recusá-la é impossível porque eu tenho de me pronunciar e optar sobre o que é bem ou mal e como artista faço uma selecção de temas, assuntos, etc.; essa norma advirá da filosofia, para que a expressão artística tenha uma visão e expressão totalizadora da realidade; o mal não pode ser belo, porque embora

195 GUIMARÃES –Os Problemas da Modernidade, 34. 196

tenha algum ser, tem-no em pouca quantidade em relação ao que deveria ser; logo, a expressão 'arte pela arte' não tem sentido197. Na sequência deste pensamento, se juntarmos a máxima escolástica de que "bonum difusum sui" poderíamos afirmar que só a expressão do bem poderia ser comunicável ou

apreciável198. É por isso que não haverá arte com finalidade imoral, nem

sequer arte amoral.

A outra posição é a que pode compreender o conjunto do que muitas vezes é designado simplesmente por modernismo, arte livre, arte pura ou até arte descomprometida. Reagindo quase sempre contra imposições valorativas de carácter moralista religioso, estes autores assentam em dois pilares a sua argumentação: a liberdade do homem, e especialmente da imaginação; e a necessidade de não coarctar no homem a diversidade das suas tendências ou potencialidades — coisa que as normas sociais vigentes numa época pretendem fazer para aculturar ou domesticar o homem. A dimensão de liberdade implicará mesmo a negação frontal de todos os valores dominantes e a oposição a todas as formas de norma e poder; a não coacção implicará também o apelo às necessidades mais naturais ou instintivas e até a destruição de construções ideológico-culturais dominantes: a arte estará desafectada da moral.

Num segundo conjunto de posições encontraremos a oposição e a síntese, quer em autores diferentes, quer no mesmo. Jorge Martínez Contreras não admita para a literatura senão um fim em si. A justificação é simples: os comportamentos e raciocínios autênticos surgem da angústia, e não são determinados do exterior; a literatura narra essa angústia; logo, a literatura é autónoma de qualquer outra finalidade199. É de algum modo esse o pensar de Adolfo Casais Monteiro: "as razões e as condições nunca explicam a poesia"200. Ao contrário, Michel Meyer diz textualmente: "a literatura ou é política ou não existe". E como chega a essa conclusão? Simplesmente porque, apesar da autocontextualização, a autonomia literária é muito relativa;

197

Cf.Sebenta, de João Mendes, no capítulo sobre Expressão Artística, 5-9.

198

Só que a inversa também poderia ser válida: todo o apreciável seria bom. Isto se não optarmos por uma posição não extremada e admitirmos que o comunicável da obra será só o que ela tem de bom e que, por isso, em toda a obra de arte existe algo de bom.

199 CONTRERAS –La Ficción Literaria Como Instrumento de la Ética, 34. 200

e sobretudo porque ela tem uma função ideológica ao exemplificar respostas que as ideologias políticas não conseguem dar ou dar a ilusão de ter o poder de resolver os problemas, de defrontar contradições ou de enfrentar ideologias deficientes201. Pinharanda Gomes, especificando a relação da literatura com a religião e a moral em Teixeira Rego, também opta pela não independência da arte: "a literatura raro deixa um dos seus mais profundos caracteres: o vector religioso. A literatura pela literatura é uma equação irresolúvel. Toda a literatura se orienta no sentido da formulação encantatória de princípios éticos, morais..."202. Passemos agora a exemplos de compromissos entre as duas posições. Maria Tereza de la Vieja admite a separação entre ética e beleza no campo do belo; mas no campo do sublime já se trata de uma dimensão não sensível e, então, trata-se de um domínio como o da ética203. Torga, esse, apresenta-se com extremos e com uma síntese. Em Traço de União, a poesia, como a ciência, a filosofia, a democracia, etc., devem servir o povo e devem ter sentido: não se dança por dançar, mas numa festa, na vindima, no magusto... "ao espírito criador de todas as coisas"204. Em Fogo Preso, admite textos criadores (os textos à altura da obra do autor) e textos pedagógicos (os textos à altura do autor da obra). E estes serão até incentivo à perspectiva construtiva

que o leitor entendeu, mesmo que a obra fosse de um autor céptico205. A

poesia pode ser até uma arma de combate — diz ele no poema ‘Posição’206; mas também diz em Odes: "Canto sem perguntar à Musa/ Se o canto é de terror ou de beleza"207. Retomando o texto em prosa, pode ver-se uma vertente mais clara de síntese: criticou os abusos de André Gide, a pornografia, mas considerou a literatura uma soberania sem discussão no plano dos valores; e, sobretudo, pensa que "a literatura não é moral, nem religião, nem política, nem costumes, mas apenas, e sobretudo, a abóbada de tudo isso, a flor de todas as combustões da raiz"208. E isto porque a obra poética pode não falar de bem e

201

MEYER –Linguagem e Literatura, 18.

202 GOMES –A Renascença Portuguesa: Teixeira Rego, 61. 203

VIEJA –Método y Manera, 13.

204

Traço de União, 40 e 60, respectivamente.

205

Fogo Preso, 14 e 15, respectivamente.

206

Penas do Purgatório, 36.

207 Odes, 11. 208

de mal, mas incendeia209. E é aos homens que procura incendiar, porque é a eles que ela se destina. Então, terá sentido a reflexão que Torga faz a propósito da perfeição formal de Flaubert e da necessidade simultânea de ligação ao social: "o artista, ...na medida em que pisa o chão, é com homens que tem de se avir. Ora, os homens vão sempre pelo caminho do meio... Nem arte pura, pois, que acaba por secar como aquelas lindas mulheres junto de quem nenhum conquistador se atreve, nem puro social, que acaba por ser repugnante como as mais humanas chagas dos leprosos"210.

Há nas duas posições opostas vertentes sociopsicológicas também diferentes: uma sociocrática, a determinar uma arte apologética; e uma outra egocrática, a determinar uma 'arte pela arte'. Mas tanto uma expressão como outra têm pelo seu lado exemplos que perduraram na história. A crítica feita à primeira posição poderá orientar-se no sentido de não ser possível superar uma relatividade valorativa e sobretudo estética e de a desaprovação estética ser indispensável à renovação artística; e quanto à segunda posição há a mesma crítica, porque os novos moldes não poderão erigir-se em modelos único, e faz-se ainda um reparo de ordem psico-sociológica: ou essa nova estética não é assimilada pela sociedade e desaparece; ou é assimilada e conduz à constatação de que não era tão destrutiva como o seu autor a pretendia ou considerava, bem como pode conduzir à integração do seu autor no sistema cultural vigente, a partir do que ele mudará a sua percepção sobre a renovação artística.

Faltará ainda reconhecer que mesmo em cada autor o processo de criação artística não é algo acabado nem dispensa aperfeiçoamento técnico. Por isso, há em cada artista a noção constante de imperfeito, tanto sobre a sociedade circundante como sobre a expressão que esse artista segue. Daí que, se exceptuarmos mecanismos externos à expressão e ao gosto estético (como o mercado de arte e a necessidade do trabalho artístico para sobreviver) é aceitável que o mesmo autor distinga obras ou períodos de mero exercício técnico (que podem ser conotadas como diletantismo ou arte de regime, conforme quem as aprecia) e outras obras de marcada intencionalidade, de

209 Cf. o poema ‘Testemunho’, de Tributo, 9-11, sobretudo 1ª e 8ª estrofes. 210

caracterização, recordação ou prospecção ou expressão de intimidade de um eros universalista, expressão da necessidade de se manifestar homem e de

criar uma comunidade humana em moldes de uma religião humanista211. Se

fosse permitido comparar a criação artística com a formação de uma religião e a passagem para o altruísmo e a moral, segundo os moldes defendidos por Francesco Alberoni e Salvatore Veca, poderíamos afirmar que o que se chamará arte pela arte estaria no plano do amor-eros, a arte apologética estaria no plano da razão e que a arte situadamente inovadora estaria no plano da moral, ou amor-ágape — onde se junta prazer, altruísmo e razão. À ingenuidade da orientação por amor — mas com a vantagem de se apresentar universalmente aberta —, acrescenta-se uma orientação racional, que lhe dará eficácia — mas que, no caso da arte, a restringirá ao contexto de conjunto de códigos; e uma arte metaforicamente situada permitirá a satisfação pessoal (quer na consciência da finalidade pré-determinada, quer na realização transferencial de frustrações), permitirá a tradução de ideais ou projectos histórico-humanos e permitirá a participação na produção de objectos de cultura, com os quais o homem tenta vencer a dimensão finita da sua existência e do seu nome. Sem consciência de artista, sucederia o contrário da sua intenção: a arte pela arte ficaria no egoísmo da sua satisfação pessoal e impenetrável aos outros; ou, no caso da apologia, com a redução à razão, abdicar-se-ia de um alcance individualizado da arte, nomeadamente na expressão criadora e na fruição espectadora.

O que fica destas duas vertentes será a arte que o tempo conserva e sobre a qual os contemporâneos ou vindouros manifestarão apreço, admiração

e sentido de exemplaridade212. E juntando essa focagem destinada a

fundamentar o altruísmo moral, feita por Alberoni e Veca, procuraremos encontrar um modelo de arte que chamaremos de apaixonada porque ela terá um destinatário conscientemente escolhido e ao mesmo tempo recorrerá à profundidade do sentimento do poeta. Sobre as duas componentes constitutivas da moral dizem os autores referidos: "a razão sem altruísmo é vã,

211

Haverá na arte um cunho religioso de fraternidade universal. Sendo a arte comunicação do íntimo, não deixa de ser também necessidade a existência da comunidade em que o artista se possa sentir integrado.

mas é igualmente verdade que o altruísmo sem razão é cego"213. Da poesia, especialmente, poderíamos dizer que o poema sem objecto e destinatário é autofilia; mas o poema com destino sem código de sentimento é mera descrição. No poema da vida há uma diversidade de tonalidades e imagens; na vida do poeta há momentos em que a luz se acende e se apaga; na obra do poeta há a parte que os olhos dos outros não vêem, mas que são descobertas pelo sentimento; e há o que os olhos vêem distinto, mas que o sentimento dispersa para abarcar a diversidade da vida de cada um.

1. 4. 2. Um Modelo de Poesia Filosófica

Um texto de Merleau-Ponty214, extraído de Elogio da Filosofia, e que Maria Luísa Guerra utilizava como uma caracterização da atitude filosófica na introdução à filosofia do antigo sexto ano do liceu, referia o sentido da ambiguidade como uma das características buscadas pela filosofia, a par do gosto pela evidência. Buscada porque uma era a ambiguidade de que a filosofia procurava afastar-se e outra a que procurava realizar: procurava afastar-se do enunciado confuso e impreciso, mesmo que com a aparência de verdade; procurava realizar um discurso com uma nova verdade, uma verdade diferente da que era hábito, uma verdade que superasse o que Bachelard diria ser um obstáculo ao conhecimento científico, isto é, a opinião.

Aparentemente, então, todas as portas de contacto se abririam entre poesia e filosofia na medida em que o que nelas passaria era o mesmo transeunte — a ambiguidade — dada a evidência metafórica da poesia. Só que, como já foi referido, a metáfora poética não tem uma infinidade de sentidos ao acaso: visto, embora, sob vários ângulos e percepcionada sob intensidades de profundidade diversa, um texto poético nunca se liberta de um contexto interno, de uma situação externa, de uma coerência estrutural e de uma referencialidade autoral a ponto de não poder ser lícito fazê-lo significar tudo com o mesmo grau de solidez e razoabilidade. E, por seu turno, a

212

Comentando um convite recusado para falar sobre Leonardo da Vinci,Torga dirá que este "começa a impor as suas afirmações sem uma imprensa por detrás a apoiá-lo, sem outros capitais senão os do seu talento" ( Cf. Diário VI, 129). Mas repetirá mais tarde a mesma ideia e estranhará também a proliferação exagerada de publicações.

213 ALBERONI –O Altruísmo e a Moral, 89. 214

ambiguidade da filosofia respeita regras lógicas que também enquadram a intuição de sentido e limitam a versatilidade de metodologias.

Assim sendo, teremos de partir do postulado do universalmente dizível da poesia e do postulado do racionalmente justificável da filosofia. Parece uma evidência infantil, mas se a filosofia faz jus ao seu esforço de justificação compreensível (não concordante necessariamente), a poesia tem de apresentar-se nesse âmbito e com esses predicados: conhecimentos, visão da

realidade fundamental e justificação215. Isto é: com a diversidade de

referências à realidade 'tocante' ao homem e respectiva selecção feita já pelo poeta216, com a diversidade de motivos e móbeis que a relação imaginética e a conotação metafórica permitem e com a possibilidade de descobrir-se na poesia uma coerência interna da 'posição' defendida/preferida pelo autor, é possível chegar pela poesia a uma outra vertente de uma atitude filosófica, que é ilucidar o interlocutor e contribuir para a sua opção pessoal. E mais uma vez há que reconhecer o contributo racionalizador da intuição artística, bem como salientar a insuficiência ou até impossibilidade do discurso meramente retórico ou pretensamente de lógica pura.

Mas este é só um dos pressupostos em que assenta um modelo de poesia filosófica — que servirá ao mesmo tempo para critério de uma boa ou má poesia, juntamente com os parâmetros de estilo, métrica e ritmo. Não é difícil reconhecer mais valor a uma poesia em que o conhecimento da realidade nas suas várias manifestações, mecanismos e estruturas é superior a outra;