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1. O LOGOS DE ORFEU

1.3. Poesia e Filosofia

1.4.3. Literatura apaixonada

Eduardo Lourenço, num artigo diversas vezes citado em que aborda uma relação da literatura portuguesa contemporânea com o desespero que invadiu os seus autores, resume o valor atribuído por vários poetas portugueses contemporâneos à literatura como expressão e alívio do desespero, como meio de comunicação e como arma de combate sócio-cultural. Mário Cesariny já não acreditaria na literatura, a não ser para expressar o não sentido do mundo; para Alexandre O'Neill a literatura seria uma serviçal de qualquer outra finalidade; Jorge de Sena ainda veria na literatura o seu prestígio antigo, mas já a descobriria a braços com um sufoco provocado pela sua diversidade de formas actuais; e Torga acreditaria no valor da literatura em si mesma (não numa forma particular) nomeadamente numa literatura interessada ou

comprometida222. A esta se oporá uma literatura estéril ou hermética, que terá de dar lugar a uma literatura do passado e do futuro. Segundo o mesmo autor, Torga não cairá no perigo do mitomania literária e orientará a sua atenção e

amor pela obra e compreensão humanas223. Aquando da morte do poeta, o

mesmo Eduardo Lourenço dirá que "para ele (Miguel Torga), a literatura é a existência sublimada, não envenenada"; e que "Torga pode ter contestado a sociedade, o poder e Deus, mas não a literatura. Dela faz a auto-divinização do homem"224. Esta admiração pela literatura, nomeadamente pela poesia, pode ver-se expressa com uma referência espantosamente directa no volume X do

Diário: "Borboleta esquiva, a poesia vai e vem, pousa, levanta, afasta-se de

novo, e não se deixa agarrar"225. Criticando nesse mesmo mês e ano um tipo de linguagem sem finalidade social e um tipo de poesia sem dom de comunicação, porque ininteligível, Torga reconhece a necessidade de superar o estilo anedótico de Nicolau Tolentino, mas também de construir sobre o temporal "notações intemporais que o futuro reconhece"226.

Se atentarmos nessa ideia antes referida de literatura do passado e do futuro, teremos de encontrar o denominador comum, que só pode ser a problemática humana. E um olhar profundo dessa problemática vai necessariamente conduzir a um desespero na medida em que a solução para o questionado sentido das vida se impõe necessariamente mas as respostas dadas não satisfazem e as que se procuram não parecem, ou, se aparecem, são movediças. De qualquer modo, é nesse desespero que Torga põe o

despertar dos poetas227. E para Torga esse desespero, apesar de não

resolvido por natureza, não se fecha a uma reflexão; e por isso, e porque se mantém aberto ao contributo da ânsia individual de salvação, é humanista. Sem se alhear do mundo e das suas experiências nele; sem se alhear da actualidade histórica, política e sociológica; e sem abdicar de falar da sua esperança, do seu desespero e da sua revolta, Torga consegue simbolizar

conto ‘Jesus’ feita por Mª Assunção F. M. Monteiro, da UTAD.

222

No sentido de empenhada, nunca no sentido de dependente do poder, de um credo ou de uma ambição egoísta.

223

O LOURENÇO –Desespero Humanista de Miguel Torga e da Novas Gerações, 90-92. De si mesmo diz Torga que é "inimigo figadal do esteticismo vazio e do purismo caturra" (Diário VIII, 98 ).

224

LOURENÇO –Na Morte de Miguel Torga, 48.

225

Diário X, 102.

226

directamente não só essas recordações, sentimentos e visões, mas também ir definindo, pelo menos indirectamente, os contornos de respostas. Mais ainda: a fonte do desespero e a solução possível é a mesma, isto é, a experiência individual da procura, a insatisfação assumida por todos os homens e a ânsia de realização para todos, representada a partir da emoção particular do homem poeta e expressa segundo o génio metaforizador do artista poeta.

Poderemos dizer que são duas as vertentes caracterizadoras dessa literatura apaixonada de Torga. A primeira é a vertente da crença no valor da expressão poética como o melhor possível para traduzir e seduzir o homem: traduzi-lo no que ele é e seduzi-lo para o que deve ser, nomeadamente no compromisso de consciencializar e de o fazer respeitar e melhorar a dignidade da sua condição de homem. A segunda vertente é da própria paixão humanista de Torga em que o sentido de ser homem o faz carregar a responsabilidade sobre os outros, o faz procurar um sentido individual existencialista e o faz também não se contentar com nada do atingido por si ou pelos outros. A aproximação feita no ponto 1.4.1. (páginas 92-99) entre as dimensões de amor e razão e as possíveis finalidades da arte pode permitir-nos aqui reconhecer que a arte apaixonada seria a melhor expressão de síntese entre amor-eros, e a satisfação individual e imediata, com o amor-ágape, e a satisfação colectiva e mediata; e ao mesmo tempo com um terceiro elemento que será a dimensão racional de enquadramento ou contextualização da simbologia e atenção aos outros e de esforço técnico no aperfeiçoamento das formas de comunicação. É talvez aqui, neste individual atento e doado aos outros, que a classificação de existencialista mais se coadune com o atributo do seu pensar e agir: Torga reconhece no aprofundamento da individualidade a condição da humanidade. Nesse aprofundar estão duas dimensões: a recusa do anónimo da multidão, da não consciência do existir concreto e do homem como mero ser de racionalidade e eficácia; e a abertura ao infinito da humanidade, da significação e até da emoção transcendente. Se bem que a fé kierkegaardiana pudesse ser uma fé mais teológica, a fé torguiana não deixará de ser divina, pelo menos como aspiração à imortalidade, abertura ao todo da realização e da perfeição

227 O autor do artigo em causa põe a citação de Penas do Purgatório "O desespero, a madrugada dos poetas" como

humanas e necessidade de evitar o absurdo das contradições imediatas da existência concreta. Compreender este alcance, e o alcance de toda a obra poética, é outra questão, que se coloca quando se pensa no destinatário da obra e na possibilidade de comunicação entre poeta e leitor, como entre qualquer artista e usufruidor. E dela já nos ocupámos anteriormente, quando se referiu a comunicação estética na base de uma intuição intelectual e afectiva, na base de mecanismos inconscientes (colectivos ou individuais) semelhantes, na base de situações vivenciais idênticas, etc., que Eduardo Lourenço parece resumir com a expressão 'pré-harmonia de situações': “toda a poesia contém em si a possibilidade de não ser recebida e toda se dirige a um leitor possível. A comunicação estabelece-se mercê de uma reinvenção ou interpretação desse leitor ideal, mas sobre uma harmonia pré-estabeleciada de situações"228.

Quando se pretende ver o uso também militante da literatura em Torga pelo facto de ele referir, reflectir e procurar lutar contra os males da sociedade, convém não exagerar a perspectiva neo-realista. Esse neo-realismo, herdeiro do realismo da época anterior à Presença, mas com menos roupagem de conveniência e com linguagem mais contundente, sofre muitas vezes de falta de auto-crítica, quer impor à realidade o ponto de vista imaginativo e estimula a crença na necessidade de destruição do estabelecido. Maria do Amparo Maleval contrapõe uma visão neo-realista de Torga a uma recusa da arte pela

arte no sentido pejorativo da expressão229. Mas não nos podemos esquecer

que Torga é mais sensível a uma ética de construção e responsabilidade humanas do que a uma ideologia – ele próprio o diz no Comício de Coimbra, em Junho de 1974. E é na acção concreta de bondade moral que se realizará o sentido universal de cada homem; não na ideologia abstracta ou na apologia desencarnada ou descontextualizada da vivência e da necessidade concreta do homem. A questão da superação da imediatez e do estímulo para o alcance universal do aperfeiçoamento humano terá de ser resolvida pela dinâmica da própria experiência da bondade concreta e particular e pela consciência da responsabilidade pessoal e liberdade ( pessoal e colectiva ). É sobre esta concepção de literatura, combinada com a concepção de responsabilidade

228 LOURENÇO –O Desespero Humanista de Miguel Torga e o das Novas Gerações, 108-109. 229

solidária do poeta, que Torga aponta para este os objectivos da denúncia da opressão (feita por Deus ou pelos outros homens), de crítica às desigualdades sociais injustas e de isenção de visões sectárias, que o levariam a castrar a dimensão ontológica, relacional e comunicacional. É neste âmbito que se entenderá a missão social e política ao artista preconizada em Manifesto; e também pode ser neste contexto que se fala de poesia útil ( de que será

exemplo Manuel Alegre, com A Praça da Canção, segundo Clara Rocha230),

onde se parte da situação política, social e cultural concreta para simbolizar a luta contra a solidão, o medo e a desilusão num plano de romantismo universal que incluirá todas as opressões, todos os medos e todos os silêncios impostos. Qual é, então, o ideal ou o herói que simboliza a paixão torguiana? Se não for extrapolação em demasia, poderíamos dizer que esse herói é o homem dominado pelo poder da vontade, o homem que elogia a vida, o homem que se libertou de uma moral de escravidão – talvez o homem de Nietzsche231–, mas com o individualismo tomado como meio ou suporte da universalidade e não como universalidade sobreposta aos outros; e mais construtivo, ou de um nihilismo mais edificante E se falámos em nomes grandes da filosofia mundial contemporânea que directa ou indirectamente são responsáveis por novas concepções antropológicas e morais, não poderíamos deixar de ver em Torga a paixão pela relação humana. Se bem que propenso à solidão do trabalho e da arte, Torga faz da relação humana ou das relações que tornam o homem mais humano um ponto crucial dos seus contos, dos seus poemas e das suas análises. E nesta linha o conceito de religião de Fueurbach terá cabimento em comparação com o pensar de Torga: se poderíamos objectar que a grande força é telúrica, que advém da mãe-terra, e que ao seu respeito o homem não pode nem deve fugir, o certo é que essa força adquire um sentido maior quando é vivenciada pelos homens. E daí que a relação humana possa ser a grande esperança e o objectivo apaixonado da literatura, incluindo a de Torga232.

230

ROCHA –Revistas Literárias do Século XX em Portugal, 599.

231

Haverá ainda que tentar separar nos dois autores a moral e a religião cristãs: parece que aos dois incomoda mais a aplicação histórico-social do cristianismo à moral (adaptada à herança platónica) do que a religião propriamente dita.

232 A questão filosófica da relação, conforme Fuerbach a coloca, tem implicações que me parece não terem sido

Entre uma expressão de mero devaneio ou diletantismo, ou até simples malabarismo técnico, e uma arte condicionada no seu compromisso humano por restrições de ordem ideológica sectária ou de aparelho crato-partidário, uma literatura apaixonada mantém a fonte externa da inspiração pela atenção aos problemas sociais e culturais conjugada com o génio interno da sensibilidade e perspicácia e não descura o aprimoramento da aprendizagem técnica e do gosto estético. Paralelamente, uma literatura deste género não fará das circunstâncias barreiras ou limites para a aspiração, envergonhando- se do sentir pessoal; nem procurará impor ao social ou no tempo a dimensão restrita do sentir presente –que tende a ser aprisionado na captação do significante, mas que se liberta pela transcendência da comunicabilidade metafórica. Não se trata, portanto, de encerrar o sonho nesta ou naquela realidade nem de afastar a realidade de todo o sonho. E isto porque a poesia não tem limites de extensão nem o sentido humano se contenta com uma satisfação: há uma comunicabilidade para além do consciente e do existente e há uma aspiração ontológica à superação, ao universal ou à transcendência. Esta convicção de síntese do particular e universal pode encontrar-se em muitas passagens da obra de Torga. Vejamos alguns respigos das palavras proferidas em 07/12/58, na homenagem que os colegas lhe prestaram em Coimbra, por ocasião das Bodas de Prata do Curso, com descerramento de lápide na República Estrela do Norte:

"... o homem é um trânsfuga incorrigível do intemporal. Vive a sonhar-se vivo depois de morto. Enquanto há-de amar, entalha a imagem do coração pulsátil na casca das tílias do jardim do amor; e em vez de contemplar o panorama que o circunda, identifica-se no calcário da torre onde subiu. E só a mão severa da realidade, misericordiosamente, o reintegra na dignidade da condição, reduzindo a pó no mesmo almofariz o transitório muito que ele foi e o duradoiro nada que quis ser (...). Sem fé noutra transcendência que não seja a dos actos iluminados por dentro, move-me o simples desejo de manter acesa, sem sombras de desfalecimento, a minha pobre luz de pirilampo... Grito de todos os mudos, coevos e vindouros, e, portanto, suprema forma de acção e de risco, a voz de um escritor, mesmo limitado, quando é pura e sentida, confere-lhe o

processo está necessariamente o do aperfeiçoamento humano, pois é sobre um ideal de perfeição que a religião se constrói, quer para alienar o homem (se ele abdicar da relação), quer para criar uma religião antropológica (se ele mantiver o desejo de perfeição no âmbito da relação humana). O segundo exemplo é mais "devastador": se alguém, um grupo, um estado, ... subjugar outro, nega a essência humana deste e até de si próprio, porque não há outra essência para o homem que não seja a da relação. Ora, nesse caso, os subjugados poderão reivindicar o direito de eliminar quem os não deixa ser homens e quem, no limite, também o não é. Direito esse que no capítulo final poderemos ver enraízado no dever de ser homem, e suas implicações. Neste àparte poderá estar a raíz ou fundamento filosófico do que habitualmente os comentadores de Torga dizem ser o seu anarquismo natural.

direito de enfrentar de cara descoberta os credores absolutos da sua insolvência relativa". (Diário VIII, 172-174).

E não poderia deixar de trazer para aqui o reparo feito por Miguel Torga a propósito do elogio de grandes obras de arte passadas a ofuscar as presentes, tecido por um doente aquando de uma consulta:

"... por caminhos diferentes... o génio criador conseguira nelas o mesmo absoluto: fixar o instante dos acontecimentos, que os relógios da história marcaram e deixaram fugir. (...) a magia da arte tornara (os fuzilamentos de Gaudalajara e de Guernica) perenemente reais e cruciantes" (Diário VIII, 184-185).

Se entendermos que é ao significado dos acontecimentos que o homem tem de se prender e não aos acontecimentos, poderemos clarificar esse sentido de universalidade da arte, partindo, no entanto, do génio individual de quem o fixou na matéria já numa perspectiva de quem o sentiu como homem e não só de quem o sofre como passageiro acidental e/ou acidentado. E no caso de Torga esse homem é simbolizado por ele próprio: egocentrado na fonte de inspiração a partir das suas preocupações, anseios e até medos, Torga alocentra-se no sentido e alcance dos seus poemas; e quando parte da análise exterior faz repercutir sobre a sua responsabilidade as hipóteses de contribuir para a resolução – que parece reconhecer só possível ao nível da sua acção aliviadora de médico e do seu pensamento de poeta interrogante pela liberdade e a perfeição. No anteriormente referido discurso de homenagem, aparece uma das muitas alusões que Torga faz à sua atitude de liberdade e de responsabilidade:

"Com toda a sinceridade de que me sinto capaz, afirmo-vos que nunca escrevi uma página, defendi um ideia ou resisti a qualquer violência contra o espírito senão movido pelo íntimo desejo de cumprir dignamente o meu dever de indivíduo na batalha que se trava desde que o mundo é mundo às portas da perdição colectiva". (Diário VIII, 172).

A paixão literária de Torga tem um sentido humanista, portanto. Mas se esse sentido não implica, e recusa até, submissão aos homens233 e se a sua acção consiste fundamentalmente na sua obra em si mesma – não em

233 Faz suas as palavras de Epicteto ("quem se submete aos homens, submete-se primeiro às coisas") e acrescenta:

construir um mundo que o nega ou em destruir um mundo em que não vive234 – o certo é que a poesia não podia continuar na fase de insociabilidade em que entrou depois de Guerra Junqueiro, segundo Casais Monteiro235. E em Torga é do homem que o poeta fala: "homem de carne , a pensar,/ Só de homens sabe falar/ Mesmo se a alma lhe voa" – diz ele no poema ‘Alegro’, de Sinfonia236; e continua em Nihil Sibi:

O poeta é uma fonte:

Nada reserva para a sua sede; Canta também a dar-se,

E não dorme, não pára" (Nihil Sibi, 9).

Os outros são, portanto, os destinatários da escrita. Ela nasce de dentro do poeta, como a água da fonte; mas ao mesmo tempo situa-se nas necessidades dos viandantes. E duas forças obrigam a pensar que "escrever é um acto ontológico, que compromete perpetuamente quem o pratica"237. E não pode deixar de ser feito por quem se sente medularmente poeta:

Mensagem

Não me posso render, haja o que houver. Salvar a vida pouco me adianta.

O pendão que levanta A minha decidida teimosia, Transcende a noite e o dia De uma breve e terrena duração. Luto por todos e também por mim, Mas assim:

Desprendido da própria perdição. É o espírito da terra que eu defendo, Numa cega constância

De namorado:

Esta causa perdida em cada instância, E sempre a transitar de tempo e de julgado.

(Penas do Purgatório, 64-65).

Mas este compromisso revestiu-se em Torga de duas dimensões: como médico, lutou contra qualquer forma de aniquilamento, e como poeta expressou um ardor indignado e fraterno. Indignado contra todas as formas de aniquilamento do homem atribuídas a injustiças, abusos de poder, manipulações, ... impostos; e contra a cobardia, a mediocridade, a sujeição, ...

234

Diário IV, 118.

235 MONTEIRO –A Poesia Portuguesa Contemporânea, 48. 236

assumidas238. Fraterno porque não se ficou num "abstracto fervor humanitário nem na "seca complexidade dum argumento", mas usou a "singeleza dum verso" de palavra inspirada para arrebatar e uma "devoção concreta", que é um

exemplo abnegado de quem opõe o não da vontade ao sim da fatalidade239.

Um resumo do que pode ser o ideal humano do peta – e de algum modo o seu ideal universalizado – pode ver-se na mensagem enviada aos I Encontros de Poesia, de Knocke, em Julho de 1951: um apelo à fantasia, ao carinho, à esperança, aos ideais mais nobres, à não submissão nem à traição, à união fraterna e à dignidade240.

Sem obededer a compromissos, e fazendo mesmo da não submissão uma condição indispensável do ser poeta, Torga tem sempre presente o máximo compromisso possível do homem com os outros, que é procurar contribuir para o desenvolvimento da sua humanidade – ou do que simbolizará tudo o que é ser homem: a liberdade.

Concluindo: porque há uma pluralidade de dimensões na realização do homem e porque nessas dimensões estão não só as reais mas também as possíveis, temos de admitir diversas linguagens para a razão se expressar. É lícito considerar a literatura em geral e a poesia em particular como uma dessas expressões. E temos simultaneamente de admitir como necessária e digna de constituir sentido, isto é, de ter lugar no conjunto da racionalidade, a vertente da emoção. A poesia poderá mesmo ser encarada como factor de recuperação da unidade perdida com a sobrevalorização da razão lógica; ou até como modo de racionalizar a emoção desconexa e parcelar. Como a interpretação exige alguns referenciais objectivos, como o poeta não se esforçou por encobrir a comunicação mas por clarificá-la, como até ao nível inconsciente podemos encontrar algumas constantes de necessidades e de símbolos e como, ainda, há algumas hipóteses de aprender a interpretar um texto poético, é também lícito considerar que dele podemos tirar uma

237

Diário XVI, 114.

238

Veja-se o poema ‘Rebate’, de Diário VI, 161.

239

Diário X, 148-149.

239

Diário VI, 37-40. Em Anexo II, apresenta-se o texto completo, que é uma página belíssima de prosa poética e de manifesto humanista.

comunicação lógica e coerente capaz de defender um ponto de vista e expressar uma convicção. Isto é: não se poderá dispensar uma certa epistemologia da suspeita, mas sem se cair num pressuposto contrário que seria uma epistemologia criptológica. E assim, por uma coerência na economia textual e por uma redução da suspeita, admitiremos a validade de algumas interpretações. Essas levar-nos-ão ao que essencialmente procuramos: a verdade da ficção, ou o que ela consegue transmitir ao leitor. Temos, no entanto, de pressupor uma legitimidade selectiva por parte de quem se dirige a uma obra à procura de uma resposta a uma questão previamente determinada. Esta poderá ser mesmo a única condição subjectiva que deve ser aceitável e louvável.

Finalmente, como a analogia filosófica se pode considerar constituída