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A carne que resta : manifestações do híbrido na literatura de ficção científica contemporânea

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Academic year: 2021

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A CARNE QUE RESTA:

manifestações do híbrido na literatura de ficção científica contemporânea

CAMPINAS, 2015

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM

ALINE AMSBERG DE ALMEIDA

A CARNE QUE RESTA:

manifestações do híbrido na literatura de ficção científica contemporânea

Tese apresentada ao Curso de Teoria e História Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas para a obtenção do título de Doutora em Teoria e História Literária na área de Teoria e Crítica Literária.

Orientador: Prof. Dr. Márcio Orlando Seligmann Silva

CAMPINAS, 2015

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Crisllene Queiroz Custódio - CRB 8/8624

Amsberg de Almeida, Aline,

Am82c AmsA carne que resta : manifestações do híbrido na literatura de ficção científica contemporânea / Aline Amsberg de Almeida. – Campinas, SP : [s.n.], 2015.

AmsOrientador: Márcio Orlando Seligmann Silva.

AmsTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem.

Ams1. Ficção científica. 2. Ciborgues. 3. Corpo como suporte da arte. 4. Carne na literatura. 5. Hibridismo. 6. Pos-modernismo (Literatura). I. Seligmann-Silva, Márcio,1964-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: The meat remains : hybrid demonstrations in contemporary science fiction literature Palavras-chave em inglês: Science fiction Cyborgs Body art Meat in literature Hibridity Postmodernism (Literature)

Área de concentração: Teoria e Crítica Literária Titulação: Doutora em Teoria e História Literária Banca examinadora:

Márcio Orlando Seligmann Silva [Orientador] Carmen Lúcia Soares

Alcebíades Diniz Miguel Vinícius Demarchi Silva Terra Annita Costa Malufe

Data de defesa: 18-03-2015

Programa de Pós-Graduação: Teoria e História Literária

Powered by TCPDF (www.tcpdf.org)

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aos que dividiram importantes tempo e espaço, pelo incentivo e paciência: professor orientador Márcio Orlando Seligmann Silva familiares Gudrun, Mário e Raquel banca examinadora

e, pelo apoio financeiro, ao CNPq

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publicada a partir do início dos anos 90. O recorte temporal se deve à finalização do auge do movimento conhecido como cyberpunk que, por um lado, deixou resquícios na literatura de ficção científica e, por outro, ainda não pode ser dado como terminado. Utilizo para estas reflexões principalmente as ideias de desterritorialização e reterritorialização (Deleuze e Guattari), de antropodescentrismo (Roberto Marchesini), e de hospitalidade (Jacques Derrida), além do conceito de ciborgue (Donna Haraway) e de híbrido (Bernard Andrieu). O método rizomático e alguns princípios da Teoria do Caos permitem a problematização das manifestações corporais nas obras escolhidas para o corpus. Os conceitos de “corpo”, “carne” e “elemento técnico” são esboçados com a finalidade de tornar esse híbrido possível no campo conceitual e, assim, na prática de análise.

Palavras-chave: Ficção científica. Corpo. Híbrido. Pós-humano.

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since the early 90’s. Such a choice of the date is due to the down of the cyberpunk movement which, on one hand, left marks and residues in SF literature and, on the other, cannot be declared dead. For these thoughts I use mainly the ideas of deterritorialization and reterritorialization (Deleuze e Guattari), anthropo-decentrism (Roberto Marchesini), and hospitality (Jacques Derrida), as well as the concept of cyborg (Donna Haraway) and hybrid (Bernard Andrieu). The rhizome method and somen of the Caos Theory allow to question the bodily manifestations in the chosen corpus. The concepts of “body”, “meat/flesh” and “technical element” are sketched aiming to make possible this hybrid on the conceptual field and, therefore, the analytical practice.

Keywords: Science Fiction. Body. Hibrid. Posthuman.

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1.1 TENTAR ABOLIR A BINARIDADE... 18

2. UMA DEFINIÇÃO DO TERMO “FICÇÃO CIENTÍFICA”... 25

2.1 UM MODO DE FAZER... 33

2.1.1 O ponto de diferença... 42

2.2 A MÁQUINA LITERÁRIA ... 47

2.3 O ALIEN, AS VIAGENS E OS ROBÔS... 51

3 PERCURSO ENTRE HISTÓRAS... 57

3.1 SÉC XIX E INÍCIO DO SÉC XX... 58

3.1.1 Frankenstein.……….………..…....…….. 58

3.1.2 Julio Verne e H.G. Wells.………...………... 59

3.2 DE GERNSBECK AOS ANOS 60... 62

3.2.1 As revistas – A Pulp Fiction.…... 62

3.2.2 A Golden Age.………...………..….…….…. 67

3.3 A NEW WAVE E A NOVA LITERATURA...80

3.4 O CYBERPUNK... 90

3.4.1 O paradoxo da integração... 90

3.4.2 A carne que resta... 96

3.4.3 Após o cyberpunk (?)... 102

4 UMA IRMANDADE COM A MÁQUINA... 109

4.1 CARNE E TECNOLOGIA... 115

4.1.1 A carne...115

4.1.2 O enquadramento e a ambiguidade do elemento técnico... 125

4.2 – O CIBORGUE E A MUDANÇA DE PERSPECTIVA... 130

4.3 – ANTROPODESCENTRISMO E HOSPITALIDADE... 136

5 CAMINHOS DA FC CONTEMPORÂNEA SOBRE O IMPACTO IMAGINÁRIO E SIMBÓLICO DAS NOVAS TECNOLOGIAS... 145

5.1 O CORPO FABRICADO... 145

5.2 CONSIDERAÇÕES SOBRE A LINHA DE TENSÃO ENTRE A CARNE E O ELEMENTO TÉCNICO EM ALGUMAS OBRAS DE FC CONTEMPORÂNEAS...151

5.2.1 Neurolink: a natureza mata... 156

5.2.2 Homem-máquina: o corpo que precisa ser aprimorado... 176

5.2.3 The Silicon Mind: a necessidade da cooperação... 192 xiii

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6 PAPÉIS DA TECNOLOGIA NO MUNDO LITERÁRIO...235

6.1 ALTERNATIVAS PARA A MORTE... 248

6.2 A CONTINUAÇÃO DO HUMANO... 254

6.3 MODOS DE LIBERTAÇÃO E APRISIONAMENTO... 260

6.4 A HÝBRIS E O DESENLACE TRÁGICO... 272

6.5 PROXIMIDADE E DISTANCIAMENTO SÃO MODOS DE SEPARAÇÃO... 279

7 RENDER-SE AO MÚLTIPLO... 291 8 REFERÊNCIAS ... 297 8.1 CORPUS DE ANÁLISE... 297 8.2 BIBLIOGRAFIA CITADA ... 297 8.3 FILMOGRAFIA CITADA...302 xiv

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1 O PAPEL CONJUGADOR DA FC

Disparate, já não há ilhas desconhecidas, Quem foi que te disse, rei, que já não há ilhas desconhecidas, Estão todas nos mapas, Nos mapas só estão as ilhas conhecidas, E que ilha desconhecida é essa de que queres ir à procura, Se eu to pudesse dizer, então não seria desconhecida.

José Saramago

A ficção científica (FC) hoje, após a New Wave1 e com os últimos suspiros do cyberpunk2, apresenta modelos e temáticas que, embora com novas configurações e constantemente atualizados para manter o ritmo das mudanças sociais, científicas e tecnológicas, pouco podem ser considerados novidade dentro da FC e no campo das artes. Na literatura, os formatos de romance e novela ainda são primordiais, incluindo nas histórias episódios aventurescos e dilemas em torno de questões morais; as space operas continuam a proliferar nas viagens extraordinárias através do universo; a figura do alien extraterrestre persiste em versões benevolentes ou maléficas da subjetividade humana; os robôs (androides) seguem buscando afirmar a existência da própria alma, e os computadores, mostrando que são seres inteligentes, ambos procurando seu lugar na hierarquia criador/criatura; as viagens no tempo não deixaram a fantasia do cinema e da literatura; e o ciborgue continua a marcar a fusão entre o homem e suas criações tecnológicas, alterando constantemente a visão do homem sobre si mesmo.

Na World Fair de 1939, em Nova Iorque, a General Motors Corporation apresentou o Futurama3: um modelo da cidade do futuro que apostava nas rodovias automatizadas, mostrado como resultado do avanço tecnológico e entusiasmado protótipo que redesenhava a da vida e a cidade modernas. O projeto, que buscava “novos horizontes”, faz parte de um eufórico desejo de libertação através da técnica, realizando uma das funções da FC identificada por Hannah Arendt: um “veículo dos sentimentos e desejos das massas” (2014, p.2). Embora essa visão otimista acompanhe a história do desenvolvimento tecnológico e

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Movimento artístico-literário da FC iniciado em torno dos anos 60 e no qual algumas regras da hard SF passaram a ser revistas e muitas vezes quebradas, principalmente em vista da utilização da bomba atômica que diminuiu consideravelmente o entusiasmo em relação à tecnologia. O momento em que a FC começa a se tornar um fenômeno de massa. Será detalhado no capítulo 3.

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Iniciado nos anos 80 - após a NewWave–o movimento milita pela separação entre mente e corpo através do uso da tecnologia, com histórias que se passam em cenários carregados de poluição visual e que aposta na complexidade e dominação das tecnologias principalmente de inteligência artificial e manipulação da mente e da realidade.Será detalhado no capítulo 3.

3 O vídeo dessa exibição é de domínio público e está disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=1cRoaPLvQx0 >, acesso em 10 dez. 2014.

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ainda hoje esteja presente no imaginário artístico e social, sempre competiu com seu oposto, uma resistência frente aos perigos da técnica.

Entre ambas as perspectivas, o homem encontra em seu corpo o diálogo entre a carne e os produtos da técnica, na busca de sua afirmação como lugar de experiência. As 5 obras analisadas nos últimos capítulos deste trabalho - todas publicadas após a New Wave – são tomadas como fonte para pensar um ciborgue que, redefinindo as estruturas e fronteiras do humano, altera sua condição dentro da realidade social e ficcional, principalmente servindo como território onde pulsam questões que nunca deixaram de atormentar o homem tecnológico. Por ser uma forma de arte, a literatura tem a vantagem de criar um espaço onde a Ciência pode escapar de suas próprias beiradas sem perder em credibilidade, permitindo-se usar esse território para a desterritorialização e reterritorialização (nos termos de Deleuze e Guattari) de suas bases fixas e mostrar que o humano é constituído muito menos de certezas e do que de dúvidas.

Pretendo aqui elaborar e definir a questão do híbrido no que concerne às obras literárias do corpus e, para isso, os elementos “carne”, “corpo” e “tecnologia” são também definidos de acordo com a necessidade do trabalho. Posteriormente, pontuarei algumas manifestações desse híbrido nas obras escolhidas, no intuito não de colocá-lo como novidade dentro da FC, mas de mostrar como após a New Wave e com o avanço tecnológico que abraça o fim do século XX e o início do século XXI, ela extrapola as possibilidades desse híbrido e encontra no corpo um lugar privilegiado para a exploração e o questionamento de um novo homem. Antes disso, porém, exponho um breve panorama histórico sobre a produção literária de FC, por uma questão de colocação do corpus de pesquisa – que se localiza cronologicamente no período chamado ainda de “pós-cyberpunk”. Coloco a definição do termo “ficção científica” como elaborada por Darko Suvin, a partir do estranhamento cognitivo proposto por ele.

O pós-humano é a figura principal de apresentação do híbrido contemporâneo, numa abordagem que parte de uma consideração crítica do antropocentrismo humanístico, como moldura paradigmática de separação e domínio do homem sobre o mundo, para afirmar o papel conjugador da arte e do conhecimento na construção de processos de hibridação (MARCHESINI, 2010, p.181). Ao retirar o homem do centro do pensamento, é possível horizontalizar as relações entre múltiplos tipos de existência e realizar conexões com a tecnologia, o animal, o alien e o discurso, que serão parte do processo de construção de

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subjetividade e de formação do “eu”4. Além disso, o abandono do Eu cartesiano que existe porque pensa, acusado autor de uma alegada separação entre mente e corpo, interessa ao pós-humano por significar o primeiro passo em direção à libertação das amarras maniqueístas e dualistas que muito provavelmente resultam somente no atraso de sua evolução corporal.

A literatura configura uma tecnologia da linguagem e do discurso capaz de moldar o corpo em sua medula, em seu âmago, principalmente por realizar o pós-humano (no caso da FC) através do rasgar das fronteiras do humano, evidenciando sua porosidade de maneira específica, no lidar com as palavras. Segundo Hayles, “construções discursivas afetam como os corpos se movimentam através do espaço e do tempo, influenciam como as tecnologias são desenvolvidas, e ajudam a estruturar interfaces entre o corpo e as tecnologias”5 (HAYLES, 1999, p.207). Sendo assim, corpo e discurso são mutuamente construídos na interação entre ambos e nos resultados das equações que deles imanam. As obras trazidas para análise aqui não apresentam necessariamente visões não-cartesianas das relações entre corpo, mente e técnica. Porém, o método de análise adotado busca esse desdobramento, através do pensamento rizomático que permite uma tentativa de dissolver as barreiras e a separação existentes entre tais elementos, visando a atingir um ponto onde seja possível escapar à sua cristalização.

Por fim, a carne que resta não é uma sobra, no sentido de que pode ser descartada, suprimida ou aniquilada. Pelo contrário, não o pode pois insiste em estar presente, persiste, que resiste às inúmeras tentativas de eliminação eaniquilação, que “não se deixa submeter com tanta facilidade [...] possui lugares sem-lugar e lugares mais profundos” (FOUCAULT, 2010, p.10), sem a qual não há humano, pois é sinônimo do inapreensível da vida. Algo no corpo não pode ser definitivamente ou completamente capturado pela linguagem, que é uma faceta da técnica, nem descartado como excesso em favor de uma substância superior e etérea que prescinde do material, mas permanece sem necessidade de vínculo com um original imaginário, pois reconhece na própria continuidade esse original. Insistentemente presente, entrecruza superfícies de pele, metal e silício, compondo o corpo em parceria com elas, demonstrando a humanidade da técnica: seus perigos e suas maravilhas.

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A palavra “eu”, quando se referir ao senso de individualidade, será daqui em diante utilizada sem aspas e iniciada com letra maiúscula, visando à sua incorporação no texto, porém sem deixar uma posição hierárquica que ainda privilegia a demarcação de uma fronteira em relação ao outro sem a qual esse Eu encontra dificuldade de se definir.

5Assim como esta, todas as demais traduções das obras consultadas e em inglês e utilizadas neste trabalho são de minha responsabilidade.

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1.1 TENTAR ABOLIR A BINARIDADE

Quando Édipo decifra o enigma da Esfinge, esta se joga do alto de sua montanha e morre. Um dos híbridos presentes na mitologia, com cabeça e parte superior de mulher, pés de leão, asas de pássaro, a Esfinge assolava Tebas com seus enigmas, ameaçando de morte aqueles que não fossem capazes de decifrá-los. Assim como a Esfinge, as sereias são mortais. A tradição mitológica mostra também a ambiguidade do híbrido ao falar da sereia de maneiras diferentes: a siren cantava e misturava mulher e pássaro, enquanto a mermaid era a união entre mulher e peixe. Sereias – que, na Odisseia não são descritas – atraem com seu canto os navegantes e os aniquilam ou, ainda, oferecem a Ulisses todo o conhecimento do mundo a fim de tentá-lo, ao perceberem que ele as escapa. Em seguida, jogam-se ao mar em suicídio quando escutam o canto de Orfeu, mais belo que o seu. Mistura entre galo e serpente, o Basilisco vive no deserto, partindo pedras e queimando relva. Sem o dom do canto ou da palavra, ele mata pássaros e frutos com seu olhar fulminante.

A Quimera, por sua vez, com cabeça de leão, barriga de cabra e cauda de serpente (ou dragão), solta fogo pela boca e narinas, causando destruição na Lícia até que Belerofonte viesse para aniquilá-la. Hoje, segundo Borges, à Quimera resta seu significado de “impossível. ‘Ideia falsa’, ‘devaneio’” encontrados no dicionário (2007, p.175). Centauros, Grifos, Hidra de Lerna, são alguns exemplos da mitologia do híbrido que, de muitas formas, permanecem no imaginário e produção artística e cultural. Que a Quimera hoje guarde em si o significado do impossível e da ilusão é tão relevante para estas reflexões quanto o uso da voz humana como parte do hibridismo da Esfinge. Se “toda grande figura mítica é uma matriz, uma espécie de ‘casa vazia’, uma estrutura” (SELIGMANN-SILVA, 2007, p.183), a figura da Esfinge pode oferecer um ponto de partida para pensar o híbrido que agrega partes de criaturas/elementos diversos em sua forma e/ou natureza, principalmente porque traz junto a si a voz humana. Essa voz não é uma parte qualquer no mosaico, mas é um resto: a função corporal e o lugar que lhe permite o uso da linguagem como arma. A ferramenta utilizada para conseguir propor seus enigmas e sem a qual não poderia inflingir tormentos aos homens é da ordem do verbo, da ordem da técnica. Sobressai também a resposta com a qual Édipo resolveu

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a charada comumente conhecida: “qual animal anda de manhã com os quatro pés, à tarde com dois e à noite com três?” A resposta é “o homem”.

Através do verbo, o híbrido tratado aqui questiona a respeito da natureza desse homem. Enquanto carne, é perecível, plástico e quase impossível; enquanto técnico, é ambíguo e idealista, talvez “ideia falsa”. Entre os desdobramentos dessa questão, existe a possibilidade da irmandade com a criação técnica, que resulta nesse híbrido imaginário e acontece no mesmo patamar do verbo, privilegiando as conexões não polarizadas, buscando escapar à hierarquia entre suas partes. Para isso, é necessária uma visão do corpo imbricado nessa criação, assumindo, portanto, seu caráter múltiplo, permitindo-se moldar e abandonar sua essência. A conexão entre elementos conceitualmente distintos tem a capacidade de demonstrar sua proximidade sem a perda da diferença.

O abandono do pensamento linear e dualista opositor não se faz por um caminho fácil. Historicamente, é possível perceber que a lógica binária coordena o pensamento científico, artístico, social, regularizando o comportamento e a expressão estética humana através de sistemas de controle como a moral, a política, a cultura midiática, entre outros. Pensar a literatura em termos de representação daquilo que não está presente, ou na tentativa de descobrir um sentido por trás das palavras ali apresentadas, cria significados que talvez pouco se relacionem com a forma artística de estar no mundo, mas se aproximam de uma ditadura discursiva do ausente, que acaba por diminuir o valor criativo de uma obra literária (e artística em geral) ao invés de enaltecer seu visível e lidar com aquilo que ela apresenta. Entretanto, é possível encontrar caminhos que possibilitam, senão uma porta de saída dessa prisão, uma fenda para a respiração e a clareza de outra perspectiva, que fuja às identidades fixas, às representações, aos maniqueísmos.

A complexidade e a não-linearidade são dois fundamentos dos sistemas caóticos. Preceitos que realizam essa abertura de fendas nos paradigmas estabelecidos dentro da teoria literária. Segundo a física newtoniana, diz Hayles, a lei de causa e efeito lida com a simetria dessa relação, ou seja, pequenas causas levam a pequenos efeitos e grandes causas levam a grandes efeitos. Num sistema caótico, por outro lado, uma pequena causa pode levar a um efeito desproporcionalmente grande e, dessa forma, fazer acontecer a evolução de uma espécie, mudanças climáticas ou uma mutação genética. O foco da explicação imagética do mundo sofre uma mudança do relógio para a cachoeira (HAYLES, 1991, p.8). O relógio, pré-programado, previsível e regular, pode ser entendido com algum esforço e controlado em suas ações, enquanto a cachoeira, com suas formas irregulares e comportamento imprevisível,

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apresenta padrões novos a todo momento, transforma-se constantemente sem que lhe falte ordem.

A imprevisibilidade, aqui, força um olhar atento aos detalhes transformando o sentido do óbvio - segundo o dicionário: “que vai ao encontro de” “que se apresenta”- em uma forma de interagir com um texto através da leitura do corpo do próprio texto. Deixa-se de lado, então, o óbvio no sentido da qualidade daquilo que deveria ser sabido por todos (presente no senso comum e inclinado à interpretação do oculto), mas não necessariamente está presente no discurso (oral ou escrito). Nessa proposta de leitura de uma obra literária, o detalhe e o óbvio podem ser ponto de partida para reflexões posteriores e conexões entre o texto literário e o não-literário, considerando que a dimensão de um texto se estende além das estruturas gramaticais e linguísticas ou das fronteiras físicas da obra, sendo composto não apenas por informação mas também por ruído, exigindo a criação de novos códigos a partir do que é dado aos olhos. Formas complexas e sistemas irregulares compõem, portanto, o corpo textual (e o corpus literário de pesquisa) a ser estudado num trabalho teórico que lida com essa forma variante de expressão estética.

Sendo assim, o sistema caótico é aquele que apresenta uma ordem complexa, ao contrário de um sistema organizado de maneira simples. Um exemplo são as figuras fractais, abundantes na natureza, nas quais um padrão é repetido infinitamente a partir dele próprio e resultando numa visualização desse padrão de qualquer distância que se olhe. Um fractal é a repetição da diferença que, na não-linearidade, prova o padrão pela sua mudança, ou seja, pela quebra de seu princípio. A complexidade de um sistema não-linear se apresenta na mudança ao longo do tempo, que agrega fatores aumentando o número de elementos integrantes e variáveis de uma equação, pois “para movimentos complexos, termos não-lineares são especialmente prováveis de aparecer quando o comportamento de um sistema é determinado por dois ou mais fatores atuando independentemente” (Ibid., p.16).

Pensando dessa forma, o óbvio, a presença da palavra, pode ser ressignificado de maneira interdisciplinar, conforme propõe Paulson, juntamente com a teoria da informação matemática. Segundo ele, essa teoria foi desenvolvida para dar conta do problema da transmissão de sinais e, consequentemente, da informação. A informação, neste caso, é uma medida da incerteza dos sinais enviados, dos quais uma variedade de possibilidades pode emergir, mas apenas uma delas será selecionada. (HAYLES, 1991, p.39) Sendo assim, um texto literário pode ser pensado conforme a medição dessas possibilidades de codificações de informação, tornando-o um sistema de complexidade. Segundo esta perspectiva, as codificações de informação não emergentes no primeiro padrão de uma leitura são

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consideradas ruído e, portanto, “textos literários [...] são canais barulhentos” (Ibid., p.42-43), por serem imperfeitos em termos de comunicação.

Esse ruído é essencial num sistema caótico como o texto literário, visto não ser este composto somente pela gramática e funcionalidade comunicativa, mas também por figuras de linguagem e outros elementos estruturais, que evocam lugares muitas vezes não explícitos no texto. São elementos nem sempre decodificados numa primeira leitura. O texto como resultado de leitura não é determinado por sua estrutura linguística apenas, mas também pela emergência de um padrão que surge da leitura de outro padrão anterior. O valor artístico de um texto surge dessa criação de novos códigos e da emergência de padrões não iniciais; assim como das camadas sobrepostas nas reconstruções dos padrões emergentes. A partir do momento em que se começa a enxergar a nova informação - que antes era ruído - o óbvio passa a incluir outros elementos em seu espectro, sejam sinais presentes no texto literário ou no texto não-literário, ou ainda nas relações internas do texto literário ou entre ambos os textos.

Por ser imprevisível e complexa na emergência de padrões e não-linear nas conexões textuais literárias e não-literárias, a literatura pode ser considerada um sistema caótico e rizomático. O rizoma proposto como modelo por Deleuze e Guattari busca uma superação do dualismo cartesiano, consciente da necessidade de passar por ele, a fim de atingir a igualdade de valor entre o uno6 e o múltiplo, visto que “uma das características mais importantes do rizoma talvez seja a de ter múltiplas entradas” (DELEUZE; GUATTARI, 2004, p.22) e poder construir um todo integrado a partir de suas conexões. Pretende também abolir o eixo realidade-autor-representação, como identidades fixas representadas7 por essas três entidades que significam um reducionismo do trabalho estético-artístico; a realidade como legítimo estatuto portador da verdade (científica, ética, filosófica); o autor como dono dessa verdade e agente unilateral atuante no trabalho artístico; a representação como máscara da intenção oculta do autor e do significado real inatingível para a arte e buscado pelo expectador/leitor através da interpretação.

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Termos como “uno”, “deus” e “ciência” são iniciados por letra maiúscula quando fizerem referência a um conceito ou disciplina que remeta ao ideal de uma verdade absoluta. Nos demais momentos, a inicial minúscula é utilizada como uma tentativa de quebrar a hegemonia desses conceitos, aproximar seu significado da imanência e abandonar a hierarquia que os afasta do toque.

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A utilização do verbo “representar” neste trabalho não tem relação com a oposição entre original e cópia, ou verdadeiro e falso, comumente associadas a ele, como mostra a explicação iniciada neste parágrafo. A palavra “representar” (o mesmo serve para “significar”) quando não acompanhada de explicação crítica, é uma maneira de tornar imanente e libertar da função essencialista o verbo “ser”, dando-lhe sentido de “estar” e ignorando seu sentido de permanência, por conferir à própria “permanência” um caráter volátil.

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Este trabalho é escrito na pretensão de realizar a interconexão entre a obra e suas leituras e, de modo rizomático, é produzido com a finalidade de (ar)riscar caminhos. Obras pouco conhecidas pelos possíveis leitores do trabalho devido a fatores como sua proximidade histórico-temporal, a ausência de traduções disponíveis em português e mesmo dos originais nas bibliotecas relativamente mais conhecidas, repercutem na importância de se apresentar a sinopse de cada obra. Sinopse e trechos originais utilizados como fonte direta para as leituras e aproximações apresentadas aqui entrecruzam o texto da análise, visto que a fragmentação serve como método de realizar a união do texto e não a separação entre o conhecido da leitura oferecida e o desconhecido da superfície das palavras. Além disso, a sinopse elaborada aqui, antes de ser um resumo da obra, é o resultado de uma seleção de pontos relevantes para as análises, composta por diálogos e trechos da narração que fornecem material para a formulação do híbrido.

Ocorre assim a descentralização do texto, numa abolição de seu sentido único, arbóreo, hierárquico, em que o ruído tem seu significado reduzido em relação ao padrão primário de informação e, finalmente, o texto literário pode ser constituído de camadas equivalentes, de platôs. Um platô é, aqui, uma “multiplicidade conectável com outras hastes subterrâneas superficiais” (Ibid., p.33), ou seja, o meio, o lugar entre as coisas e o ato de troca de valores. O livro, segundo os autores, opera a desterritorialização do mundo por fazer rizoma com esse mundo e não esconder um significado ou imagem representativa de algo externo a ele (Ibid., p.20). Uma obra literária, portanto, é rizoma e caos, oferecendo inúmeras portas de entrada para realizar a conexão com seus platôs; conexão na qual o corpo se torna agente de troca numa relação de desterritorialização com o mundo e redefinição das fronteiras entre termos tão reducionistas e ainda tão necessários quando “literário” e “não-literário”.

A resistência frente ao surgimento e uso de novas tecnologias, segundo Isaac Asimov, é, por vezes, a cegueira que resulta do medo do desconhecido e de tudo aquilo com o que ainda não nos acostumamos (2010b, p.7). Para ele, historicamente, o progresso é atrasado por essa atitude ou sentimento, sendo hoje talvez um resquíscio das consequências da revolução industrial, quando os novos desempregados atribuíram seu infortúnio à máquina. A postura de não aceitação se refere, porém, à inovação e à mudança, antes de especificamente estar direcionada à tecnologia. O teclado atual dos computadores, um dos exemplos oferecidos por Asimov, segue um padrão de disposição das letras que diminui a velocidade do trabalho, pois foi concebido a partir do estudo das combinações mais comuns da língua inglesa, a fim de não causar problemas mecânicos nas hastes das máquinas de datilografia, durante seu uso. Apesar

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disso, segue-se usando o mesmo teclado até hoje na grande maioria dos computadores, mesmo os mais avançados. Isso, segundo o autor, reflete um grande medo do processo de reeducação e do retorno à ignorância, por parte daqueles que teriam que reaprender a digitar num novo teclado – mesmo que este seja mais prático e funcional.

A história Frankenstein de Mary Shelley (1818), contando a desgraça de um cientista que cria vida através do uso da técnica, mostra que o medo do avanço científico extende-se para além dessa reeducação e se relaciona significativamente mais com o retorno à ignorância. Os limites desconhecidos do desenvolvimento da criatura podem ser fatais para o criador. O ser humano não deve fornecer à sua criação uma alma, pois a proximidade com a condição humana é perigosamente grande e, por isso, o produto da técnica pode carregar ou desenvolver em si igualmente a violência, o potencial destrutivo. Como mostra também o bombardeio de Hiroshima e Nagasaki, a técnica não é neutra, mas ambígua: foi criada com funções específicas, e o homem é capaz de ativar nela seu melhor ou seu pior, através do uso.

O computador pode ser tomado de certa forma como a síntese contemporânea dessa ambiguidade, pois, embora possa facilitar o trabalho, a comunicação, o cálculo, a pesquisa, assim como reduzir distâncias, produzir outras máquinas, monitorar espaços, além de ser mais resistente e durável do que o corpo humano, por outro lado, dar liberdade a um robô (um tipo de computador) é também de certa forma humanizá-lo e, portanto, pode significar a destruição e o aprisionamento do resto da humanidade, obrigada a reconhecer e se curvar em sua inferioridade perante a força da máquina. E os autores de FC sabem explorar esse duplo potencial da tecnologia, com robôs revoltosos e agressivos, ou protetores e servis; capazes de libertar do peso do trabalho ou capturar o corpo humano através da vigilância; naves espaciais que permitem explorar o cosmo, máquinas que realizam a viagem no tempo, e computadores que descobrem Deus; vírus criados em laboratório ou vindos do espaço que causam a morte ao homem e nanocomputadores que podem salvá-lo.

Os robôs de Čapek, na peça R.U.R. (1920), são criados para servir os humanos, realizando seu trabalho de modo mais eficiente e barato, podendo substituir dois trabalhadores e meio. A visão positiva a respeito da máquina aparece na ideia de que a humilhação do trabalho é eliminada e substituída pelo tempo livre, sem que isso leve ao prejuízo de ninguém, visto que os robôs não sentem dor e não possuem alma. Porém, devido à ausência da dor, muitos robôs estragam seu corpo em acidentes, causando prejuízo financeiro e, portanto, Dr. Gall trabalha numa modificação da fórmula usada para fazer os robôs justamente buscando sanar esse defeito. Caso seja introduzida nas máquinas a capacidade de sentir dor, explica a Helena que, quando ocorrer o acidente, automaticamente qualquer estrago físico será evitado

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em seus corpos. Apesar disso, o cientista sabe que dar aos robôs uma alma não está em seu poder, pois seria uma blasfêmia.

Ao mudar alguns detalhes em seus corpos, o Dr. Gall acaba dando aos robôs a irritabilidade, a vontade de liberdade. Mais tarde, um deles, Radius, demonstra essa mudança: “não quero um mestre. Quero ser o mestre. [...] Quero ser o mestre das pessoas”8, mostrando a virada que causa a revolta das máquinas, quando capazes de desejar. Os humanos não tardam a receber notícias dessa revolta em andamento através de um comunicado por escrito: “Robôs do mundo: [...] proclamamos o homem como nosso inimigo, e fora da lei no universo [...] ordenamos que matem toda a humanidade [...] e depois voltem ao trabalho”. Quanto mais próximos do humano os aspectos conferidos aos produtos da técnica, mais sua ambiguidade será evidenciada, fazendo com que possam libertar ou aprisionar seu criador. Através da dor e do horror, as máquinas ganham uma alma e, num sentido material e utilitarista, continuam superiores aos humanos, porém, através dessa habilidade emocional em sua fórmula, acabam aproximando-se de seu criador, inclusive podendo demonstrar compaixão. É o caso de Helena que, na peça, mostra-se o robô benéfico, desejando o pagamento dos trabalhadores autômatos, para que possam comprar coisas que gostem; chorando com medo ao ver sua amiga Sulla prestes a ser dissecada; sentindo e demonstrando imenso amor pelo marido Domin e ao final da peça, pelo seu novo companheiro, o robô Primus.

A possibilidade de desenvolver a capacidade de manifestar reações emocionais é o motivo pelo qual os replicantes do filme Blade Runner (Ridley Scott, 1982), ganharam um dispositivo de segurança: longevidade de 4 anos. É também o que faz os robôs do modelo Nexus 6 desejarem sua liberdade e fugirem do caçador de androides, Rick Deckard, designado para eliminá-los. No desfecho do filme, caça e caçador se confundem quando o replicante Roy mostra sua força e rapidez superiores numa perseguição final a Rick. Pendurado sob a chuva numa viga ao alto de um prédio e lutando por sua vida, o Blade Runner é salvo pelo robô que deveria destruir, numa demonstração de controle e domínio da situação por parte do androide. Logo antes, suas palavras retratam aonde pode chegar a capacidade emocional implantada na criação técnica: “viver com medo é uma grande experiência, não é? É assim que se vive como escravo.”9

Desde o início, Rick sabe dos riscos que corre: “Replicantes são como qualquer outra máquina. São um benefício ou uma ameaça.” Entretanto, ao ganharem emoções, são também

8

Domínio público. Tradução para o inglês de Paul Selver e Nigel Playfair. As citações a seguir correspondem às páginas 47 e 61, respectivamente, da versão online disponível em < http://preprints.readingroo.ms/RUR/rur.pdf >, acesso em 23 nov. 2014.

9

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obrigados a aprender a morrer, assim como os humanos, e passam a lamentar seu tempo limitado de vida, aflorando seu aspecto ameaçador. Quando Rachael, já desconfiada de ser um robô, descobre que suas lembranças foram implantadas artificialmente e, portanto, todo seu senso de realidade pertenceu antes a outra pessoa, sente tristeza e medo. Mesmo sem usar essas palavras, é possível ver uma lágrima escorrendo em seu rosto, ao chorar não apenas por seu curto prazo de validade, mas, principalmente, por uma humanidade perdida e que jamais foi sua. Isso, porque não entende essa humanidade como corporal, como produção de memória. Não percebe que o fato de usar a faculdade da memória, lhe permite ser humana e, devido a essa mesma humanidade é que pode sentir e chorar.

Assim como, em R.U.R., os bebês deixaram de nascer, pois não há necessidade deles, em Blade Runner, os animais foram quase em sua totalidade substituídos por réplicas. Essa visão utilitarista do corpo demonstra primeiramente a necessidade de uma revisão dos motivos para a criação técnica, que, na substituição gradativa das atividades e funções do corpo poderá vir a suplantar a espécie humana, que perde seu lugar num mundo dominado pelo pensamento técnico. Por outro lado, a visão descentralizada do humano no universo pode ceder espaço para novas formas de estar no mundo que não sejam necessariamente voltadas à sua utilidade ou produção, mas permitam a exitência harmônica reformatada pela reconexão das partes conhecidas atualmente.

Entre os sentimentos de medo e admiração frente à tecnologia, é possível encontrar um equilíbrio, uma posição crítica que permite refletir sobre o uso das máquinas criadas pelo homem sem oferecer resistência à sua presença nem cair nos perigos de seu uso irracional e inconsequente. Reconhecer a presença do elemento técnico no corpo humano e buscar através desse reconhecimentoa prática de uma relação coesa de irmandade com o produto da técnica, sem o objetivo de diminuir a carne, é o primeiro passo para esse equilíbrio. A FC oferece um momento para essa reflexão e um lugar onde é possível imaginar as relações de destruição ou de composição positiva entre homem e sua tecnologia.

2. UMA DEFINIÇÃO DO TERMO “FICÇÃO CIENTÍFICA”

Não há nada que toque menos uma obra de arte do que palavras de crítica: elas não passam de mal-entendidos mais ou menos afortunados

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É notável que possivelmente nenhuma definição de gênero literário consegue satisfazer a todos os críticos, leitores e estudantes de literatura. Contudo, uma definição suficiente faz falta quando se trata de um trabalho de tese, por questões de exigência e padrão científicos e de ajuste acadêmico. A expressão “ficção científica”, por exemplo, no senso comum, evoca uma categoria do imaginário que abrange hoje desde histórias espaciais até sagas vampirescas, passando por aventuras de cientistas malucos estereotipados e fantasias apocalípticas. Muitas vezes histórias fantásticas como a trilogia O Senhor dos Anéis são citadas em textos sobre o assunto, e inúmeros livros sobre pragas de zumbis e monstros são encontrados ao lado de obras como O admirável mundo novo na mesma prateleira da livraria – e, diga-se de passagem, em muito maior quantidade. A tarefa de definir o termo “ficção científica”, portanto, fica nas mãos dos críticos e teóricos da área, na busca de chegar a uma definição que seja capaz de incluir obras como Neuromancer (1984), Frankenstein (1818), O Parque dos Dinossauros (1990), A Guerra dos Mundos (1898), Eu, Robô (1950), e O guia do mochileiro das galáxias (1979), para citar alguns exemplos, debaixo de um único guarda-chuva.

De acordo com The Encyclopedia of Science Fiction, o termo “Science Fiction” foi criado no número de junho de 1929 da revista pulp Amazing Stories, por seu editor Hugo Gernsback (CLUTE; NICHOLLS, 1993, p.311). Entretanto, no primeiro número da revista aparece seu precursor, o termo “scientifiction”. A partir de então, o termo passou a abranger não apenas os textos de FC, mas “autores, editores de revistas [...] editores de livros, revisores e fãs; histórias e romances escritos dentro dessa subcultura” (Ibid., p.312).

No primeiro editorial da revista, Gernsback anuncia:

Por “scientifiction” quero dizer [...] um romance intercalado com fatos científicos e visão profética [...] A ciência, através de suas variadas ramificações na mecânica, eletricidade, astronomia etc. entra tão intimamente em nossas vidas hoje, e estamos tão imersos nessa ciência, que nos tornamos inclinados a contar com essas novas invenções e descobertas [...] é nessas situações que novos romances encontram suas inspirações [...] Essas histórias surpreendentes não apenas dão leituras tremendamente interessantes – elas são sempre instrutivas. Elas provêm conhecimento [...] de forma palatável. (GERNSBACK, 1926, p.3)

Portanto, embora o termo tenha sua existência oficial a partir de 1926, ele se aplica a obras anteriores à sua criação, como algumas obras de Edgar Allan Poe e Mary Shelley – Frankenstein (1818) e The last man on Earth (1826) –, ou mesmo na história “Der Sandmann”, de Ernst Theodor Amadeus Hoffmann (1816), citada por Adam Roberts (2005, p.92) (e que, segundo ele, mais tarde inspirou Freud a escrever sobre o unheimlich (uncanny

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ou estranho). Hugo Gernsback cita também H.G. Wells, Julio Verne e Edward Bellamy entre quem já fazia “scientifiction” antes da existência do termo. Mesmo que os autores de obras anteriores à criação do termo não tivessem a intenção de classificar suas histórias como FC, nem de fazer parte dessa “subcultura”, é possível considerar tais obras como pertencentes ao modo FC pois lidam com a tecnologia e a Ciência de acordo com a exigência de Gernsback em sua definição: como parte do íntimo cotidiano.

Clute e Nicholls afirmam que nas definições para a FC geradas ao longo do século XX encontram-se descrições e prescrições para as obras, ou seja, aquilo que um autor deve fazer e aquilo que os autores geralmente fazem (CLUTE; NICHOLLS, 1993, p.313). Nesse contexto, a prescrição tem mais autoridade do que a definição, sendo encontrada desde o editorial de Gernsback, mencionado acima. A conhecida definição de Darko Suvin da FC “como a literatura do estranhamento cognitivo” (SUVIN, 1979, p.4) é um exemplo de definição prescritiva que condiciona a FC à presença do estranhamento e da cognição, ambos operando conjuntamente através do novum, o elemento que evidencia a distinção entre o mundo da obra e o mundo do leitor (chamado de “Mundo Zero”). O novum é o instrumento que possibilita que o não familiar possa se juntar à explicação racional, causando o efeito do “estranhamento cognitivo”.

O estranhamento (estrangement) de que fala Darko Suvin é crucial no espaço literário da FC pois é próprio que ocorra ali a “irrealidade realística, com não humanos humanizados, outros mundos deste mundo e assim por diante” (Ibid., viii). Em outras palavras, a potência de conflito da FC está em criar o outro, recriando o Eu, e permitindo o estranhamento característico do confronto gerado pelo enfrentamento desse outro, estranhamento que problematiza a cognição de modo a fazer surgir um campo de reflexão sobre o humano através do não humano, da realidade através da irrealidade, nos termos de Suvin. Portanto, seja esse estranhamento um canal de exploração do novo, seja uma maneira de escapismo popular, é nesse caminho que se faz mais pertinente o início de uma investigação teórica sobre a FC (Ibid., ix).

É na diferenciação entre aquilo que Suvin chama de Mundo Zero – o mundo empírico do autor –, e o novum – o elemento de uma “novidade estranha” – que pode ocorrer o estranhamento cognitivo ou, nas palavras de Mendelsohn, “estranhamento cognitivo porque o sentimento de que algo no mundo fictício está dissonante com o mundo experimentado pelo leitor” (JAMES; MENDELSOHN, 2003, p.5). O conceito de estranhamento foi tomado por Suvin dos formalistas russos, que o utilizavam para descrever uma situação em que um conjunto de regras era confrontado por um olhar vindo de um sistema normativo diferente,

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tendo como resultado o conflito ou a diferenciação. Segundo Suvin, Bertold Brecht aplicou o conceito em seu trabalho ao defini-lo por seu efeito: provocar o sentimento de não familiar a partir de um objeto familiar e, através do olhar desapegado, observar com distanciamento esse objeto familiar, desenvolvendo a capacidade de distinguir o sistema de normas que regulam o movimento desse objeto, sejam elas parte do universo empírico ou do novum (SUVIN, 1979, p. 6).

O estranho, aqui, remete ao conceito formulado por Freud, que relaciona o familiar/doméstico (heimlich) com seu oposto (unheimlich). Segundo ele, o estranho está ligado a uma compulsão à repetição e àquilo que deixou de ser familiar (seja pelo impulso reprimido ou pela superação da crença), sendo, por isso, reconhecível. Na literatura, são mais facilmente criadas situações envolvendo o estranho, pois a ferramenta utilizada é a manipulação de códigos. E, contudo, a literatura precisa ser um tanto mais radical e incisiva ao formular essas situações, visto que muitas delas envolveriam o estranho na “vida real” ou Mundo Zero, mas não necessariamente na criação literária. Portanto, é importante perceber que o lugar de identificação do leitor deve ser levado em consideração na detecção do estranho numa obra literária: para que o estranho aconteça, é preciso haver um encontro com o real, seja na identificação com um herói ou personagem, seja no cenário material e evocando uma forma de pensamento talvez já superada. A crença na animação de um objeto inanimado, a presença em forma de fantasma de alguém morto, o poder do pensamento para criar realidades desejadas. E, caso o leitor se identifique, por exemplo, com um narrador irônico ou com um herói que não perceba como reais as alucinações, coincidências, manifestações do sobrenatural etc., a obra não terá o efeito final estranho.

Segundo Todorov, ele serve como solução para uma incerteza. Para que aconteça o Fantástico na literatura, é preciso um momento de hesitação quanto ao relato da história, quando ela traz acontecimentos que pairam entre o sobrenatural e a alucinação ou ilusão. Dentro da teoria de Todorov, o horror, por exemplo, pertence ao estranho, pois oferece tanto coincidências inesperadas e surpreendentes (como um número aparecer várias vezes para o mesmo personagem em um período curto de tempo, ou escapar por muito pouco de mais de um acidente no mesmo dia, encontrar uma mesma pessoa em lugares completamente diferentes várias vezes) quanto a experiência do limite, como exemplifica com “A queda da casa de Usher” de Poe. É um recurso comum nas obras de Poe, segundo Todorov, sendo traduzido em crueldade, maldade, crime, e aquele efeito extraordinário ou chocante produzido na leitura de um “O Gato Preto” ou “Os Crimes na Rua Morgue”, por exemplo.

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Quando, “Num mundo que é exatamente o nosso, [...] produz-se um acontecimento que não pode ser explicado pelas leis deste mesmo mundo familiar”, existem duas possibilidades: “ou se trata de uma ilusão, [...] ou então o acontecimento realmente ocorreu” (TODOROV, 2007, p.30). Sem conseguir decidir-se quanto à natureza desses eventos, o leitor encontra-se no momento do Fantástico, que irá durar enquanto a história não ofereçer uma explicação para eles. Entre as resoluções possíveis, após a rejeição da poesia e da alegoria, o texto fantástico resultará em maravilhoso ou estranho. Se, por um lado, a resolução pela via do maravilhoso permite a criação de um mundo com leis próprias, por outro, o resultado estranho ocorrerá caso o personagem decida por uma saída que siga uma explicação lógica para a hesitação experimentada pelo leitor. Dessa forma, serão acontecimentos incríveis, inesperados, extraordinários, singulares, sendo também perfeitamente verossímeis e aceitáveis como possíveis dentro do Mundo Zero, e relacionados com o estranho proposto por Freud: “No estranho [...] o inexplicável é reduzido a feitos conhecidos, a uma experiência prévia, e, desta sorte, ao passado.” (Ibid., p.24)

Dessa forma, o desconhecido pode se tornar conhecido, pois obedece a uma lógica interna da obra, podendo também estender-se para o Mundo Zero, quando "o movimento do relato consiste em nos fazer ver até que ponto esses elementos aparentemente maravilhosos estão, de fato, perto de nós e são parte de nossas vidas.” (Ibid., 2007, p.89) Portanto, a função da FC se mostra ao falar do presente e não do futuro, mesmo quando considerada futurista. Talvez seja no mesmo sentido, porém um tanto mais específica, a afirmação de Bruce Sterling a respeito de os autores cyberpunk vivenciarem o mundo sobre o qual escrevem, localizando temporalmente suas histórias mais próximas do Mundo Zero, sem necessariamente projetar uma visão futurística da obra, visto que nos anos 80, quando o gênero tem seu princípio alegado, as tecnologias presentes no cotidiano do leitor (mesmo um cotidiano distante) eram versões obsoletas daquelas presentes nas obras de FC cyberpunk: as redes de computadores, a matrix, os robôs inteligentes, etc. Embora Todorov não esteja falando do subgênero cyberpunk, é possível distinguir essa percepção por parte de alguns teóricos a respeito da FC.

Portanto, o estranhamento cognitivo proposto por Suvin estaria próximo conceitualmente tanto do estranho formulado por Freud – com o familiar voltando como não familiar e causando a sensação de estranhamento – quanto daquele desenvolvido por Todorov – submetido às mesmas regras do Mundo Zero e usado para resolver o sobrenatural de maneira que deixe de sê-lo. Na FC, um aparato desconhecido pelo leitor pode causar esse estranhamento (porém, sem o efeito do horror) de duas maneiras: a apresentação de algo não familiar e a submissão desse aparato às regras do mundo do leitor. A exemplo de Kiln People

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(David Brin, 2002), em que um detetive particular narra sua história num mundo onde é possível criar clones em casa, através de um aparato doméstico próprio para isso, uma impressora especial que produz cópias de argila variadas em cor, custo e utilidade, sendo duráveis por cerca de 24h.

A possibilidade de se imprimir clones em domicílio dialoga com a engenharia genética e com a tecnologia das impressoras em 3D (em alta nos dias atuais), sendo, portanto, muito próxima do familiar contemporâneo e, ao mesmo tempo, guarda a distância característica do estranhamento provocado pela visão do duplo. Durante a obra, repetidas vezes o narrador em primeira pessoa afirma ser e não ser concomitantemente, ser Eu e outro, real e artificial, original e cópia, sentir dor na carne artificial – dependendo do momento narrativo. Estranhamento de um autor que admite a condição ficcional da FC, quando um dos personagens afirma não saber como funciona a tecnologia de imprimir uma soul standing wave, mas isso não deve ser obstáculo para a aceitação do fato de que é possível produzir os clones. O estranhamento provocado por esse texto surge da facilidade com que é possível ao mesmo tempo duvidar e admitir a existência do original e sua cópia, remetendo ao mito do Golem – o embrião de argila que ganha vida.

O estranhamento, segundo Brecht, pertence à Ciência e à arte e, por isso, Suvin conclui que é tanto cognitivo quando criativo. Aqui, Suvin sugere a equivalência da cognição e da criação, nos moldes sugeridos também por Deleuze e Guattari quando falam do pensamento e da vida como criação e da morte como interrupção do fluxo. Para os filósofos, pensar é criar e, portanto, toda a forma de arte é considerada um fluxo de pensamento. Se pensarmos a literatura de FC como esse fluxo de pensamento que desemboca na criação, podemos enxergar a maneira como ocorre a problematização do humano através da cognição utilizada por Suvin como base para a definição do modo FC.

Dessa forma, Suvin mostra que a FC utiliza o estranhamento para se diferenciar da fantasia e a cognição para se diferenciar do mito, questionando o homem e o mundo, ao lançar mão das perguntas “que homem?” e “que mundo?” Ali onde o mito fornece explicações para os fenômenos, a FC aponta para a visão limitada do espaço alcançável pelos olhos, problematizando ao invés de explicar e se opondo dessa maneira à ficção sobrenatural, metafísica, naturalista ou empirista – embora Suvin confira ao empirismo fundamental importância no momento da construção da obra de FC, pois nesse contexto o estranhamento se torna sua ferramenta própria, principalmente aquele em relação ao universo empírico do autor e do leitor. Por isso, Suvin é taxativo ao afirmar que “[a] FC é [...] um gênero literário

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cujas condições necessárias e suficientes são a presença e interação do estranhamento e da cognição e cujo principal aparato formal é um enquadramento imaginativo alternativo ao ambiente empírico do autor.” (SUVIN, 1979, p.7-8, ênfase no original)

Entretanto, a FC não se liga necessariamente à validação científica ou tecnológica, nem a previsões futurísticas, como acreditam alguns, porque, tratando-se de uma forma artística, funciona através do questionamento e não na produção da resposta. O conceito ou a visão da “realidade” para Suvin está diretamente ligado à literatura, numa função de retroalimentação criativa em que a arte é inseparável do mundo e cria sistemas de pensamento, estranhamento e diferença, implicando na transformação do ambiente. Em razão disso, faz-se necessária uma análise da obra segundo dois aspectos: primeiro, um movimento de exteriorização, pelo qual a obra (texto literário) se comunica com o mundo empírico do autor e do leitor (texto não-literário); segundo, o movimento interior, que opera segundo regras próprias e existências legítimas, tanto quanto aquelas encontradas fora dos limites da obra, porém não necessariamente funcionando dentro da mesma lógica ontológica.

Um dos conceitos-chave para a elaboração de Suvin é o de Mundo Zero, o mundo empírico ou mundo naturalista, aquele das “propriedades empiricamente verificáveis ao redor do autor” (Ibid., p. 11). O Mundo Zero não fornece a verdade absoluta, mas um ponto de referência a partir do qual a obra deve realizar o estranhamento. As leis da Ciência aparentemente servem para regulamentar o funcionamento do Mundo Zero e isso deve ser levado em conta na produção e leitura da obra, acrescentando-se o fato de que se trata de uma ficção que resulta do/no estranhamento. Portanto, Suvin decide que o termo “ficção científica” cabe para esse modo de fazer, muito embora o termo “cognição” seja mais abrangente do que o termo “ciência”, por envolver o conhecimento de modo geral e não restrito ao científico.

Através da diferenciação chega-se à definição. O Mundo Zero diferencia-se do “mundo literário”, aquele em que ocorre a ficção e onde as entidades são “existências socioestéticas e não metafísicas” que “têm uma vida interna própria” (Ibid., p. 16). Esse mundo criado por palavras é denominado “espaço literário” por Maurice Blanchot, quando examina a obra de Mallarmé, Kafka e Hölderlin. Segundo esse modelo, “a obra de arte, a obra literária – não é acabada nem inacabada: ela é. O que ela nos diz é exclusivamente isso: que é – e nada mais. [...] Quem quer fazê-la exprimir algo mais, nada encontra, descobre que ela nada exprime.” (BLANCHOT, 2011, p.12). Blanchot propõe o modelo de espaço literário para mostrar que uma obra de arte se fecha em si mesma sob regras internas redigidas pelas palavras que são suporte físico e etéreo para um espaço legítimo enquanto arte.

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Claramente, uma obra literária não prescinde da comunicação com o mundo não-literário, pois sem isso deixaria de fazer sentido para o leitor, que vive esse mundo. Entretanto, o espaço literário não é condicionado ao espaço não-literário, ou seja, não tem sua significância dependente de interpretações vinculadas ao chamado “mundo real”. É a diferença entre a interpretação – que pretende uma verdade por trás da superfície da obra escrita e busca as intenções do autor que desta forma usaria a obra para dizer o que de fato não disse – e a leitura ou análise – quando se verifica a profundidade na própria superfície da obra, entendendo-se que “ela é” ao invés de apostar naquilo que ela parece ser.

Em virtude de ser um espaço à parte, essa obra pode apenas nascer da solidão onde não há ninguém e ao mesmo tempo há o artista. Para Blanchot, a solidão e o recolhimento são fundamentais para o surgimento de uma obra de arte que não fala nem parece ser, mas é (Ibid., p.29). O poder de utilizar as palavras se traduz na prática da ambiguidade e da promiscuidade potenciais possíveis somente através do silêncio e não acabam com a finalização da obra (embora para Blanchot a obra só acabe com a morte do artista, considero para estes fins o final da obra como o momento de sua publicação), mas continuam fervilhando nesse momento que dá segmento à criação.

Utilizo a noção de “espaço literário” explicada por Blanchot como apoio à ideia de “mundo literário”, para contrastar com o Mundo Zero de Darko Suvin. Isso serve como referência quando falo da FC como literatura da diferença, pois, embora provavelmente todas as literaturas existam nesse “mundo literário”, a FC é aquela que emprega o novum, um elemento que somente pode se realizar quando em contraste com o Mundo Zero e validado pela lógica cognitiva (ROBERTS, 2003, p.10). A utilização e manipulação das palavras é o que possibilita a criação desse “mundo literário”, diferenciando-se das demais utilizações de palavras por iluminar as relações humanas através de uma estrutura de roteiro ou narrativa. Suvin aposta na definição dos limites do objeto que serve de foco num estudo, portanto determina a ficção da maneira descrita acima e a divide em “ficção naturalista” e “ficção estranhada” (estranged fiction). Enquanto a primeira realiza a iluminação das relações humanas através de uma reprodução do contexto empírico do autor, a segunda (dentro da qual se enquadra a FC) opera essa iluminação com elementos e um contexto de diferença, daí a FC ser apontada como a literatura da diferença.

Ressalto também que a definição do termo “ficção científica” está em mudança constante e, assim como muitas das definições recentes, sofre abalos em sua estrutura, principalmente devido ao fato de nunca ter chegado a ser completa e unanimemente fechada, pois o próprio modo FC muda com tanta frequência quanto são publicadas novas obras e, por

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essa perspectiva, há tantos tipos de FC quantas obras publicadas. Há quem possa afirmar o lugar-comum representado por essa colocação, porém, novamente, aponto sua importância em favor de minha argumentação, já que num escrito acadêmico pesam os nomes, as categorias, o referencial teórico e o corpus bem delimitado do trabalho para que ele próprio tenha um corpo.

2.1 UM MODO DE FAZER

Primeiramente, é importante destacar que a perspectiva apresentada neste trabalho é voltada exclusivamente para a FC escrita em língua inglesa, em grande medida americanizada e eurocêntrica, altamente voltada para e mesclada com uma visão política capitalista. O entendimento da tecnologia é aquele apresentado em obras que marcam especificamente uma tradição de linha norte-americana (embora não restrita a obras escritas nos EUA) que exalta a Ciência e a tecnologia com o entusiasmo da visão dos vencedores em que elas são percebidas como ferramentas bélicas e evolutivas eficazes e aliadas do progresso, embora mostre também as consequências de seu mau uso. A análise das obras não se fixará em opostos como tecnofilia e tecnofobia, mas justamente tem o propósito de demonstrar a inconsistência de se permanecer em tais polaridades, muito embora seja em grande medida difícil sair completamente delas. A questão é destacada aqui, pois este texto não deve pretender uma universalidade da FC, ou do mapeamento do híbrido em algumas obras representativas da FC na contemporaneidade, mas é escrito com base tanto num recorte temporal como numa visão ocidentalizada e americanizada da FC.

Por ser parte de um discurso polissêmico, a FC se distancia da noção de gênero, como ressaltado acima, e se aproxima de uma discussão: uma discussão em andamento (JAMES; MENDLESOHN, 2003, p.1;10), algo não definido categoricamente, um modo de fazer que se manifesta não somente na forma literária, mas em outras vertentes artísticas como o cinema, os quadrinhos, os jogos eletrônicos, etc., formas de texto que compõem a paisagem de um discurso com múltiplas interpretações e aberturas para a construção de caminhos possíveis. Isso se deve principalmente à variedade de vias de manifestação dentro da FC, das quais a literatura é apenas uma, e à ideia de que dentro de uma discussão sobre a literatura de FC não se define com exatidão o roteiro a ser seguido ou esperado numa obra.

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Através dela, o leitor é retirado de sua zona de conforto e tem as conexões com sua terra temporariamente cortadas. Por isso a viagem ser um tema tão recorrente e efetivo na FC, tornando-se uma função de iniciação do leitor (SUVIN, 1979, p.22). Também devido a isso, não devemos esperar precisão dos fatos científicos ali dentro: sendo uma manifestação estética, essa precisão não compõe a centralidade da obra, embora apoie suas premissas. Assim como são construídas a maioria das obras estéticas, a FC se baseia na coerência dos fatos internos, estando libertada da exatidão científica até o ponto em que essa liberdade permita a extrapolação sem que leve à inverossimilhança. Sendo assim, Darko Suvin aponta a FC como a literatura que opera uma viagem iniciativa do leitor através de outros mundos, para que possa voltar dotado de uma visão relativamente mais clara sobre o seu próprio e seus habitantes. Dessa forma, é possível que a capacidade crítica e imaginativa do leitor de FC seja ampliada através da leitura, pois, assim como toda leitura relevante provavelmente causa mudança, uma obra de FC visa a radicalizar essa mudança, sendo livre para extrapolar situações em outros mundos que, por falta de verificação empírica neste, acabam por flexibilizar as certezas e os pontos de referência, apresentando-se como um modo de fazer muito antes de ser um gênero literário.

Embora Darko Suvin use ainda a palavra “gênero” para se referir à literatura de FC, toda a discussão colocada por ele sobre sua poética a enxerga em certo sentido como esse “modo” ou “discussão” colocados por Farah Mendelsohn. Ela chama atenção para o fato de que

se a fc fosse um gênero, saberíamos o esboço de cada livro que pegássemos. Se fosse um mistério, saberíamos que haveria ‘algo a ser descoberto’; se fosse um romance, que duas pessoas se encontrariam, entrariam em conflito que se apaixonariam; se fosse horror, que haveria uma intervenção do antinatural (JAMES; MENDELSOHN, 2003, p.2)

Na FC, segundo Mendlesohn, tal previsibilidade é desfeita devido à mistura dessas linhas roteirísticas encontradas muitas vezes dentro de uma mesma obra. Sendo assim, a FC não se encaixa na definição temática de gênero e, portanto, pode-se encontrar ficção científica numa obra de mistério, de romance, de horror, ou numa poesia, sem que necessariamente essa obra esteja classificada dentro do seu gênero específico proposto pelas instâncias de legitimação, pois a temática da tecnologia, ou da Ciência (como geralmente é identificado o modo “ficção científica”) está presente na obra e, assim, essa manifestação se torna FC, podendo ser colocada lado a lado com outras de que talvez, sob a classificação “gênero”, estivesse separada.

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Mendelsohn introduz os artigos em seu livro acerca da FC utilizando o estranhamento cognitivo de Suvin, após explicar que o novum também pode ser chamado de “what if?” (descrição utilizada também por Joanna Russ e pela dupla Steven Best e Douglas Kellner). Para ela, esse elemento é fundamental, pois a FC se separa das outras literaturas ao mostrar que seu verdadeiro herói é a ideia (JAMES; MENDELSOHN, 2003, p.4) e dessa maneira a FC pode ser entendida como uma forma de discussão antes de ser classificada como gênero literário. Vale ressaltar, portanto, que a FC é parte de um discurso mais abrangente do que o da classificação das formas literárias em gêneros, principalmente por estar vinculada a uma maneira de ver o mundo muito antes de buscar reproduzi-lo esteticamente, embora sabendo que existem exceções e que no universo das artes nada pode ser dado por garantido. Há um desenho esperado de cada obra que assume a função de classificá-la no formato do gênero e que Mendelsohn não encontra no modo FC.

Como, então, é determinado ou encontrado o modo “ficção científica” nas obras de literatura colocadas nesse patamar?

Não pretendo discutir aqui se a categorização proposta da literatura em gêneros específicos é ou não apropriada, se ela facilita ou dificulta um trabalho dissertativo a respeito de um modo de produção artística, ou se a classificação das manifestações artísticas pelo seu formato ou tema tratado é a melhor maneira de refletir sobre elas dentro da academia. Bruce Sterling, por exemplo, afirma que “[o]s críticos [...] persistem em favorecer os rótulos, apesar de todos os alertas; devemos, pois é uma fonte válida de insight – assim como uma grande diversão.” (STERLING, 1988, ix) A FC, da maneira proposta por autores como Farah Mendleson e Edward James, David Seed, Adam Roberts, John Clute e Peter Nichols, não se resume a formatos como literatura e cinema, nem aos temas tratados por seus autores, mas é uma maneira de se inserir através da arte na discussão acerca das relações entre o humano e a disciplina da Ciência e suas transformações, estas pautadas pela tecnologia desde a invenção/descoberta do fogo, da escrita e das ferramentas. É possível visualizar dessa maneira uma das razões pelas quais a FC foge às classificações mais usuais, afinal de contas, tornou-se também uma literatura de massa. Talvez por isso ela seja mais abrangente e menos consistente do que os gêneros literários tradicionais, visto que apresenta maior alcance e menor força do que eles dentro de uma perspectiva enfaticamente acadêmica que, quando extremamente rígida, despreza a cultura de massa como modo de validação artística.

Uma visão negativa a respeito da cultura de massa é elaborada, por exemplo, por Dwight Macdonald, explicando o declínio da cultura americana no séc. XX a partir da diferença entre a Alta Cultura e a Cultura de Massa (Masscult). A cultura de massa começa a

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