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1. O LOGOS DE ORFEU

1.3. Poesia e Filosofia

1.3.2. Fenomenologia da verdade

Numa afirmação demasiado simplista mas significativa, poderíamos dizer que a poesia dá à verdade filosófica a certeza de ser verdade e que a filosofia dá à certeza poética o alcance universal da verdade. Ao “mas” da experiência pessoal que retira à lógica filosófica a aceitação universal, a poesia dá uma forma que se adapta à necessidade de verdade de cada um; ao “ser ou não ser” da verdade filosófica que procura relativizar o sentimento poético, a filosofia dá conteúdo existencial que prende cada homem à procura da verdade. Em resumo: a fenomenologia da verdade pode situar-se medularmente na busca da certeza. Já vimos que o critério comum na apreciação da arte é o da adesão através de uma vontade enorme de gostar de ter sido o seu autor, fora a admiração pela habilidade do ‘bem dito’, ‘bem feito’, etc., com que expressamos no mais imediato o contacto com uma forma de expressão artística; e o critério mais imediato para aceitarmos a verdade de uma sentença ou explicação é o de ‘tem lógica’, ‘está claro’. Nos dois casos parece que há uma constatação pelo menos inicial de evidência de que as coisas não poderiam ser feitas ou ditas de outro modo. E, então, até uma pintura poderá ‘ter a sua lógica’ e um raciocínio poderá ‘ser bem dito’ ou 'belamente ordenado'.

Se seguíssemos Aristóteles, não poderíamos pensar na verdade de uma qualquer forma de arte: só as proposições das frases enunciativas conteriam verdades e dariam conhecimento; a retórica e a poética teriam só

173 DERRIDA –Margens da Filosofia, 413-414.

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preocupações de convencer e bem falar ou expressar sentimentos ou feitos simbólicos. Então, a poesia e a arte em geral teriam de contrapor à verdade lógica e conceptual a verdade enfática. Teremos, assim, uma nova fonte de verdade: a que merece a nossa adesão e apela à necessidade de aspirar a algo diferente, superior e ainda até inexistente. Isto é, a persuasão é uma fonte imediata de verdade e pode assentar nos domínios não lógicos do sentimento e da crença, mas mesmo assim racionais. Se considerarmos, como a epistemologia moderna, que o conhecimento científico é construído, menos nos repugnará aceitar a forma artística da “verdade”, apesar da sua construção imaginativa, intuitiva e até alegórica.

Já vimos que na produção imaginética ou ficcional a referência e a denotação são subalternizadas ou podem até não existir, pelo menos de modo directo. Mas também já contrapusemos a necessidade da presença da obra de arte para o sentimento estético, e a não necessidade do símbolo religioso para a identificação religiosa. Então, poderemos retirar destas informações uma fenomenologia da verdade semelhante à fenomenologia do conhecer: a presença de um sujeito e de um objecto. Se bem que a intuição estética produtiva possa antecipar-se a qualquer objecto concretamente delimitado, a admiração estética precisa de um objecto presente (embora exija uma capacidade de intuição artística também). A diferença em relação ao acto de conhecer poderá estar no papel desempenhado pelos dois intervenientes — sujeito e objecto. No acto de conhecer, o objecto é determinante, embora não constitutivo; na admiração estética, apesar da necessidade da sua presença, o objecto dilui-se no conjunto de sugestões que provoca ou evoca e passa a segundo plano ou até a mero pretexto para a construção de uma nova imagem ou desencadeamento de uma nova representação. E por isso mesmo, se o objecto de conhecimento não pode posteriormente ser dispensado de presença, para um constante processo de revelação, o objecto artístico só remotamente estará nas novas produções de uma época ou de um autor. Quando falo de um poema épico ou da pintura do renascimento e quando identifico obras diferentes como sendo do mesmo autor, não é o objecto anterior que eu identifico à primeira vista (isso fará parte de uma análise crítica

e gnoseológica), mas a sua capacidade de produzir um estado anímico semelhante. Perante o objecto de conhecimento científico, a verdade estará na identidade das características confirmadas; no objecto artístico, a verdade está na intuição de analogias sugeridas.

Analisando o pensamento de um filósofo chinês, Chan Tun-Sun diz que a significação da realidade e, consequentemente, da vida se elabora com

estrutura, sensa, construções e interpretações.175 As propriedades matemáticas e as sensações externas são mais próprias do conhecimento objectivo; a construção mental e a atribuição de sentido são mais processos subjectivos. Perante isto, teríamos de admitir como fontes de verdade também a visão pessoal ou subjectivamente ocasional da realidade e não só a sensação provinda do exterior ou a sua análise denotativa. A objecção seria a demasiada relatividade, se não fosse o enquadramento nos considerandos já feitos sobre o alcance e limite da interpretação.

No capítulo sexto da obra Introducción a la Filosofía del Lenguage é abordada a questão da verdade em vários níveis, com incidência especial na teoria semântica da verdade. Em resumo, as teorias da coerência, de origem positivista, pressupõem consistência e compreensão das afirmações quer em contraste com a realidade quer em relações de dedutibilidade das proposições anteriores; as teorias de verdade como correspondência apelam para uma metafísica realista e criticam o idealismo mas não de uma metafísica estranha ao sujeito falante e sim de um modo de reacção desse sujeito à sua situação; as teorias semânticas fazem depender a verdade da adequação material e da correcção formal; e as teorias pragmáticas da verdade tornam esta dependente de contextos e a verdade ou falsidade não depende da proposição em si mas da sua referência a situações concretas ou circunstâncias determinadas. Só que todas estas verdades poderiam ser as de carácter filosófico ou científico ou até do senso comum: a verdade poética não exige nem permite total compreensão, embora seja consistente e forte na evidência; não traduz só disposições subjectivas nem sequer exige uma entidade superior a dar-lhe consistência; não suporta a pura adequação material e caracteriza-se pela

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renovação formal e não tem como finalidade última a eficácia dentro de um contexto. Nesse caso, é fácil reconhecer que numa fenomenologia da verdade o critério é o que menos interessa: ele será definido a posteriori por modelos conceptuais conscientemente elaborados. O critério é condição lógica de adesão à evidência da verdade; mas até a procura desta já pressupõe uma convicção mais profunda que é a necessidade de a encontrar e até de a possuir. As condições de exigir e estabelecer sentido já foram em parte abordadas. Para aqui convém ainda chamar o factor vontade — que determina, como vimos, o esforço em aprofundar o sentido; mas determina também a mais primordial inclinação para a verdade, como para o sentido existencial. Embora num contexto diferente, que era o comentário a Wittegenstein, para quem não seria legítimo tagarelar sobre a ética, António Zilhão diz que “a vontade é que instaura a ordem ética. Se houvesse seres só com representação e sem

vontade, então esses seres seriam dispensados de sentido ético”176.

Aproveitando da ideia e aplicando-a à verdade, poderíamos dizer que a raiz profunda da fenomenologia da verdade está na vontade de certeza. E na poesia está bem expressa essa vontade e essa atracção humana pela verdade. Diz Torga:

Versos. Este jejum

Que me permite a santa comunhão Quotidiana;

Esta magia humana Da verdade;

(...)

As pulsações secretas duma vida Que decorre

Mergulhada na luz indefinida

Com que se nasce e morre" (Penas do Purgatório, 17).