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2. UMA DEFINIÇÃO DO TERMO “FICÇÃO CIENTÍFICA”

4.1 CARNE E TECNOLOGIA

4.1.2 O enquadramento e a ambiguidade do elemento técnico

Para delinear a FC neste trabalho, é necessário determinar o termo “tecnologia” – dada sua inserção na disciplina da “Ciência” - e a partir daí definir uma ficção que seja científica. Para Roberts, a força da definição do termo “tecnologia” vem do ensaio de Martin Heidegger “A Questão da Técnica”, de 1953, onde o filósofo coloca a tecnologia como um modo de conhecimento (ROBERTS, 2005, p.11). Além disso, utilizo também a definição de máquina de Deleuze e Guattari, já abordada anteriormente; e a ideia de tecnologia do inventor Ray Kurzweil, defensor da ideia de que a nova humanidade e as máquinas estão superando o humano como o conhecemos atualmente não apenas em inteligência, mas também em consciência.

Segundo o ensaio de Heidegger, a técnica é uma maneira de desencobrimento que leva à verdade, que seria o “correto de uma representação” (HEIDEGGER, 2002, p. 16-18). Esse desencobrimento é aquilo que clarifica e conduz à liberdade e, portanto, a técnica é um instrumento de libertação. Para ele,

A liberdade rege o aberto, no sentido do aclarado, isto é, o des-encoberto [sic]. A liberdade tem seu parentesco mais próximo e mais íntimo com o dar-se do desencobrimento.

[...] abrindo-nos para a essência da técnica, encontramo-nos, de repente, tomados por um apelo de libertação. (Ibid.,p. 28)

O que interessa aqui, antes de discutir a existência e desconstrução de uma verdade absoluta a ser descoberta, é o próprio ato do “desencobrimento”, que pode servir no sentido de recortar uma função, potencializá-la ou, mesmo, diminuí-la no corpo. Para o filósofo, esse desabrigar – que vem através da “composição” (para Marco Aurélio Werle, vale a palavra “armação”; já para Adam Roberts serve o termo “enquadrar” ou “emoldurar”43, enframe) – é o que dura na técnica, o que a torna vigente e, consequentemente, dá-lhe condição de destino, possibilitando ao homem “algo que ele propriamente não consegue a partir de si nem achar e muito menos fazer; pois algo como um homem, que unicamente é homem a partir de si, não existe” (Ibid., p. 393). Ou seja, uma das funções da técnica, por ser parte da história da

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humanidade, é torná-lo humano. A técnica não é apenas um instrumento, pois isso seria como tentar dominá-la, previne Heidegger; mas devemos estar cientes de que a reflexão sobre ela leva ao encontro com seus caminhos, à compreensão de sua ambiguidade e ao entendimento de que nenhuma técnica é neutra, para que seu questionamento continue e gere outros.

A ideia de “composição” é fundamental para Heidegger no que ele chama de essência da técnica, pois é aquilo que encobre o próprio desencobrimento, não no sentido de cobrir, mas no sentido de abranger. A composição neste caso é o fundamental da técnica, não como gênero, tal qual uma ideia de essência platônica daquilo que sempre foi e sempre será, que perdura. Heidegger pensa a composição como aquilo que vige na técnica e, portanto, aquilo que aponta para o descobrimento, com continuidade em sua duração. Ou seja, a composição está sempre em movimento e disso se faz a técnica.

A composição das partes tem relação íntima com o destino da técnica, que é a chave para o perigo extremo, como pontua Heidegger:

A técnica não é perigosa. Não há uma demonia da técnica. [...] a ameaça, que pesa sobre o homem, não vem, em primeiro lugar, das máquinas e equipamentos técnicos, cuja ação pode ser eventualmente mortífera. A ameaça propriamente dita, já atingiu a essência do homem. (Ibid., p.30)

E, sendo assim, Heidegger demonstra uma visão honesta da técnica como meio da potencialização da essência humana, seja ela demoníaca ou benfazeja. Considero essa “essência” como o conjunto das ações, intenções, modos de estar, fazer e tornar-se, ou seja, as “manifestações”. Num paralelo com a ideia de máquina de Deleuze e Guattari, pode-se pensar a composição/armação/enquadramento como a máquina que se encaixa em outras máquinas, serve de caminho para os devires e funciona para a contínua transformação dos conceitos e o aumento da potência humana.

Ray Kurzweil ficou famoso por desenvolver sistemas de reconhecimento de fala e outros softwares de reconhecimento de padrões. Além disso, suas ideias sobre o pós-humano também envolvem a noção de ciborgue que exige a redefinição do conceito de humano. A tecnologia, para ele, “vai além da simples criação e uso de ferramentas. Ela envolve um registro da fabricação de ferramentas e uma progressão na sofisticação de ferramentas [...] e é, em si própria, uma continuação da evolução por outros meios.” (KURZWEIL, 2007, p.34). Nesse registro da criação e uso de ferramentas, pretendo situar a literatura (a arte funciona como um registro, assim como a investigação científica que, porém, trabalha em outra chave discursiva).

O inventor explica que a palavra “tecnologia” “deriva do grego tekhné, que significa ‘ofício’ ou ‘arte’, e logia, que significa ‘estudo de’” (Ibid., p.36). Dessa forma, o ser humano

se separa das demais espécies - que também fabricam e usam ferramentas, mas não registram esse uso para formar conhecimento -, pois proporciona a própria evolução através da vontade, além da costumeira evolução com base no DNA (Ibid., p.37), esta, independente da vontade ou atitude consciente. A tecnologia, para Kurzweil, está ligada também a uma transcendência resultante da montagem de materiais, contraria à simples soma das partes. Assim como um ser humano não é uma mera união de órgãos e membros, mas precisa de uma lógica interna e uma estrutura para que funcione como um corpo, o objeto resultado da interação correta das partes – ou do bom encontro entre elas – será essa “evolução por outros meios”. Essa ideia, que mostra em síntese uma neutralidade da tecnologia, está consonante com a composição de Heidegger, pois é dela que surge a ferramenta tecnológica, a partir da qual se fará um uso criativo ou destrutivo. Para ilustrar isso, Kurzweil utiliza muitos exemplos, dos quais prefiro retomar o quase exaustivamente evocado exemplo do fogo (também, uma representação do mito de prometeu), em que ele pode tanto iluminar um ambiente e trazer luz às ideias, quanto causar incêndio e morte, dependendo de sua utilização.

As máquinas abstratas de Deleuze e Guattari “excedem toda mecânica” (1997a, p.227), pois, embora operem concretamente, também abrem para agenciamentos de todo tipo. Numa composição de máquinas, cada uma delas é uma parte do todo maior, ou infinito, parte que opera tanto sozinha quanto em conjunto e tem na continuidade seu combustível. Pensar na técnica, deste ponto de vista, significa enxergar essa composição e perceber o quando ela se dá num fluxo de territorialização e desterritorialização para se tornar real. Não apenas substâncias formam essa máquina, mas também funções, intensidades e velocidades, criando linhas de fuga que serão uma de suas características.

É interessante notar que Deleuze e Guattari observam a ambiguidade da tecnologia na forma da máquina de guerra que, dizem, “não tem por si mesma a guerra por objeto, mas passa a tê-la, necessariamente quando se deixa apropriar pelo aparelho de estado” (Ibid., p.130). Portanto, a tecnologia é considerada ambígua não no sentido de possuir uma neutralidade em sua essência, mas no sentido de que embora seja criada com uma função pré- definida, essa função somente passará a existir a partir do momento em que se fizer uso dessa tecnologia e esse uso for revelado criativo ou destrutivo. Ainda assim, é importante lembrar que mesmo na destruição pode haver criação, e vice-versa. Porém, Deleuze e Guattari estão falando de uma destruição em paralelo com a morte que, neste caso, seria tudo aquilo que faz parar o fluxo e interrompe as conexões. Quando as conexões são rompidas, a criação acaba e a máquina perde a potência de metamorfose, diminuindo sua abstração até se solidificar e

perder consistência. Nesse caso a tecnologia é considerada destrutiva, a guerra, a alienação, a escravidão, o embrutecimento do humano acontecem. Porém, com linhas de fuga, as linhas criadoras, uma máquina multiplica suas conexões e pode fazer rizoma com outras máquinas, operando agenciamentos de vida e possibilitando a arte, a filosofia, as relações positivas.

É pensando nesse rizoma de máquinas, conectadas por agenciamentos múltiplos, que a FC pode ser pensada dentro daquilo que se chama arte. Na literatura, mundos são criados e interconectados, são realidades algumas vezes efêmeras e outras vezes duradouras, mas sempre com sua parcela de vigência. A tecnologia da escrita opera dentro de um código de registro estético com infinitas possibilidades de abertura de agenciamentos. É notável que da mesma forma que esses agenciamentos se abrem dentro de um espaço literário, eles também se fecham, seja por terem suas conexões interrompidas e suas linhas de fuga cortadas, ou por esbarrarem na fronteira da linguagem, que é em si uma máquina e não pode ser completamente dominada.

Embora não possa ser totalmente dominada, a técnica pode e deve seguir seu fluxo contínuo rumo à ideia de liberdade, como coloca Heidegger. O carro, por exemplo, é uma máquina criada pela mão humana e que potencializa a velocidade de deslocamento, mas a partir do seu uso pode gerar criação ou destruição. Na obra Crash, de J. G. Ballard (1973), o prazer dos personagens é conseguido através de acidentes de carro, com ferimentos graves – e, por vezes, a morte – e sequelas ostentadas como troféus. Em determinado momento, algumas pessoas estão prestes a assistir a colisão entre um carro e uma moto, ocupados por bonecos de teste de segurança automobilística, quando Vaughan comenta:

A tecnologia de simulação de acidentes [...] é notavelmente avançada. Usando essa configuração eles poderiam reproduzir os acidentes de Mansfield e de Camus – e até mesmo de Kennedy – indefinidamente.

- Estão tentando reduzir o número de acidentes aqui, não aumentá-lo. - Acho que é questão de ponto de vista. (BALLARD, 2007, p.136)

Enquanto alguns veem o destino da tecnologia de simulação de acidentes na prevenção de danos, outros o encontram na repetição da diferença. Ambos, porém, o enxergam como ferramenta de criação, sendo potencialmente benéficos seja ao prazer do corpo ou à sua conservação. Essa “questão de ponto de vista” fala justamente de uma das faces ambíguas da técnica, o ponto de bifurcação no qual se pode optar pela criação ou pela morte que, para Heidegger, é o que fundamenta o questionamento da técnica: seu uso.

Pouco antes da cena acima, Helen e Ballard (o narrador em primeira pessoa tem o mesmo nome do escritor da obra) estão dentro do carro num estacionamento, onde pararam para ter relações sexuais e, enquanto vestem a roupa, o narrador reflete sobre a situação de

Helen. Ela perdeu o marido em um acidente de carro e, após o fato, entregou-se a um comportamento promíscuo. Ao pensar nisso, Ballard pondera os atos de destruição que geraram linhas de fuga na mulher: “A colisão entre nossos carros e a morte do seu marido tinham se tornado a chave para uma nova sexualidade.” (Ibid., p.131)

Em outro momento, Ballard reflete sobre a união da tecnologia com seu corpo e o papel dela em suas relações com Helen: “Estranhamente, nossos atos sexuais aconteciam apenas dentro do meu automóvel. No amplo quarto de dormir da sua casa alugada eu não conseguia sequer ter uma ereção.” Ou ainda quando percebe que havia entre eles “um pequeno mas crescente repertório de ternuras e afetos [...] eu podia atingir o orgasmo simplesmente pensando no carro em que Helen Remington e eu levávamos a cabo nossos atos sexuais.” (Ibid., pp. 92-93) Aqui, o elemento técnico potencializa o afeto, sem ele a morte esteriliza o território, e os agenciamentos – que precisam do território para ocorrer – são impossibilitados.

Essa obra de Ballard, portanto, é um espaço onde é possível detectar a desterritorialização e a reterritorialização da máquina do afeto, veiculada pelas relações humanas. O automóvel se transforma em uma máquina de prazer e um veículo de afeto, sem o qual são interrompidas as conexões que possibilitam a existência do híbrido. No caso, prazer e afeto são resultados desse híbrido, que tem múltiplas faces e precisa dessa linha de fuga encontrada na tecnologia para ganhar vida.

Sendo assim, o sentido do termo “elemento técnico” que utilizo aqui é o de um elemento que foi criado pelo homem e pode gerar esse questionamento colocado por Heidegger, seja do humano ou da técnica, pois é através dela que ele se questiona. Quando utilizo o termo “elemento técnico”, ou “produto da técnica”, falo dessa ideia de técnica que reflete e intervém no humano, ao contrário do termo “carne”, que será usado para falar daquilo que é corpo, os tecidos que nasceram e tem continuidade, mesmo sendo substituídos periodicamente. Carne, como já dito, são os ossos, o sangue, a pele, os pelos; mas também a alma, a memória, o pensamento; antes da intervenção da técnica, ou seja, “carne” é o corpo impossível. Aquele corpo que se encontra no imaginário, na ilusão de que existe uma natureza não artificial e não técnica; de uma pureza biológica dos tecidos. Entretanto, essa condição imaginária não o faz menos real ou menos existente, ao contrário, potencializa essa existência principalmente dentro do campo estético das artes. E assim, a tarefa de buscar o híbrido dentro da literatura de FC contemporânea concerne e faz reverência a essa união da carne com

o elemento técnico, em que o corpo impossível encontra outros impossíveis, fazendo seu papel no questionamento da técnica e da própria condição humana.

4.2 – O CIBORGUE E A MUDANÇA DE PERSPECTIVA

A figura do ciborgue serve a muitos propósitos, desde pensar o comportamento humano e suas relações com a própria criação até explorar os limites físicos do corpo em sua capacidade de transformação/deformação/reconfiguração. Sendo assim, a estratégia pós- moderna da união entre o humano e a máquina é utilizada por Donna Haraway como uma janela para visualizar a construção de dualidades e monumentos erigidos às políticas identitárias - atualmente, pontes a serem destruídas para dar lugar ao espaço aberto da criação humana. Segundo a autora, “a relação entre organismo e máquina tem sido uma guerra de fronteiras” (SILVA, 2000, p.41) observada quando percebemos o caráter cultural e fabricado do ambiente, da sociedade e do corpo.

O híbrido toma a forma do ciborgue quando visto como a ficção resultante dessa fabricação responsável pela quebra de fronteiras que existem principalmente na forma das dualidades opositoras excludentes: homem x animal; orgânico x inorgânico; físico x não- físico. A exclusão do Jardim do Éden é a primeira exclusão do ciborgue, segundo Haraway, pois ele não reconhece a necessidade de ser completado, ou seja, está completo em sua incompletude. É assim que o desejo, como elaborado por Deleuze e Guattari, participa como elemento básico desse ciborgue livre das amarras da falta e da lacuna a ser preenchida, pois os espaços em branco existentes ali ajudam a compor sua poética. Espaços deixados pela salvação do pai, pela alma imortal, pela mente superior ao corpo, pela certeza e segurança do conhecimento iluminista e pelo conforto da visibilidade.

É com a máquina miniaturizada que o ciborgue alcança a invisibilidade e mostra sua capacidade letal. A invisibilidade da tecnologia ameaça, pois oferece dúvida ao sentido privilegiado da percepção, num contexto onde tanto a consciência quanto a matéria podem ser simuladas e acusa a fragilidade das certezas. A certeza da materialidade do corpo, do controle da informação, da manipulação da identidade pelas políticas de massa e pelos “kits” de perfis padrão oferecidos no mercado (ROLNIK, 1997), são todos expostos ao riso sarcástico do ciborgue que assume o único compromisso com a dissolução de fronteiras e toma a frente na relação de intimidade entre corpo, mente, animal e máquina. A Biologia Genética traduz o corpo em código, transformando-o em objeto escrito e decifrável, a linha de pesquisa de que

fala Breton, enquanto a microeletrônica traduz a mente nos códigos da inteligência artificial, dando ao simulacro legitimidade ao desprender-se do original (SILVA, 2000, p.73). A biotecnologia e a teoria do pós-humano percebem a inseparabilidade desses códigos quando permite o adeus à tradição platônica ou cartesiana ou maniqueísta e ao sujeito liberal que possuía um corpo ao invés de ser um corpo (HAYLES, 1999, p.4).

Informação e código, entretanto, não podem constituir a única forma de ver um sujeito, pois a perda da materialidade retira uma estrutura física, sem a qual não há sujeito. O corpo existente dentro do ambiente virtual, instância exaustivamente explorada no cyberpunk, tenta se livrar dessa materialidade e, por isso Hayles aponta a figura do avatar para ilustrar o modo como a oposição entre presença e ausência é hoje insuficiente para definir a existência corporal, posto que o avatar é aquele que está presente e ausente ao mesmo tempo (Ibid., p.27). Assim, encontro no avatar de obras como The Accord a manifestação do híbrido resultante do humano que modificou parte de sua materialidade, pois pode deixar para trás uma parcela da carne enquanto outra parcela realiza o encontro com a máquina representada pelo elemento técnico, no caso a máquina-computador ou outra equivalente que sustente a realidade virtual.

Segundo Hari Kunzu, o que diferencia do ciborgue o autômato presente “desde pelo menos o iluminismo” (SILVA, 2000, p.135) na cultura de especulação científica é precisamente a informação. Após Norbert Wiener ter cunhado o termo “cibernética”, apontando também para o feedback como principal processo dentro dela, os problemas das mais diversas áreas como “a economia, a política e talvez a moral” (Ibid., p.137) tornaram-se passíveis de uma redução ao formato de informação, ou seja, a solução de problemas relacionados a essas áreas passou a ser possível no formato de sua decodificação. Porém, hoje a cibernética é um campo de pesquisa que aparece dentro de outras áreas mais abrangentes, como a informática, as línguas e as artes, por ser sozinha insuficiente para lidar com as relações entre os reinos animal, vegetal e mineral e o formato máquina, que não podem ser resumidos na forma de feedback ou pura informação.

Na cultura high-tech, segundo Haraway, é difícil demarcara distinção entre criador e criatura, entre mente e corpo, pois as práticas de codificação mostram que “ser o outro é ser múltiplo” (Ibid., p.100), ou seja, veem no outro a evidência da insustentabilidade do um. É somente no outro, no alien, que a diferença pode existir e o híbrido não pode ser separado, embora possa ser fragmentado (desde que com igualdade de valor ou eliminação da hierarquia entre as partes); não pode sonhar com o original, mas carrega em si a experiência do futuro, pois sabe que a exclusão mútua entre o Eu e o outro, entre o homem e a máquina, entre

criador e criatura, acaba sendo ingênua caso se estabeleça a partir de regras de dominação. No momento em que há a sombra dessa relação ou a ameaça de seu retorno, emerge o conflito apresentado no modo FC. Os robôs de Asimov que lutam para serem reconhecidos, a tecnologia onipresente e transformadora de Philip K. Dick e os marcianos sombrios e assustadoramente humanos de Bradbury, todos afirmam sua realidade e desafiam qualquer um a questioná-la nas bases de uma relação criador x criatura.

É possível captar, na leitura de As Crônicas Marcianas, a sensação de solidão no universo compartilhada pelos seres humanos, sensação que facilmente conduz à necessidade de um criador (ou à criação de um criador). Dentre as principais mensagens encontradas nos textos que compõem o livro, nos deparamos com a de que os alienígenas somos nós, leitores de Bradbury, leitores de FC, membros da espécie humana, por estarmos aparentemente tão alheios ao que acontece no universo e no curso natural das coisas que somente é possível enxergar a realidade com os mesmos olhos curtos e velhos com os quais consideramos as existências próximas a nós e, portanto, buscamos, sim, a vida em outros cantos da galáxia, mas ela precisa se encaixar em nossos moldes conhecidos ou então passará despercebida. Talvez Bradbury não estivesse tão preocupado em dar ênfase à tecnologia ou sua inovação e seus limites, mas, pulando direto para as consequências de sua aplicação, servindo-se dos temas da FC para descrever a civilização que as utiliza e o que resta das relações entre o Um e o outro nesse contexto.

Em “O Marciano”, por exemplo, Bradbury mostra a maneira com que um habitante de Marte utiliza a projeção humana do outro para se adequar conforme sua visão e expectativa. Ao longo da narrativa, ele se transforma em várias aparências, de acordo com a necessidade do momento. Extremamente plástico, o marciano no fim da história

se transformou. Ele era Tom, James, um homem chamado Switchman, outro de nome de Butterfield; era o prefeito da cidade, a menina Judith, o marido William e a esposa Clarisse. Era cera derretida que se moldava às ideias deles [...] o rosto mudava a cada súplica (BRADBURY, 2005, p.221)

O alien é, nesse caso, uma ferramenta de evidenciação do outro como projeção da memória individual e do contraste posto por ele entre uma imagem em transformação constante sobre o fundo da perspectiva ou ponto de vista do um.

Essa imagem em transformação remete também ao conceito de híbrido de Andrieu, a