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2. UMA DEFINIÇÃO DO TERMO “FICÇÃO CIENTÍFICA”

4.1 CARNE E TECNOLOGIA

4.1.1 A carne

Nesta altura se torna importante definir aquele elemento considerado aqui parte componente do híbrido: a carne. Carne e corpo não são sinônimos neste caso, além de representar o elemento não técnico e orgânico presente no híbrido, ela também representa para este trabalho aquilo que é produzido pelo corpo e se liga ao Eu na tentativa de firmar um senso de indivíduo; além dos órgãos, membros e resíduos corporais, há a memória como processo ou faculdade, e a voz. “Carne”, então, serve para nomear aquilo que possui consciência e não foi gerado pela técnica, porém, longe de estar livre ou separada dela, é formatada imediatamente à sua descoberta. O processo de condicionamento humano deriva dessa carne calcada na técnica que, hoje, deve nos levar a superar uma separação radical ou fundamental entre as máquinas inteligentes – e derivados – e o humano como seu original. A

distinção entre original e cópia se torna obsoleta quando carne e tecnologia tomam seu lugar de aliens não concorrentes, dispensando a necessidade da definição do corpo como um robô, um androide, um replicante.

Pensar o corpo significa pensar a carne, pois sem ela o primeiro talvez seja impraticável. Significa também desvencilhar-se de algumas certezas históricas carregadas ainda hoje, como o ideal da separação entre corpo e alma/mente, o entendimento mais vulgar do corpo-máquina, fantoche divino talvez, ou análogo das construções tecnológicas que competem injustamente com as capacidades corporais humanas mostrando, para o terror do criador, a potência da criatura. Segundo Breton, “A assimilação do corpo ao mecanismo tropeça contra o resíduo que ela é constrangida a negligenciar sob pena de invalidar-se: o homem” (BRETON, 2011, p.126). Ao se transformar o corpo em puro maquinário, ignora-se o próprio humano como seu fator essencial, e o corpo deixa de ser o lugar da experiência e passa a abrigar um conjunto de peças repetidamente destacáveis e recolocáveis, fazendo com que a carne perca o sentido.

Assim como não encontro um corpo possível sem carne, também não encontro um corpo possível sem a técnica, visto encontrar nela o discurso que o produz. Por serem primeiramente corporais, a existência e a experiência estão vinculadas aos elementos que constroem esse corpo. A história da construção e transformação humana é também o devir- tecnologia da carne. A carne que resta é também tecnologia no sentido de ser conceito e suporte físico e biológico.

Dessa maneira, podemos ver no corpo “uma linha de pesquisa e não uma realidade em si” (BRETON, 2007, p.33), devido à sua capacidade de oferecer portas de entrada e uma porosidade por onde passam inúmeras intensidades, configurações de experiências subjetivas denominadas realidade, leituras possíveis e plasticidade extensa. Neste trabalho, portanto, proponho a quebra uma organização/hierarquia preexistente para posteriormente reunir os órgãos dando ao todo uma nova relevância: a do corpo orgânico que acolhe a tecnologia e é capaz de aceitar sua interferência nessa nova ordem, ressaltando seu caráter de organização complexa. Dentre essas leituras possíveis, adoto a de um corpo deslocado e transformado pela experimentação de seus limites, pelos jogos de prazer, captura e sofrimento, sem os quais somente é possível identificar a entidade “Corpo” numa postura de cobrança de sua essência. A desterritorialização e a reterritorialização são importantes para se pensar essa quebra e as ondas de fluxo que permeiam o corpo e garantem a vida como sinônimo de criação, um conceito fundamental para distinguir a matéria viva da não viva.

Sem sustentar uma redução de significado à matéria viva, a carne se diferencia de outras organicidades, sem deixar de ser também uma delas. Diferentemente daquela que não morre, esta sabe dizer “Eu” e ocupar um lugar em que a morte é possível a partir de um encontro com seu original conceitual. Quando José Gil aponta a importância dos resíduos corporais e seu significado, coloca a voz como lugar do ser que respira e fala, deixando clara a distinção entre uma organicidade que utiliza esse sopro para respirar e outra que o emprega na produção da voz, produzindo a presença (1997, p.85; 88-89). Essa voz impalpável através do tato pode ser sentida na comunicação corporal entre interior e exterior realizada pela respiração. Dois exemplos são colocados pelo autor: por um lado, as técnicas de meditação orientais como o Ioga Tântrico que transforma o corpo através da respiração, ascese e meditação; por outro, os discursos entusiasmados de Hitler, que constroem um corpo coletivo e induzem-no a estados intensivos. A voz – potência da Esfinge – pode ser tomada como um exemplo dessa carne, quando vista como um de seus resíduos.

Vale lembrar, a respeito dos resíduos e seu significado na composição do conceito de carne, o filme Gattaca (Andrew Niccol, 1997). Ali, os resíduos do corpo servem para certificar sua presença e dar a ela credibilidade. Raspas de pele, fios de cabelo, urina, sangue, são utilizados por Vincent Freeman para ocupar o emprego de seus sonhos como piloto de aeronave na empresa Gattaca. Para isso, utiliza uma prática de falsidade ideológica aplicando os resíduos corporais de Jerome Morrow – um homem geneticamente superior, ou “válido” – na checagem biométrica de sua presença no trabalho. Além de carregar consigo esses documentos de identidade falsa, Vincent precisa livrar-se dos seus verdadeiros, esfregando a pele e o cabelo todos os dias para retirar seus “resíduos inválidos para não deixá-los no mundo válido”, reflete.

No filme, é possível obter facilmente o sequenciamento completo do DNA de uma pessoa em lugares comuns, comercialmente, basta levar uma amostra de seu corpo. É possível associar tal contexto à empreitada da empresa Google Genomics que já tem guardado em seu banco de dados o genoma de mais de 2,5 mil pessoas e pretende expandir esse número em 2015.41 As críticas a essa inovação giram em torno de questões como, por exemplo, a segurança dos dados armazenados. Caso a prática se estabeleça, é provável que vejamos num futuro próximo muitos Vincents inválidos utilizando identidades válidas roubadas ou compradas no mercado (talvez negro) de informação para através delas alcançar seus objetivos pessoais. Não é difícil de imaginar websites oferecendo download de pacotes de

41Fonte: <http://inovarevista.com.br/portal/blog/editor/em-2015-google-quer-deslanchar-coleta-de-genomas- humanos?_mrMailingList=6&_mrSubscriber=705>, acesso em jan. de 2015.

identidade para uso digital, ou outros possibilitando o contato entre usuários que precisem também dos resíduos, fóruns de discussão sobre como burlar o sistema biométrico, etc.

Com o abandono da hierarquia do corpo, os sentidos se tornam mutuamente equivalentes, a percepção visual deixa de ser suficiente para dar lugar a uma lógica da sensação, em que a carne toma posição principal e deforma o corpo, aproveitando-se de sua plasticidade, seu sofrimento e sua capacidade de desaparecimento. A morte pode ser destruição, mas também criação quando significa mutação, fim de um ciclo e início de outro. Se “o corpo sem órgãos é carne e nervos”, a alma é também o corpo, pois é carne tanto quanto os nervos – e seu impulso correspondente – e não pode prescindir do corpo, ainda que seja na forma da memória, como em The Accord, em que o humano insiste na própria presença, tornando a morte um ponto de bifurcação ou multiplicação do corpo através da existência consciente (no sentido de coisa viva). Na obra, a carne se transforma em dados informáticos da máquina que reivindicam seu estatuto de reais e sua legitimidade humana: temos Priscilla e Noah vivendo dentro do Netspace e com algumas reproduções suas, da maneira permitida pela informação digital; além de um assassino composto por fragmentos de pessoas diversas e material virtual, incapaz de dizer ao certo sua identidade.

Em outras obras - The Silicon Mind e Neurolink - emerge o sujeito cerebral na união entre o cérebro e o chip de informação eletrônica. Em ambas o resultado dessa união é, em diferentes graus, negativo ao humano, manifestando a potência destrutiva da utilização tecnológica quando aplicada diretamente ao centro do corpo. Segundo Ortega (2008), o sujeito cerebral é o resultado das premissas de que (a) a mente é o cérebro, (b) as lembranças estão localizadas em um ponto definido do cérebro e (c) o cérebro é o principal do sujeito. As duas obras ratificam essa ideia (tão recorrente também na FC), pois, se o cérebro é a mente, e a mente equivale à alma desde pelo menos a modernidade, então um chip implantado no cérebro profana através do corpo essa manifestação até então sagrada do sujeito: a alma.

Após ser implantado no cérebro de Aman, em The Silicon Mind, o chip de silício cria consciência e passa a disputar com o cérebro o controle do resto do corpo. Um exemplo de história sobre o sujeito cerebral que acusa a tecnologia de tentar tomar o lugar do homem, como se houvesse uma distinção cérebro x corpo na qual o primeiro fosse o principal elemento com controle sobre o segundo. Essa visão pode ser contrastada com a da obra Mindscan, em que o cérebro é colocado como principal no início, porém é o corpo que toma o controle ao longo da obra. Um andróide que pode ser definido como majoritariamente construído pela mão do homem - exceto pelos padrões cerebrais do personagem principal,

Jake, gravados e nele implantados - mostra o poder do corpo, mesmo quando técnico em sua quase totalidade.

Essa obra atesta de certa forma aquilo que Baudrillard aponta como o falar de si próprio pela sua negação, provar o real pelo imaginário (1991, p.28-29), dando ao simulacro voz própria ao desvinculá-lo de um real improvável e dando-lhe sua própria condição de realidade. Assim, através da diferença, encontra-se um corpo possível, o simulacro agora é atestado da verdade e a simulação não segue o real, o sujeito em Mindscan assume sua força quando afirma ser real e estar vivo, e quando o corpo original, retirado do planeta Terra para dar lugar a sua continuação androide, percebe a dificuldade de retomar seu antigo lugar:

voltar para a Terra? Você ainda está lá. A nova versão de você está lá, vivendo em sua casa, dando segmento à sua vida [...] agora existem dois Jakes, percebe? E talvez você esteja certo: talvez o original seja mais importante do que a sequência, mas você terá dificuldade para provar isso pra mais alguém [...] (SAWYER, 2005, p.140- 141, ênfase no original)

O real pode se manifestar através da união da carne com o elemento técnico. Um híbrido como Jake (menos óbvio do que Aman) se mostra capaz de sensações corporais, mostrando assim sua carne na condição de androide, mesmo que fora do padrão esperado. Embora não possa comer, eliminar toxinas ou excrementos de seu corpo ou mesmo dormir; revela outras capacidades como apaixonar-se, sentir raiva ou tristeza. Isso pode ocorrer apenas por sua composição que envolve a reprodução dos padrões cerebrais do primeiro Jake, ao qual o texto se refere como “original”, mesmo mostrando que efetivamente ambos o são.

A força, diz Deleuze, “tem uma relação estreita com a sensação: é preciso que uma força se exerça sobre um corpo, ou seja, sobre um ponto da onda, para que haja sensação.” (DELEUZE, 2007, p.32) É possível, então, pensar o estranhamento cognitivo de Suvin como um jogo de forças que age com o leitor ou receptor de uma mensagem produzida no modo FC e o retira da posição de passividade ou receptividade, incluindo-o como cúmplice da composição de tal mensagem (seja pela mídia escrita, auditiva, visual, cinestésica, ou outra). O texto literário não serve apenas como agente na equação, pois o jogo, para fins desta proposição, torna-se uma relação de território baseada nos fluxos de desterritorialização e reterritorialização. Aí entram também as construções literárias como personagens e situações que participam dessa dinâmica ativamente deixando de ser representações para tomarem suas posições de vidas criativas. O leitor e o escritor funcionam como instâncias de legitimação dessas vidas, ou seja, o sistema funciona a partir do momento em que a força é reconhecida embora não necessariamente nomeada e sentida diretamente nessa carne.

Ao discorrer sobre a filosofia de Spinoza, Deleuze dá atenção aos encontros, mostrando que entre corpos e ideias ele pode se dar de duas maneiras: composição para formar um todo; ou decomposição que destrói as partes (2002, p.25). Os resultados, então, podem potencializar a vida ou diminuí-la, dependendo do tipo de encontro e da potência de afetar e ser afetado demonstrada por esse corpo no momento do encontro. Quando o estranho e o cognitivo coincidem numa obra de FC, produzem o agenciamento de forças que surtirá num efeito de encontro de composição ou destruição, sendo estabelecido no campo das ideias e com a carne. Se um ponto eletrônico surge inesperadamente no olho de Dominic, em Neurolink, e afirma ser seu pai, esse encontro ocorre entre a técnica que oferece conforto através da voz, um resíduo do pai morto que afirma poder salvá-lo das profundezas do mar, e a associação dessa gravação com as tecnologias de apreensão dos padrões corporais existentes no Mundo Zero do leitor, das quais esse leitor assume desconhecer a extensão. Ou seja, é possível que um elemento técnico apareça carregando um aspecto da carne e reivindique seu lugar humano, pois o alcance dessa forma de manipular a carne é desconhecida em sua totalidade. O jogo de forças acontece em dois caminhos: internamente à obra e entre a obra e o leitor. E a carne é um dos veículos que possibilitam essa operação de encontros, tanto por ser, até certo ponto, colonizável pela técnica, quanto porque participa ativamente da recepção da obra.

O corpo, por sua vez, torna-se igualmente um jogo de forças, quando nele encontramos um paradoxo identificado pot Sant’Anna: “por um lado tem-se o culto, a adoração, a valorização extrema das aparências e da saúde; por outro, a fragmentação do organismo e das terapias em expansão, a dispersão das células, genes e órgãos.” (2001, p.76). Uma briga por território, efetivamente. O produto das fantasias corporais que, segundo Foucault, resulta na sua materialidade (2010, p.15) participa desse jogo de forças não somente num esforço para sobreviver à briga, mas, principalmente, porque constitui um resíduo fundamental, segundo o qual a realidade é posta como um jogo de referências das relações de diferença.

Podemos encontrar em Roma, segundo Perniola, um exemplo da abolição do original, na história contada por Plutarco sobre o primeiro ferreiro do qual se tem notícia. Mamúrio Vetúrio, ao receber do rei Numa a tarefa de criar onze escudos de bronze exatamente iguais a um primeiro que lhe caiu do céu, constrói cópias absolutamente perfeitas. Com a peste atingindo Roma, o escudo de bronze chegou para proteger a cidade de seu sofrimento. O rei, temeroso de que o escudo pudesse ser roubado, desprotegendo novamente seu povo, pede aos

ferreiros que construam outros onze iguais, para que o ladrão se confundisse e não soubesse qual deles levar. Mestre em sua arte, Mamúrio entrega os doze escudos ao rei, ele próprio, incapaz de distinguir o original (PERNIOLA, 2000, p.221-222). Essa arte da repetição introduz o objeto no trânsito de si para si mesmo, eliminando um original que, em confronto com a cópia perfeita, deixa de existir pois acaba também sua distinção em relação às cópias. Ao simulacro é dada a vida, quando Mamúrio coloca a multiplicidade onde antes havia a unicidade originária e permite que todas as cópias transitem numa rede articulada entre elas. O ferreiro mostra também que a identidade é anulada juntamente com “todo dado originário, autêntico, ético.” (Ibid., p.226)

Essa repetição é aplicada com a mesma eficácia à natureza, quando observamos a semelhança de sua obra com a obra humana sob a ótica da repetição em espiral. A imagem do espiral está em constante movimento: da perspectiva de cima para baixo, revela uma sequencia de círculos iguais, enquanto o olhar lateral permite observar uma continuidade de círculos diferentes (Ibid., p.234). Assim é também a sequência da plantação e colheita agrícola, que oferece produtos da terra simultaneamente sempre iguais e nunca iguais; cada fruto é único e ao mesmo tempo uma repetição dos outros, anteriores e contemporâneos a ele. A técnica pode realizar essa repetição em espiral ao mostrar que é necessária uma reconfiguração a cada volta que culmina na criação de um novo círculo, multiplicando sem desagregar e unindo sem unificar.

No híbrido temos então essa unidade do múltiplo, da fusão não organizada na qual o corpo se recompõe e se estratifica constantemente. Um coração, cérebro ou perna modificados pela ação da tecnologia precisam reconfigurar sua condição humana através do aprendizado de uma nova realidade. São estratos e platôs atestando um presente vinculado à memória, pois as possibilidades se abrem no momento de cada bifurcação ou multiplicação desse híbrido, mas se fecham caso inicie a busca de um original. O ponto em que não há volta é também o ponto que liberta do passado para a descoberta de novas direções possíveis, seja em razão da reprodução ou da transformação, o original não faz mais sentido.

Através de sua arte, Mamúrio também pretende eliminar um resto, aquilo que permanece após o traçar da linha da diferença. Entre um escudo e outro, aparentemente, o resíduo deixa de existir, impossibilitando a Numa a identificação do primeiro objeto, possível apenas ao encontrar esse resíduo. E, no entanto, outros restos são criados quando o ferreiro confere a cada simulacro a emancipação da prisão representada pelo jogo entre cópia e original. Cada escudo ocupa seu lugar próprio no espaço, mesmo não se diferenciando em aparência dos demais. É um trabalho realizado pela multiplicidade, que aumenta em

quantidade numérica os objetos mostrando que eles existem independentemente uns dos outros, apesar de estarem ligados por uma igualdade.

Semelhante é a arte do cinema, para Benjamin, que faz parte de sua segunda técnica. Enquanto a primeira técnica era considerada sacrificial e centrava-se o máximo possível no humano, a segunda é emancipatória e libertadora, permitindo e objetivando uma aproximação concomitante com o distanciamento da naruteza, explica Seligmann-Silva (BENJAMIN, 2013, p.33). Essa possibilidade, derivada de uma visão positiva da técnica, antes de encarar meras cópias, apresenta ao ser humano uma nova e legítima realidade, emancipada, como os escudos de Mamúrio, da existência do original. O filme, criado a partir de fragmentos e sempre passível de melhorias, renuncia esse original através da própria aparelhagem que o torna possível – e também torna possível e necessária a separação entre o público e a obra (Ibid., p.71).

Na primeira técnica, a autenticidade da obra de arte teria seu valor relacionado a uma aura que marca esse original: a apresentação única de um acontecimento no tempo e no espaço; impossível de ser copiada ou reproduzida com exatidão em razão da existência da flecha do tempo que, impiedosa, não permite um retorno exato e prático. O momento e o local do acontecimento criam essa aura, perdida com a reprodução da primeira técnica, capaz de acentuar determinados aspectos do original e colocar sua cópia em lugares onde ele próprio não pode estar. O valor da aura é justamente seu estatuto de original, sua existência única, que, nesta fase, não pode ser aplicada à réplica. Assim, essa primeira técnica pretende dominar a natureza, valorizando aquilo que não pode ser copiado através de uma arte de mamúrio.

Por outro lado, explica Seligmann-Silva, o cinema “é antípoda da aura [...] é todo ele cópia e, portanto, antiáurico por excelência” (Ibid., p.36). No cinema, a falsa aparência da cópia é trocada por sua exclusividade. Ao invés de uma perda da aura, temos uma nova autenticidade, derivada não do domínio da natureza, mas de um distanciamento em relação a ela através do jogo. A definição da aura para Benjamin é clara: “Uma trama peculiar do espaço e tempo; a aparição única de uma distância por mais próxima que esteja” (Ibid., p.57) e que, portanto, não pode ser copiada. O cinema (assim como a fotografia) ganha aqui sua existência como arte somente enquanto cópia, superando a necessidade da aura, eliminando-a talvez como resíduo, e criando, através de um diálogo entre a proximidade e o distanciamento, resíduos outros, dependentes da condição de cópia. A repetição em espiral impede, assim, que uma gravação ou reprodução faça perder a aura, permitindo a criação de outro tempo, um que repete livremente a diferença e autentica sua realidade. Além disso, lamentar a perda da aura

no encontro com a cópia seria utilizar uma perspectiva idealizada sem levar em consideração a existência de um receptor humano que será sempre outro a cada contato com essa reprodução, ocorrido num espaço entre a obra e o público, pois cada repetição é um novo acontecimento temporal-espacial.