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2. UMA DEFINIÇÃO DO TERMO “FICÇÃO CIENTÍFICA”

3.4 O CYBERPUNK

3.4.3 Após o cyberpunk (?)

A partir do ilustrado acima com base na obra de Gibson e algumas leituras a respeito, pode-se pensar o cyberpunk como um marco na FC, um divisor de águas que direciona os caminhos desse modo de fazer para o contemporâneo. Alguns consideram o termo “Pós- cyberpunk” adequado para descrever o tipo de FC que sucedeu o período dos anos 80 até meados dos anos 90 (Snow Crash, outra obra de referência, é de 1992). Tomo o termo emprestado para classificar cronologicamente as obras que escolhi para o corpus, visto que se encaixam nesse recorte temporal, embora muitas características do cyberpunk sejam encontradas nessas obras mostrando que o movimento não acabou, como já dito, através de uma herança deixada pelo sonho da informação sem corpo que, por sua vez, reafirma o pensamento cartesiano.

O pós-humano, como também encontrado no movimento cyberpunk, não aposta numa superação da espécie como carne, posto que dentro de seu universo simbólico e biológico próprios, a mudança é parte compositora da forma(lização) humana, mas investe numa virada conceitual que retira o homem do centro do universo e da hegemonia referencial utilizada para defini-lo. Ou seja, o humano deixa de ser suficiente para sustentar o campo simbólico (explicação de si) que suporta sua evolução. Caronia insiste que somente é possível falar em pós-humano quando se entende que o humano em si é um conceito mutável histórica e culturalmente; o equívoco, diz ele, “está em uma concepção estática e essencialista do homem, como se o homem do século XX fosse igual ao homem do século XIII, ou àquele do IV século antes de Cristo, àquele de 9 mil anos atrás.” (FELICE; PIREDDU, 2010, p.199)

Assinalada a mutabilidade do conceito de humano e de sua visão de acordo com cada época, é possível perceber que com o movimento cyberpunk houve um despertar da ideia da tecnologia como solução para todos os problemas sociais, porém um novo sonho nasce para descrever a separação entre carne e mente através da conquista do ciberespaço. Nos anos 90 houve outro despertar, como pontua Elhefnawy, ao se perceber que essa separação não seria possível. A esperança na tecnologia para resolver insatisfações decaiu passo a passo, pois, embora tenha se tornado quase onipresente, provou não se sustentar sem o apoio material,

“nós não comemos, vestimos ou nos abrigamos sob softwares” (ELHEFNAWY, 2011, p.95). O software como ideal de existência se desfaz na necessidade do hardware para existir e ganhar sentido.

Além disso, na visão do autor, aconteceu que toda a estrutura prometida pela informática e as altas tecnologias se mostrou mais como uma armadilha e menos como a terra prometida, o paraíso ou o nirvana. Nos anos 80, segundo ele,

os computadores pessoais que conseguimos provaram ser tão propensos ao erro, paralisação e a quebrar, tão rápidos em queimar ou se tornarem ultrapassados, tão constantemente supertributados por antivírus e outros programas de segurança [...] Quando você ficava online, cortesia de um provedor arrancador de dinheiro [...], você encontrava sua caixa de emails cheia de spam, seus serviços de busca entupidos de publicidade, e nada funcionava como no cinema. (Ibid., p.96)

Uma visão um tanto pessimista a respeito da tecnologia, porque se centra na ideia de que o resultado da evolução tecnológica foi uma decepção das expectativas sociais. Porém, é importante ressaltar essa perspectiva, pois ela também aparece na FC, em todas as suas épocas, no tocante às tecnologias da informação principalmente a partir do cyberpunk. Autores como Philip K. Dick , J G. Ballard ou mesmo Asimov, já se mostravam propensos a equilibrar sua obra com uma pitada dessa visão, por isso também são considerados influentes até hoje.

O autor explica também que desde os anos 80 a FC parece trabalhar numa via de extrapolação dos limites humanos através das tecnologias informáticas e biológicas. Além disso, a proposta da singularidade tecnológica de Vernor Vinge (1993), que propõe o momento histórico em que o avanço tecnológico dará um salto desproporcional, causando uma mudança radical no modo de viver a tecnologia e na inteligência humana, proporcionou aos escritores de FC a possibilidade de pensar e colocar a alta tecnologia (hightech) dentro do cotidiano, prevendo, de certo modo, sua banalização. O conceito de Singularidade Tecnológica proposto por Vinge oferece uma perspectiva otimista da evolução tecnológica, em que a humanidade sofrerá uma mudança comparável ao próprio surgimento da vida na terra. Além disso, essa previsão proporciona também uma nova possibilidade de otimismo para o futuro baseada na renovação da ideia inicial de que a tecnologia poderia, sim, ser uma solução para os problemas da humanidade. Assim, muito da FC com tradição de escrita e expectativa futuristas, acaba voltando aos moldes antigos. (Ibid., p.145-146)

Existe uma nova classificação dentro da FC surgida após os anos 80, com base em seu tema e não em seu período de publicação. A chamada Singularity Fiction deriva dessa ideia proposta por Vernor Vinge e mais tarde continuada por Kurzweil, de que a tecnologia está mudando tão rapidamente a ponto de ser impossível uma previsão de qual será o passo

seguinte ou o que irá acontecer com a humanidade (BOULD; VINT, 2011, p.190). Vinge afirma que a humanidade está caminhando em velocidade crescente para um período histórico em que a inteligência artificial e as biotecnologias irão causar uma mudança equivalente ao surgimento da vida humana na terra (KELLY; KESSEL, 2007, xiii).

Já Kurzweil aponta que uma das razões para isso é que o progresso tecnológico tem crescimento caracteristicamente exponencial – e não linear. A singularidade, para ele, começa na quinta época da evolução, quando a tecnologia se funde à inteligência humana, sendo seguida pela sexta época, na qual haverá uma reorganização da matéria e da energia, que causará o que ele chama de “despertar do universo” (KURZWEIL, 2005, p.21). A transformação do humano em ciborgue, para o autor, está acontecendo desde que a evolução pôde criar uma espécie capaz de pensar e manipular seu ambiente; e seguirá para quando o ser humano (versão 3.0) poderá mudar seu corpo livremente em ambientes de realidade virtual ou não-virtual, circunstancias que serão indissociáveis e até confundidas entre si (Ibid., p.310).

Um exemplo da Singularity Fiction citado por Bould e Vint é Schild’s Ladder, de Greg Egan (2002), onde a viagem interespacial é realizada através do transporte da informação do self que, ao chegar a seu destino, pode ser restabelecida num corpo humano ou num construto informacional. Segundo Bould e Vint, o que faz dessa história uma Singularityfiction é a obsessão com a consciência digital e a mutabilidade corporal (2011, p.189-190). No entanto, é possível perceber que, sendo ambas as opções corporais, pois, muito embora os personagens que escolhem viver em bancos de dados sejam chamados no romance de “acorpóreos”, essa denominação se refere ao corpo como a materialidade inicial desses seres, por isso o nome “acorpóreo” (e não “descorporificado”) aplicado àquele que abandonou essa materialidade, porém ainda vive em um corpo, agora um computador.

No que diz respeito ao pós-cyberpunk, é imporante entendê-lo não como superação de seu antecessor, mas principalmente como um herdeiro que carrega seu nome seguir necessariamente todos os seus passos. É possível perceber sua ligação com o cyberpunk através de uma atualização das mesmas temáticas desenvolvidas, com ou sem o cenário de caos urbano, poluição visual, inúmeras camadas de informação na superfície; ou um compartilhamento do sonho cartesiano; ou ainda um olhar de desconfiança, se não de pessimismo, em relação às consequências da fusão entre a inteligência humana e o computador. Importante, também, é notar que o pós-cyberpunk não é uma constante nas obras contemporâneas, mas uma característica daquelas que ainda fazem parte do movimento cyberpunk, ao invés de simplesmente se relacionarem a ele pela via de sucessão cronológica.

No conto “Winemaster”, de Robert Reed (1999), a realidade virtual abriga aqueles que desistiram de seu corpo biológico por motivos de doença ou vontade de experimentar a transação. As personalidades transferidas para a realidade virtual são armazenadas em nanomáquinas, guardadas aos milhares nos Nests. Julian Winemaster decidiu realizar a transformação para acompanhar a filha doente que havia decidido o mesmo. Vendo que ela não precisava de sua companhia, passa a refletir sobre o quanto essa realidade pode significar um escapismo:

Quantas vezes Julian havia deitado acordado na cama, imaginando porque havia se importado em ser Transmutado. [...] o que sempre levava às mesmas questões: quando era um ser humano normal, estava genuinamente feliz? Ou a doença da filha foi simplesmente uma desculpa... um pedaço picante de boa sorte que oferecia uma rota de fuga...? (DANN; DOZOIS, 2002, p109)

Sua filha acabou morrendo em um ataque ao Nest onde vivia, pois “apesar das proteções, um pequeno núcleo pesado ainda podia encontrar você, arruinando sua mente, extinguindo sua tão delicada alma” (Ibid., p.100).

Cronologicamente posterior ao cyberpunk, “Winemaster” é um de seus sucessores e continuadores da ideia da transferência da consciência. Porém, nessa narrativa, é explorada a fragilidade do suporte maquínico, com nanomáquinas – “ameaças graves à vida normal”apenas no sentido moral e simbólico – incapazes de autodefesa e facilmente destruídas em função de seu tamanho. Além disso, para fugirem dos próximos ataques do governo, precisam fugir do país, mas isso só é possível se carregadas por um corpo humano. Sendo assim, constroem esse corpo para Winemaster e podem cruzar a fronteira dos EUA.

Ao ser novamente um corpo biológico, Winemaster redescobre a dor nas costas, a fome, o calor, propriedades das quais havia se livrado. E, embora sejam aspectos que ressaltem a degradação física pelo padecimento corporal, são também compensados pela a força derivada de sua biologia e representada pela sua materialidade inicial em comparação com a forma física das nanomáquinas. Além disso, há a sua existência política que se mostra eficiente em transportar centenas de outros seres humanos incapazes de realizar esse deslocamento. Quando o primeiro Nest é destruído, a explicação dada pelo Secretário do governo é de que não havia pessoas ali, “Legalmente [...] estamos falando de máquinas” (Ibid., p.102), e portanto seu valor político, de acordo com as autoridades, é zero.

Por outra via, mas ainda tratando da transformação humana pela união com a inteligência artificial, outra história de Greg Egan, “Learning to be me” (1991), mostra a relação dessa transferência com a morte e a natureza da consciência e do self. No conto, uma peça tecnológica chamada de “a joia” (The Jewel) implantada no cérebro passa cerca de trinta

anos aprendendo como funciona a personalidade do indivíduo para, após esse período substituir o próprio cérebro. O narrador descobriu, aos seis anos de idade, ser portador dessa joia, começando então a refletir sobre a natureza da identidade. Vendo, ouvindo, cheirando, degustando e sentindo o mundo exatamente como ele, a joia também pensa seus pensamentos e, por isso, reflete o garoto, deve se sentir estranha e atordoada ao pensar “se é o eu real ou se é na verdade apenas a joia aprendendo a ser eu” (Ibid., p.47), permitindo assim uma sucessão infinita de questionamentos sobre quem é o eu “real”, logo no início da narrativa.

Aos catorze anos, o menino encontra no conceito do híbrido a solução para esse problema. Precisar decidir entre ser a joia ou o humano são desvios do cerne da questão. Para ele, “enquanto a joia e o cérebro humano dividem o mesmo input sensório [...] havia apenas uma pessoa, uma identidade, uma consciência” (Ibid.,p. 48-49). No entanto, a transferência neste caso ocorre em sentido oposto ao do conto de Reed: aqui, o elemento técnico precisa se adaptar ao corpo biológico, o armazenamento de informações é em tempo real e o cérebro original é retirado do corpo num procedimento conhecido como “a troca” (the switch), e a joia segue aparentemente no mesmo corpo. Digo “aparentemente”, pois, como o próprio narrador percebe, há duas razões para justificar como a troca muda esse corpo.

Primeiramente, ele deduz que o órgão de monitoramento remoto da joia – “the teacher” – não pode conseguir monitorar cada um dos neurônios do cérebro, por uma questão de praticidade e de intrusão física. Logicamente, reside nessas lacunas, nesses “erros”, a diferença entre o indivíduo e a joia. Ademais, reflete ele, os neurônios apresentam comportamentos além do disparar ou não disparar impulsos elétricos, permanecendo ocultos para o conhecimento humano e para a joia outras “sutilezas da bioquímica” que contribuem para a formação e funcionamento da consciência. Ou seja, “copiar a topologia abstrata não era o suficiente” (Ibid., p.52) para desvendar o indivíduo, visto que ele não se resume à sua manifestação física, mas há ainda os “erros”, o imaterial, que não se separa completamente desse material mas também é corpo.

Em segundo lugar, numa conversa com sua namorada que está apavorada com a perspectiva de realizar a troca, ele pergunta:

Suponha que você tenha tido um derrame cerebral [...] que destruiu uma pequena parte de seu cérebro. Suponha que os médicos implantaram uma máquina para assumir as funções que aquela região danificada realizava. Você ainda seria você? É claro.

Então se eles fizessem isso, duas vezes, dez vezes, cem vezes– Não necessariamente procede.

Apesar desses momentos de reflexão, ele também sente muito medo de realizar a troca. Ao pensar sobre o assunto conclui que sua personalidade e seu corpo já sofreram tantas mudanças diariamente ao longo de sua vida, que é como se seus “eus” anteriores já estivessem mortos e muitos deles já caíram no esquecimento causando um desconforto tão ínfimo, que a troca talvez fosse apenas mais um “soluço, comparado a todas as mudanças que [passou] através da vida até então [...] ou talvez [a troca] fosse exatamente como morrer” (Ibid., p.57). Nesse caso, a troca poderia significar um congelamento desse indivíduo, fazendo com que ele permaneça mais igual a si mesmo do que se não tivesse feito, visto que o elemento técnico estaria simplesmente rodando um programa que lhe foi instalado, fazendo com que o instante anterior e o instante posterior ao ato da troca apresentem praticamente nenhuma diferença entre si. Ou seja, dessa forma, a troca permite a ele a afirmação de sua identidade (talvez no sentido dado por Locke quando elabora o conceito de continuador mais próximo – closest continuer). Porém, “identidade” significa fixidez, rigidez e nesse sentido, sim, a morte, ao contrário da intenção inicial da aplicação dessa tecnologia, apresentada no decorrer da história, que prevê a imortalidade.

Entretanto, a joia não estará apenas rodando um programa, mas aplicando as lições aprendidas do “professor”, incluindo lições sobre a mudança constante do corpo, aspecto que o permite se considerar um sistema vivo. E, finalmente, após fazer a troca, ele descobre ser impossível definir o Eu verdadeiro – e isso não importa mais. Não há como saber se o sentimento do Eu no passado era o mesmo do presente. A troca foi feita e tudo parece permanecer igual.

Assim como as previsões de Kurzweil para a datas da predominância do humano versão 3.0 em 2030 e 2040 podem parecer fantasiosas, por inúmeras razões, mas ainda não completamente descartadas, também a FC foi com certeza infeliz em muitas de suas tentativas de realizar uma encenação do desenvolvimento da humanidade baseado na evolução tecnológica. Porém, como advoga John Clute, jamais saiu de moda. Provavelmente, diz ele, a partir dos anos 80, a FC tenha se “dissolvido num mundo tão complexo e irradiado de futuro” que pode ter se tornado “apenas outra voz na Babel de declarações de missão”. Para ele, o cyberpunk foi a voz marcante da FC num momento em que o futuro estava obscurecido pelo véu da incerteza, tratando-o como um deus ao invés de tentar domesticá-lo. (JAMES; MENDELSOHN, 2011, p.66; 68) As Ciências da informação vieram para mostrar que informação é poder e reside nas palavras, portanto a FC dos anos 80 em diante trabalha essa ideia em sua própria constituição. Fazer literatura é exercer o poder de alterar a realidade

material. E para salvar a FC do conformismo e do senso-comum, Clute receita a sua teorização através da escrita literária: “a maneira correta de entender a FC é escrevê-la.” (Ibid., p.78)

4 – UMA IRMANDADE COM A MÁQUINA

Sem dúvida, nada é mais absurdo do que o sistema das pessoas que teimam em dizer que a alma é substância diferente do corpo; seu erro provém do orgulho que sentem ao supor que esse órgão interior tem o poder de retirar ideias de seus próprios fundos.

Marquês de Sade em Da imortalidade da alma

Assim como os seres imaginários classificados por Borges (2007), o híbrido que permeia este trabalho é consequência de uma criação. Cronos, o dragão alado misto de touro, leão e rosto de deus, resultado da união entre terra e água (BORGES, 2007, p.65), cria também o caos. E não menos imaginária é a separação entre a carne e o elemento técnico, possível aqui somente num campo conceitual e teórico, e não fundamentada na separação entre natureza e cultura, há muito questionada por diversos autores. Marchesini35, por exemplo, chama atenção para o entendimento de que a oposição gene/ambiente é fruto de uma perspectiva essencialista que ignora a construção e modificação mútuas e multilaterais entre inato e adquirido. Além disso, essa questão não se resolve com a invocação do híbrido ou pelo fato de ele unir dois elementos separados conceitualmente: carne e elemento técnico são parte de uma única realidade na noção de híbrido e, embora não sejam o mesmo elemento, não podem tampouco ser dissociados.

Assim, o híbrido ajuda tanto a entender a forma como o inato e o adquirido se constroem e se complementam mutuamente, quanto a realizar a quebra de paradigma essencialista que opõe natureza e cultura ao mostrar que são inseparáveis, apesar de encarnarem conceitos distintos. Tomo o híbrido como uma forma de elaborar essa questão – um método, talvez – e uma porta de entrada para o mapeamento desse corpo nas obras de literatura de FC do século XXI selecionadas aqui. Em outras palavras, o conceito de híbrido usa a carne para funcionar como uma maneira de buscar o fim da dicotomia natureza x cultura.

Na mitologia heroica grega, a palavra hýbris serve para designar a transgressão dos limites humanos realizada por um semideus (LEITE, 2010)36. O herói semideus se caracteriza por duas forças agindo em um só corpo: primeiramente, não chega a ser um deus, embora seja

35

Disponível em <http://www.estropico.com/id97.htm>, acesso em 23 nov. 2013.

36 Disponível no site do Instituto Junguiano do Paraná, <http://www.ijpr.org.br/artigos-monografias.php>, acesso em 31 jan. 2015.

semelhante aos deuses em virtude e coragem; em segundo lugar, é mortal e vulnerável ao erro como o humano. Essa zona de indiscernibilidade entre o deus e o homem, realizada no herói semideus, coloca-o num lugar de transgressão de fronteiras possibilitando a incursão na hýbris. Os limites impostos ao herói são aqueles que evidenciam sua condição de mortal, e também sua vizinhança divina, ou seja, ao utilizar seus poderes, cometem o erro de ultrapassar tais limites.

Nesse sentido, a hýbris denota uma característica de extravagância, de incerteza, além de suas traduções literais: injúria, insulto, blasfêmia, ofensa (Ibid., p.2). Impossibilitada de ser classificada como pecado ou erro comum, a hýbris é fator de união entre homens e deuses somente podendo ser realizada através dessa blasfêmia e levando, muitas vezes, a consequências benéficas para uma comunidade. Édipo é o exemplo dado por Leite para ilustrar a hýbris: o herói cai no erro ao matar seu pai e, mais tarde, ao ser agressivo com o velho profeta cego. Contudo, explica ela,

Édipo por duas vezes o herói salvou a cidade de Tebas: quando decifrou o enigma da esfinge [...] e quando aceitou ser seu próprio juiz e algoz [...] Maldito e bendito ao mesmo tempo, inocente e culpado, Édipo vai cair em hýbris e cometer crimes terríveis; mas também vai libertar o seu povo da monstruosa esfinge, vai ser um excelente rei e vai purificar a peste de Tebas com a sua coragem e o seu auto- sacrifício. (Ibid., p.11)

O conceito de hýbris, portanto, serve aqui para entender como características conceitualmente opostas podem conviver em uma única realidade, neste caso, a realidade corporal do herói. A extrapolação e o descomedimento desse herói levam à união de duas esferas que deveriam permanecer separadas: a do profano (humano) e a do sagrado (divino), determinando um padrão de rompimento de barreiras e a possibilidade de novos modelos de criação. A partir disso, a palavra hýbris colabora para formar o conceito de “híbrido”37 que, segundo Reys, a partir do século XIX “é empregado para designar o que é composto de elementos de natureza diferentes [sic] [...] ‘o que provém de duas espécies diferentes’” (REYS, 2004, p.2). Ou ainda, como define o dicionário Houaiss, “que é composto de elementos diferentes, heteróclitos, disparatados.”38 Essa definição se refere ao resultado do contato entre duas esferas representadas por elementos pertencentes a campos conceituais diferentes, incomunicáveis pela separação e sacralidade até o momento do encontro.

37

Ao longo do trabalho utilizo a palavra “híbrido” sem as aspas, mantendo as aspas apenas durante a explicação