• Nenhum resultado encontrado

2. UMA DEFINIÇÃO DO TERMO “FICÇÃO CIENTÍFICA”

3.2 DE GERNSBECK AOS ANOS 60

3.2.2 A Golden Age

As opiniões dos teóricos sobre a época de produção de FC referida como Golden Age se divide entre aqueles que a consideram o período de 1938 a 1946 (Ex.: Clute e Nicholls, Bould e Vint), os que o estendem até 1960 (Ex.: Broderick, Roberts) e há quem a encontre apenas nos anos 50 (Ex.:Silverberg18). Entretanto, encontra-se consenso nos autores consultados na opinião de que a Golden Age começa entre 1938 e 1940, após John Campbell começar a editar a revista Astounding Stories em 1937 (Astounding Science Fiction, a partir de 1938), ajudando a remodelar a FC e sendo, portanto, uma denominação totalmente atrelada a um tipo de produção midiática, o das revistas. Foi na Golden Age que Campbell sentiu necessidade de separar a FC da fantasia, criando assim a revista Unknown (1939), com a

18

O artigo “Science Fiction in the Fifties: The Real Golden Age” aborda essa questão argumentando que nos anos 50 os autores estavam mais maduros e também puderam se sentir livres das constrições impostas por alguns editoriais de Campbell. Disponível em <http://www.loa.org/sciencefiction/why_silverberg.jsp>, acesso em 03 março 2014.

finalidade de dar um lugar específico à literatura de fantasia de qualidade (BOULD; VINT, 2011, p.76), pois a FC deveria mostrar o triunfo da Ciência e da tecnologia e o homem controlando seu habitat, ao contrário da fantasia que não necessariamente trazia o elemento tecnológico, o cientista ou o engenheiro no centro da história.

Sendo assim, a visão da Golden Age estendida até os anos 60 parece mais coerente, por considerar que as revistas Amazing Stories, Astounding Science Fiction, The Magazine of Fantasy and Science Fiction, Galaxy, Fantastic e If seguiram sua produção até essa época (embora esse número seja mínimo em face da grande quantidade de revistas que surgiram no início dos anos 50), e também por suceder esse paríodo com a chamada New Wave. Segundo Broderick, no início da New Wave, Alfred Bester (revisor de The Magazine of Fantasy and Science Fiction) percebeu, por exemplo, que a FC havia algum tempo seguia a uma linha infantil ou tecnocrática de ideias, utilizando a Ciência como solução para todos os problemas e construindo as regras da realidade arbitrariamente dentro das histórias (JAMES; MENDELSOHN, 2011, p.50).

Peter Nicholls considera nostálgica a atitude de ver o período desde Campbell até meados dos anos 40 como uma era dourada, pois isso significa deixar de lado uma produção literária em livros (inclusive publicados em outros países) que, em sua opinião, tinha excelente qualidade e pouco seguia as regras definidas por Campbell (CLUTE; NICHOLLS, 1993, p.506). No entanto – ou talvez por isso mesmo – Campbell foi quem descobriu alguns dos autores considerados grandes escritores da FC, como Isaac Asimov, Robet Heinlein, A. E. Van Vogt, Ray Bradbury e Arthur C. Clarke.

Asimov considera Campbell o pai da FC, quando escreve numa introdução à antologia que o homenageia:

ele exigia que os escritores de ficção científica entendessem a ciência e entendessem as pessoas, um requisito difícil que muitos dos autores estabelecidos nos anos 1930 não conseguiam atingir. Campbell não se comprometeu por isso: aqueles que não conseguiam atingir seus requisitos não conseguiam vender [suas histórias] para ele e o massacre foi tão grande quanto havia sido em Hollywood uma década antes, quando filmes mudos cederam espaço aos falados (ASIMOV, 1973, p. vii – xii)

Segundo Roberts, as ideias seguidas pelas histórias publicadas nas revistas da época foram formadas a partir da imagem do herói racional que oferece soluções científicas para os problemas propostos e luta contra inimigos que são possíveis em função da tecnologia; ou o ser humano que explora e coloniza o espaço, ideias que trabalham a extrapolação do uso da Ciência e seus impactos sociais (ROBERTS, 2005, p.195). Segundo Minyard, Campbell definia a FC “dizendo que ela deveria incluir uma situação que difere em alguns aspectos

tecnológicos do mundo presente e essa diferença deveria criar problemas. Esses problemas deveriam ser basicamente humanos e as situações não deveriam contradizer os princípios científicos.” (MINYARD, 1998, p.144)

É nos anos 1930 que os fãs (e, como “fãs”, também considero os escritores) passam a manifestar opiniões conservadoras e definindo a real SF, a partir das ideias e regras que moldam o que em 1957 foi cunhado como hard SF por P. Schuley Miller para se referir a histórias que se preocupam com a precisão das leis científicas extrapolando a Ciência como fundamento para a obra. (BOULD; VINT, 2011, p.85). Um exemplo de hard SF comumente lembrado é “Cold Equations” (de Tom Godwin, Astounding Science Fcition, agosto de 1954).

Em “Cold Equations”19, uma passageira clandestina é encontrada a bordo da nave dirigida pelo piloto Barton. A nave não pode carregar qualquer peso adicional ao peso programado para o piloto, sob pena de acabar o combustível e falhar a missão. A lei afirma que qualquer passageiro clandestino deve ser ejetado da nave, e “[n]ão era uma lei da escolha dos homens, mas tornada imperativa pelas circunstâncias da fronteira espacial.” Por isso, a decisão deveria ser tomada racional e friamente, como as “equações frias” do título da história.

Godwin dá ao funcionamento da nave atenção extensa e de maneira detalhada, explicando o porquê da regra acima:

Os cruzadores, movidos a conversores nucleares, não usavam o combustível líquido de foguete, mas conversores nucleares eram grandes e complexos demais para permitir sua instalação nas EDSs [Emergency Dispatch Ship]. Os cruzadores eram forçados pela necessidade carregar uma quantidade limitada de combustível bruto de foguete, e o combustível era racionado com cuidado, os computadores determinando a quantidade exata de combustível que cada EDS iria requerer para sua missão. Os computadores consideravam a coordenadas do curso, a massa da EDS, a massa do piloto e da carga; eram muito precisos e exatos e não omitiam nada de seus cálculos. Não podiam, entretanto, prever e permitir uma massa adicional de um passageiro clandestino.

Assim, o autor mostra um dos motivos pelos quais esse texto é considerado paradigmático quando se fala de hard SF. Ao fim da história, a passageira clandestina caminha por vontade própria para sua ejeção, salvando assim a missão do piloto Barton.

Esse clima de extrapolação científica invade as histórias de FC nas revistas também porque o contexto político e social favorecia esse tipo de produção. A World Fair de Nova Iorque em 1939, por exemplo, trazia o tema “The World of Tomorrow”20, com maquetes de uma cidade do futuro (para o ano de 2038), movida por energia hidrelétrica e conectada a

19

Domínio público, disponível em <http://www.spacewesterns.com/articles/105/>, acesso em 03 março 2014. 20 Fotos e artigo de Jon Snyder disponíveis em <http://www.wired.com/thisdayintech/2010/04/gallery-1939- worlds-fair/> Acesso em: 03 mar. de 2014

regiões rurais e agrícolas, além do famoso Futurama da General Motors que mostrava carros em alta velocidade com sensores de proximidade, em estradas que conectavam cidades utópicas, prometendo o transporte e a mobilidade perfeitos (BOULD; VINT, 2011, p.62). O consumo de tecnologia era a esperança oferecida à população pelas grandes empresas e pelo sistema democrático, essa era a ideia do movimento tecnocrático dos anos 30 assimilado por muitos autores de FC norte-americanos.21

A partir dos anos 40, a invasão tecnológica social é o que fornece chão para a FC pulp, tanto em histórias que a exaltam quanto em manifestações de novos medos surgidos a partir da guerra, embora eles tenham sido mais emergentes na FC dos anos 50 em diante, quando a paranoia gerada pela guerra fria e pelas possibilidades tecnológicas oferecidas pela energia nuclear aumentou a ansiedade geral na sociedade, especialmente entre consumidores de FC. Em 1942, Enrico Fermi realiza a fissão atômica; no mesmo ano a fita magnética de gravação é inventada; em 1945, ocorre o bombardeio atômico no Jãpão; em 1946, O ENIAC (Electronic Numerical Integrator and Computer), primeiro computador de uso geral, começa a funcionar na Universidade da Pensilvânia; e em 1949 a URSS testa sua primeira bomba atômica. Esses são alguns dos marcos histórico-tecnológicos dos anos 40. Sem esquecer que 1947 é a época em que surgem os primeiros relatos de discos voadores vistos nos EUA e, embora esse não seja um marco propriamente histórico ou tecnológico, é representativo do resultado gerado pelo medo e pela ansiedade relacionados ao progresso tecnológico que poderia (ainda hoje) permitir o contato com outros mundos e outras vidas no universo.

Por conta da proliferação de histórias, na Golden Age muitos assuntos são introduzidos na FC e outros modificados. É possível encontrar histórias que lidam com a questão do corpo e individualidade versus a tecnologia, em razão da ameaça nuclear, dos totalitarismos e da invasão doméstica dos aparelhos tecnológicos. O encontro com o alien ganha outra perspectiva a partir da obra de Arthur C. Clarke. A ficção apocalíptica é muito trabalhada, sendo apresentada, por exemplo, na obra A Canticle for Leibowitz (Walter Miller Jr., 1959), em que a humanidade, vivendo no mundo pós-guerra nuclear, acaba recaindo na ameaça de guerra e repetindo o ciclo de destruição; ou ainda em “The Chrysalids” (John Wyndham) que mostra mutantes perseguidos para serem erradicados do mundo pós-apocalíptico.

Nos anos 50, o consumo se torna alvo de críticas na literatura de autores como Philip K. Dick ; a ficção apocalíptica continua sendo explorada em razão de as novas possibilidades bélicas em geral associarem, no imaginário de alguns autores, a tecnologia com a destruição

21 As World Fairs já existiam desde 1851 (em Londres) e ainda hoje existem, sendo que a de 2014 ocorreu em Nova Iorque (celebrando, também, os 75 anos da cidade) e, em 2015, será sediada em Milão.

humana; e a cibernética surge para explicar o funcionamento de sistemas de comunicação e também sistemas de organização social. Em 1951 a TV em cores foi introduzida na sociedade; em 1953, o primeiro Hugo Award foi conferido ao romance The Demolished Man (Alfred Bester, Galaxy, 1952-1953); a URSS lança em 1957 a Sputnik II, tripulada pela cachorra Laika, primeiro ser vivo a orbitar o planeta Terra.

Esses são alguns dos marcos históricos a serem levados em consideração quando se observa a produção literária de FC da época.

É certo que a denominação Golden Age está atrelada à publicação das revistas: Silverberg ressalta que até os anos 40 essa forma de publicação era esmagadoramente superior em número ao mercado editorial de livros, uma das razões pelas quais ele considera os anos 50 como a verdadeira Golden Age, afinal, a partir dessa época as editoras começaram a fazer publicações estáveis, oferecendo aos escritores profissionais oportunidades além daquelas já encontradas nas revistas. O autor considera também o fato de que nos anos 40 a FC era quase exclusividade de Campbell, sendo ele, portanto, o crivo do aparecimento dos novos autores, que deviam adequar seu trabalho às suas exigências. Essa supremacia editorial foi desfeita nos anos 50, com o florescimento de novos autores que nos anos 40 ainda eram jovens demais para publicar histórias, embora já as lessem, e nos anos 50 começavam a se estabilizar como escritores profissionais. Silverberg aponta que

nos anos 40, Campbell era o único mercado para ficção científica séria; aqueles que não escreviam o tipo relativamente sofisticado de ficção científica que Campbell queria publicar, escreviam histórias de ação e aventura simples e mal pagas para seus competidores pulp de aparência berrante, revistas como Planet Stories, Super Science Stories e Startling Stories.22

Na produção de grandes nomes da FC, temos Asimov publicando de 1942 até 1949 as histórias da série Foundation (transformadas em livro em 1951). Ali, Asimov apresenta os psico-historiadores e desenvolve a psico-história, uma disciplina que avalia e considera a história em termos quase matemáticos, revelando assim que seu curso pode ser predito e calculado, uma história construída nas bases de “um romance de ideias, um romance que filosoficamente se engaja com questões de historiografia” com uma “estética de escala [...] mais sofisticada [...] do que nos escritos pulp dos anos 1920 e 1930” (ROBERTS, 2003, p.78- 79).

22

Na década de 40 Asimov formulou – com a ajuda de Campbell – e publicou nas revistas Super Science Stories e Astounding Science Fiction as histórias da série Eu, Robô (I, Robot), introduzindo as 3 leis da robótica, regulatórias do comportamento dos Robôs:

1ª Lei: Um robô não pode ferir um ser humano ou, por omissão, permitir que um ser humano sofra algum mal.

2ª Lei: Um robô deve obedecer as ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto nos casos em que tais ordens entrem em conflito com a Primeira Lei . 3ª Lei: Um robô deve proteger sua própria existência desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira e/ou a Segunda Lei. (2004, p.9)

Até hoje as leis são aplicadas (mesmo não explicitamente) a muitas histórias de robôs, sendo discutidas em seus aspectos éticos, funcionais e, também, humanos. Segundo o próprio Asimov, essas leis foram formuladas com o intuito de desconstruir o paradigma tecnófobo e dominante na FC que dizia “o homem cria o robô; o robô mata o homem” (ASIMOV et. al., 2010. p.12), ideia contra a qual o autor sempre se posicionou, pendendo para uma visão crítica do uso da tecnologia robótica.

Em “Robbie” (Super Science Stories, 1940), sua primeira história de robô publicada, Asimov mostra a devoção incondicional do robô à sua dona humana, demonstrando ser digno de confiança e mais competente para sua função do que um ser humano:

Um robô é muito mais digno de confiança que qualquer babá. O Robbie foi construído realmente com uma única finalidade – servir de companhia para uma menina. Toda “mentalidade” dele foi criada com esse objetivo. É inconcebível que não seja fiel, carinhoso e bonzinho. Como máquina, está programado para se comportar assim. Não se pode dizer o mesmo das criaturas humanas. (Ibid., p.89, ênfase no original)

Na história “The little lost robot” (Astounding, 1947), alerta para a primeira lei e sua função de proteção da humanidade da ação destrutiva das máquinas (BOULD; VINT, 2011, p.67), quando alguns robôs precisam ser construídos com a primeira lei modificada para trabalhar com humanos em contexto militar, já que os demais robôs impediam o trabalho dos seres humanos em atividades que colocavam sua vida em risco: “Quando um de nossos homens se expusesse, por um curto período, a um campo gama moderado, um campo que não teria efeitos fisiológicos, o robô mais próximo corria parar tirá-lo de lá.” (ASIMOV, 2004, p.175). Essa modificação na primeira lei possibilita a um robô mentir e atacar um ser humano, mostrando que a primeira lei dota as máquinas de submissão e oferece ao homem a segurança em relação à tecnologia.

Outro grande nome que surgiu e cresceu dos anos 40 em diante foi Robert Heinlein, conhecido por mostrar em suas histórias uma posição considerada extremamente política e defender a livre posse de armas e o crescimento militar. Em Starship Troopers (1959), “um

romance absolutamente apaixonado por todas as armadilhas da existência militar” (ROBERTS, 2005, p.202), praticamente todos os personagens são militares, numa guerra entre o planeta Terra e o planeta Klendathu com seus soldados “insetos”. Apesar disso, ele valorizava em suas narrativas a figura do engenheiro, especialista em uma área de conhecimento e a esperança do progresso através da tecnologia.

Em “The Green Hills of Earth”23 (Saturday Evening Post, 1947), Rhysling, um velho jetman (especialista no funcionamento das naves espaciais) que viaja de volta para a Terra, salva a nave à custa da própria morte, quando um problema ocorre e ele realiza os reparos necessários em uma área com muita radiação. A nave pode seguir seu caminho, mas Rhysling morre devido às queimaduras. Essa história é um exemplo da visão de que o conhecimento técnico pode salvar a vida humana em geral, mesmo fazendo com que uma delas se perca, altruisticamente. Já em “If this goes on” (Astounding, 1940), Heinlein mostra a visão tecnocrática de que a tecnologia organizará e salvará a humanidade, e trará o progresso social (BOULD; VINT, 2011, p. 65).

Em “Methuselah’s Children” (Astounding, 1941), uma família precisa fugir da Terra por sofrer perseguições, já que o resto da humanidade acredita que essa família descobriu o segredo da longevidade. Voltando, 75 anos mais tarde, descobre que a longevidade é comum na Terra, justamente porque devido à sua fuga e à crença de que eles possuíam tal segredo técnico, os cientistas na Terra passaram a desenvolver tratamentos que aumentam a expectativa de vida dos seres humanos. Heinlein mostra aqui novamente sua fé na Ciência e tecnologia para resolver situações tipicamente tomadas como problemas humanos.

É de Heinlein a famosa frase “the door dilated”, escrita logo no início de “Beyond this Horizon” (Astounding Science Fiction, 1942) e celebrada por autores como Gary Westfahl e Harlan Ellison como uma técnica que Heinlein e outros depois dele utilizaram para descrever os mecanismos tecnológicos das histórias sem precisar explicar ao leitor leigo como funcionava cada detalhe. É um método que evita explicações longas e prioriza a utilização da diferença dentro de uma obra de FC. De acordo com Rabkin, essa frase é considerada ideal pois “não desperdiçava palavras explicando mecanismos nem prendia o leitor em meras engenhocas; mesmo assim, a frase coloca o conto firmemente num futuro avançado tecnologicamente.” (RABKIN, 1983, p.316) A frase aparece quando Hamilton Felix entra em um escritório de economia: após colocar o código e esperar a checagem facial na porta, a porta dilata e uma voz o chama para entrar. Simplesmente não é explicado como a porta

23 Domínio público, disponível em <http://archive.org/stream/TheGreenHillsOfEarth/> acesso em 03 março 2014

dilata, mas a função é entendida e a palavra “dilatar” utilizada no lugar de “abrir” serve na frase como uma “mechanics of wonder” discutida por Gary Westfahl (1988).

Segundo Bould e Vint, Heinlein compartilhava da visão de Orwell a respeito do totalitarismo do estado, que controla as funções corporais (afetivas e mentais) do indivíduo. Orwell apresentou em 1984 (1949) a visão britânica sombria da invasão tecnológica, pois na Inglaterra, após a segunda guerra mundial, muitas das manifestações literárias na segunda metade dos anos 40 puxavam para o pessimismo. Na obra 1984, ele apresenta uma distopia em que o regime totalitário é extrapolado na figura tecnológica: o Big Brother. O slogan “Big Brother is Watching You” mostra a transformação do Estado em Deus, deixando claro não haver nada no romance que escape à visão, conhecimento e poder do Estado, formando a marca da presença totalitária na obra de Orwell. A problematização da tecnologia e seu impacto no social torna 1984 uma obra sombria e de tom depressivo, que pode ser considerada FC por sua visão distópica atrelada à dominação tecnológica.

O escritor A. E. Van Vogt era considerado de certa forma incoerente e descontínuo em sua escrita, porém foi um dos grandes nomes da Golden Age, muito apreciado também na Europa. O autor publicou entre 1942 e 1949 suas Weapon Shop Stories nas revistas Astounding e Thrilling Wonder, começando com o conto “The Weapon Shop”, em 1492. Com o slogan “the right to buy weapons is the right to be free” (o direito de comprar armas é o direito de ser livre), Van Vogt mostra o poder do indivíduo frente ao estado além de questionar e ironizar a utilização de armas, com armas sensíveis às intenções dos usuários e que atiram somente em legítima defesa (ROBERTS, 2005, p.205 e BOULD;VINT, 2011, p.64).

Ray Bradbury, em suas crônicas marcianas aponta a possibilidade de escapar da Terra, um lugar em que a guerra e a ameaça do apocalipse parecem rondar constantemente os habitantes. Esse escape conta com a tecnologia de maneira discreta: só é possível graças à sua utilização, porém a problematização desse uso não é central na obra. Assim como não é central em Fahrenheit 451, onde o conhecimento através dos livros é proibido. Também sobre o totalitarismo do Estado, essa obra apresenta um final mais leve que em 1984: enquanto em 1984 o protagonista é separado de sua amante se torna um ser desindividualizado através da tortura, em Fahrenheit 451 o protagonista descobre a desindividualização quando encontra uma sociedade onde o conhecimento é guardado na memória de seus habitantes que decoram textos de livros, mostrando que através da memória e do corpo é possível vencer a guerra:

não somos importantes, não somos nada. Algum dia a carga que estamos carregando irá ajudar alguém [...] e quando nos perguntarem o que estamos fazendo, poderemos responder: estamos nos lembrando. É aí que, no longo prazo, acabaremos vencendo. E algum dia a lembrança será tão intensa que construiremos a maior escavadeira da história e cavaremos o maior túmulo de todos os tempos e nele jogaremos e enterraremos a guerra. (BRADBURY, 2009, p. 230-231)

Já Philip K. Dick mostra uma visão pessimista do consumo em histórias como “Sales Pitch” (Future Science Fiction, 1954), em que o protagonista Ed Morris não consegue escapar da grande quantidade de publicidade invadindo sua vida. No dia de seu aniversario, Morris e a esposa recebem a visita de um Fasrad, um robô doméstico, oferecendo a si mesmo para venda. O robô, embora esteja fazendo propaganda dele próprio, avisa aos clientes que já é