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Analogia poética e metáfora filosófica

1. O LOGOS DE ORFEU

1.1. A Racionalidade Poética

1.2.1. Analogia poética e metáfora filosófica

O suporte lógico da metáfora está na analogia, na medida em que algo ou alguma coisa usado para expressar um universal tem semelhanças sensíveis ou, pelo menos, surge como indício mental com esse universal. O suporte da analogia, para além da exigência de recusar um maniqueísmo racional de origem parmedidiana, poderá estar na gradatividade dos sentimentos ou até das simples sensações, que não podem ser medidas por escalas absolutas de objectividade. As duas, a analogia e a metáfora, podem ter em comum uma base intuitiva intelectual ou afectiva que permite construir um modelo por indícios e um significado por imagens.

Nestes processos, há sempre o lado negativo da questão: auxiliares de inteligibilidade e de compreensão, as metáforas são como as escadas: enquanto nos elevam a outro plano, afastam-nos do anterior; mas sem elas

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não vivemos ou, pelo menos, não subimos. Não vive o político, que fala necessariamente de pátria, de líder, de carisma, de burocracia...; não vive o profeta, que fala de salvação, fraternidade, caridade, outra vida...; não vive o cientista, que fala de leis, variáveis e invariáveis, isto é, de constructos, de teoremas...; não vive o filósofo, que fala de ser, de conhecer, de realização, situação, projecto existencial...; não vive o poeta, que fala de fogo, espada, noite, sol, rosa...; etc. Mas as metáforas não são inocentes: “veiculam formas de entender o mundo e de actuar sobre ele... somos prisioneiros das metáforas que utilizamos dado que estas explicam alguns segmentos da realidade, mas mascaram outros”116.

Onde poderá estar uma primeira diferença entre a metáfora filosófica e a poética? A do poeta é bem aceite e parece atemporal. Daí a impressão que a metáfora poética não tem idade e que, ao expressar o íntimo do sentimento ou a repercussão emocional de uma ideia, é comum aos homens sensíveis de várias gerações ou várias épocas; parece que em poesia as metáforas são de carácter cumulativo e não substitutivo. Seria interessante analisar, por exemplo, o que existe de comum entre a poesia que atravessou os tempos ou até as canções que 'arrasaram' nos festivais: o carácter lírico predomina sobre qualquer outro, mesmo sobre o intervencionista. Em contrapartida, quando os compêndios de introdução à filosofia comparam o progresso entre esta e a ciência dizem que a segunda progride por eliminação de leis e acumulação de novos objectos de estudo enquanto a filosofia se adapta simplesmente. Não se nega a manutenção da temática filosófica, pelo menos desde Aristóteles ou até desde os sofistas; mas que as suas metáforas sofrem um ajuste maior às circunstâncias também parece inegável. E isto é tanto mais verdade quanto a metáfora da contradição é condição de equilíbrio na aspiração e realização do filósofo, embora o inconsciente o puxe para a certeza. Já no poeta, a metáfora da identidade é condição do seu necessário repouso, sempre negado pelo seu consciente de ser rodopiante.

Não esquecendo o carácter encobridor da metáfora, embora, como se disse já, a intenção do poeta ou do filósofo não seja encobrir mas revelar,

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temos de a encarar como fonte de segredo que atrai. A história da vida privada seria muito mais ilucidativa do ser homem do que a história revelada. Mesmo os livros não seriam mais do que o guardar de um segredo que, numa espécie de crença na transmissão da verdade, algo superior teria passado através do escritor. Sobretudo para o poeta, que recusa o não-sentido existencial, a metáfora encobre o seu mal-estar em relação à adversidade. Para o filósofo, a metáfora é uma espécie de picada no ser que ele pressente e exige mas que desconhece. A segunda diferença que podemos encontrar situa-se, por isso, no objectivo constitutivo de verdade no filósofo e no objectivo de criar realidade no poeta. Arvorado em sofredor, apaixonado, solitário, etc., universal, o poeta cria uma realidade em que se realiza e que pretende exemplificar para os outros. Consciente das barreiras que a realidade impõe ao sentido dela mesma, o filósofo cria chaves de acesso à realidade e procura constantemente acertar essas chaves. Só que as metáforas para o filósofo não passam de meio de conhecer, enquanto para o poeta são modos de viver117.

Atentemos agora na constituição das metáforas. Para as da filosofia vimos uma versão apresentada por Derrida. Mas também as poderemos encarar como conceitos operacionalizados sobre sensações e explicá-las por processos lógicos de abstracção, generalização e consubstanciação figurativa. Comparativamente, a metáfora poética, produto essencialmente imaginativo, não toma o sensível que é percepcionado mentalmente, mas o sensível sentimental, que é vivido emocionalmente. Assim sendo, a metáfora filosófica é primordialmente conhecimento e explicação; e a metáfora poética é primordialmente integração e transposição. Henrique Malta Macedo118 dá uma justificação genética e funcional para a metáfora poética, que pode servir também para a distinguir da metáfora filosófica. Esta apareceria por um processo de cartegorização, a partir de comparações funcionais ou figurativas entre objectos não similares; aquelas resultariam da necessidade de substituir

impulsos que, por coexistência de exigências nos ciclos apetenciais119 e

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O exemplo mais drástico ou dramático seria o dos hetrónimos de Fernando Pessoa.

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Cf. Potencialidades do Pensamento Metafórico.

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O autor fala de necessdidades primárias, secundárias e terciárias ou ontológicas. Esta terceira categoria parece despojar-se das anteriores e tender para o além (Cf. Potencoialidades do Pensamento Metafórico, 153). A divisão das necessidades humanas é diversa, mas os autores integrados no que se chamam teorias humanistas de

respectiva opção, tiveram de ser cancelados. Daqui que na metáfora haja uma exaltação selectiva e uma consequente exclusão de outros atributos. E segue- se um exemplo: "as rosas da tua face" exalta o calor, a textura e a fragância e exclui os espinhos, as folhas e os ramos. Esta explicação não se afasta de uma explicação psicanalítica da compreensão poética, mas não explica a capacidade para as elaborar — a não ser que se pressuponha a sua inexistência em quem não sinta ter impulsos cancelados. Por outro lado, a base funcional da necessidade metafórica seria a inadequação do pensamento lógico ao domínio afectivo. Mas esta posição apresenta desvantagens em relação à posição de Derrida, na medida em que esta confere à metáfora mais coerência com a experiência, maior poder de tradução substancial e maior conotação afectiva, mesmo no que se refere à metáfora filosófica. E talvez por isso mesmo o autor do artigo em causa dê grande ênfase à metáfora poética ao reconhecer-lhe uma dimensão afectiva e cognitiva, capaz de desencadear expectativa e curiosidade: "a metáfora contém em si um potencial de dinamização afectiva, pela expectativa, e de curiosidade cognitiva, pela antecipação que lhe conferem as características duma unidade componente de enorme reactividade, capaz de promover combinações em cadeia tanto verticais como horizontais"120.

Mas em qualquer dos casos constitui-se um corpo mais ou menos homogéneo de referências próprias de cada uma destas construções humanas que permite comunicar um sentir e um saber aos outros e que permite que um iniciado tenha acesso aos códigos básicos dessa comunicação. Numa visão naturalista, este código básico estará na racionalidade — para se entender o filósofo — e na afectividade — para se entender o poeta. Mais ainda: os dois edifícios assentam e apegam-se a entidades que o homem julga dominar suficientemente mas que toma ao mesmo tempo com um sentido de superioridade que nelas permite ancorar uma recusa à realidade adversa ou um sentido para o absurdo.

motivação e aprendizagem apresentam sempre um leque de necessidades que englobam as de âmbito puramente fisiológico e as de vincado carácter mental, como acontece com Maslow.

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E se bem que a filosofia se pretenda construir contra a metáfora, ela não deixa de se instaurar através da própria metáfora121. De facto, a analogia conceptual seguida pela filosofia é também uma espécie de ficção que procura anular a contradição que existe na dialéctica da identidade e da diferença. E se pretendêssemos distinguir filosofia e literatura pelo distanciamento do mito, iríamos verificar que tanto a literatura como a filosofia se constróem sobre mitos, mas que as duas se procuram separar deles: a literatura, para ficcionar um real e a filosofia para assumir a distância temporal. Na literatura e na filosofia há uma identidade procurada. A diferença estará na consciência que o filósofo tem de que as metáforas são apenas metáforas; e a literatura, embora

também o saiba, comporta-se como se as ignorasse122. Da literatura e da

filosofia quase se poderá dizer o mesmo que se diz sobre a linguagem vulgar e a poética: tem de haver referencialidade e contextualidade; e as duas acreditam no efeito das palavras para revelar o latente ou para exprimir um necessário: " as palavras traziam dentro uma tal guerra, um tão grande poder de expansão e de voo, que no dia seguinte, pela boca da mulher do Carriço, corriam a aldeia de lés a lés" — diz Torga das palavras de Margarida acerca do Julião, no conto 'Leproso'123.

É esse necessário perene que os poetas vão construindo sobre analogias quotidianas124, e que os filósofos vão simbolizando com metáforas de absoluto. Se bem que a distância não pode ser tão grande que se torne imperceptível — como se viu ao nível da interpretação; nem tão curta que não realize o homem: "que importa a um abegão alentejano que Fernando Pessoa diga que está desempregado desde os Descobrimentos? Ele, abegão, não está. E continua a sua tarefa infatigável de ser homem apenas no ambiente espacial das suas posses"125.

Poderá ainda ser acrescentado, numa fundamentação mais histórico- ilustrativa, que uma das explicações que Umberto Eco apresenta para a formação da metáfora é basicamente semelhante à usada para a formação da

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TERRÉ-FORNACCIARI –Sereias do Irracional, 191.

122

MEYER –Linguagem e Literatura, 22.

123

Novos Contos da Montanha, 67-68.

124

A Criação do Mundo, 128: “ia pouco a pouco descobrindo que os autores procuravam criar, através das persona- gens que punham em movimento, símbolos perenes de realidades quotidianas”.

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analogia: ao seleccionar elementos fixos de comparação e ao abandonar o elemento móvel, no cruzamento dos elementos F (forma), A (agente), M (matéria) e P (finalidade) da relação entre Rosa e Mulher126, assentes na árvore de Porfírio, podemos dizer que se faz algo semelhante à abstracção e generalização na analogia. A diferença fundamental estará no contexto sentimental que predomina na metáfora.