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2. UMA DEFINIÇÃO DO TERMO “FICÇÃO CIENTÍFICA”

3.3 A NEW WAVE E A NOVA LITERATURA

Foi no início da década de 60 que a FC encontrou o que alguns críticos chamam de “exaustão do gênero”. Os temas de extrapolação científica, caros a autores e leitores, seguem sendo explorados em histórias de aventura e viagem espacial, como o medo da ameaça nuclear, a previsão apocalíptica, o futuro utópico ou distópico, o encontro com o outro na forma do alien e dos robôs, etc., porém outros modos de pensamento passam a fazer parte do corpo de publicações. Além disso, os periódicos não constituíam mais a principal forma de publicações e alguns autores começaram a publicar diretamente no formato livro, sem necessariamente passar pela fase pulp ou realizar os chamados fix-ups - reunião em livro das histórias anteriormente publicadas em revistas. E no início da década de 60 a FC começa a ser enxergada pela academia.26Alguns filmes importantes para a história e popularização da FC foram lançados nas décadas de 60 e 70, como a primeira versão da série Star Trek (1966) e, pouco depois, em 1968, 2001: uma odisseia no espaço. Nos anos 70, temos o primeiro filme de George Lucas, THX1138 e, mais tarde, o primeiro filme da série Star Wars, em 1977, mesmo ano de lançamento de Contatos Imediatos de 3º Grau. Em 1971, The Clockwork Orange, obra de Anthony Burguess, foi adaptada para o cinema com direção de Kubrick; e o primeiro filme da série Alien aparece em 1979, para citar apenas algumas das obras representativas mais conhecidas.

O período das décadas de 60 e 70, em geral, é conhecido como a NewWave da FC, um termo adaptado da Nouvelle Vague, movimento do cinema francês também dos anos 60. Esse foi um tempo de nova literatura, com abertura à participação de autores, temas e grupos sociais (considerados “minoria”, como negros, mulheres e gays) que até então não faziam uso

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Em estudos como The New Maps of Hell (Kingsley Amis, 1960), The Jewel-hinged Jaw (Samuel Delany, 1977), Science fiction: History, Science, Vision (Rabkin, 1977) até o já citado Metamorphoses of Science Fiction, no fim da década de 70, assim como em periódicos acadêmicos, como Foundation iniciado em 1972 e US Science Fiction Studies, em 1973. Brian Aldiss publicou em 1973 seu conhecido estudo Billion Year Spree, além disso, nas décadas de 60 e 70 foi reunido material para compor a conhecida Encyclopedia of Science Fiction, publicada em 1979 em sua primeira edição e Neil Barron publicou Anatomy of Wonder em 1976.

desse modo de pensamento ou, se faziam, era com uma participação minoritária e sem a solidariedade de um grupo. Nos EUA, movimentos como o feminismo, pelos direitos civis e igualdade racial e o ambientalismo encontram também na FC espaço para suas ideias. Mesmo assim, muitos dos autores já consagrados, como Heinlein, Arthur C. Clarke, Asimov, Poul Anderson, Philip K. Dick e Samuel Delany,continuaram a escrever e inclusive com maior produção (como Robert Silverberg, com cerca de 440 publicações nos anos 60 e 70, segundo seu website semioficial: www.majipoor.com), e também apresentando novas perspectivas em relação ao resto de sua obra (como Heinlein, com Stranger in a Strange Land de 1961, que acabou se tornando um texto cultuado tanto entre fãs de FC quanto dentro do movimento hippie)27.

Nova literatura que envolve também a metaficção, como apontado por Bould e Vint, mostrando que nessa época começa a ficar mais difícil separar a FC das demais literaturas, devido à mistura de temas e estilos literários dentro dela. Alguns exemplos de utilização desses novos métodos dados por Bould e Vint (2011, p.106) incluem a trilogia Nova Police, de William Burroughs (1961 – 1964), que usa de um método fragmentário para falar da paranoia social, do vício químico e do controle repressivo e Gravity’s Rainbow, de Thomas Pynchon (1973), uma fantasia histórica sobre os foguetes V2. Outras obras de Burroughs poderiam ser citadas como exemplo aqui, pois mesmo não sendo um autor de FC esse escritor foi um dos pioneiros da literatura experimental, justamente nas décadas de 50 e 60.

Os escritores dos anos 60 com idade inferior a 30 anos reagiram à escrita conservadora do período anterior, influenciados pelo movimento hippie e a agitação beatnik, incluindo em suas obras temas como a não-violência, a experimentação com drogas, o amor livre e os direitos civis. Porém nos anos 70 essa geração fazia 30 anos, a idade que, segundo seus princípios, não merecia confiança, e com isso passou a mostrar sua frustração a respeito das mudanças sociais esperadas e a perda de fé no futuro. A população em geral já vinha demonstrando ceticismo em relação à Ciência desde o fim dos anos 50, quando também foram acolhidos os valores americanos e o repúdio ao inimigo do capitalismo, o comunismo.

Por expandir seu alcance além do horizonte dos fãs, a FC ganha uma nova popularidade que, segundo Rabkin, se deve, entre outras coisas, a uma crença compartilhada, iniciada no pós-guerra: de que a tecnologia pode tanto resolver os problemas da humanidade

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Por uma questão de espaço e foco, aponto neste capítulo apenas alguns autores, selecionados não por serem necessariamente mais importantes ou com maior número de produção, mas tomados como representativos da época principalmente nas antologias e estudos históricos da FC consultados e referidos na bibliografia. Essa seleção é feita com a finalidade de atentar para a importância histórica, para que posteriormente o corpus do trabalho possa também ser colocado em perspectiva.

quanto destruí-la de vez (1983, p.427). O autor aponta também o crescimento do individualismo, possibilitado pelo capitalismo e pela tecnologia, com os medos comuns trazidos para dentro do lar através do aparelho de TV, ressaltando que se, por um lado, nos tornamos mais comunicáveis, por outro, ficamos mais isolados em função dessa melhora na comunicação:

nosso medo comum da morte nuclear instantânea, nossa sujeição comum ao perigo ambiental, nossa participação comum na revolução da informação [...] todos nós, em algum sentido, saímos para a guerra ou trazemos a guerra para dentro de casa, todas as noites, começando em cerca de 1965 [...] nós todos pousamos na lua em 1969.(RABKIN, 1983, p.427)

A exploração espacial continua nos anos 60 e 70, com Yuri Gagarin sendo o primeiro homem a ir ao espaço.28 A Biologia também fez seus avanços: em 1967, cientistas norte- americanos produziram DNA artificial e em 1969 pela primeira vez um coração humano artificial foi usado. Foi em 1977 que cientistas britânicos determinam pela primeira vez a estrutura genética completa de um organismo vivo e em 1978 o primeiro bebê de proveta nasceu, também na Inglaterra.

O microprocessador foi inventado em 1971 para dar conta da necessidade de equipamentos cada vez menores para a viagem espacial (MINYARD, 1998, p.322): as máquinas invisíveis começavam a afetar quase todos os aspectos da vida cotidiana, desde a medicina até o entretenimento. A partir de então, o uso dos computadores passa a fazer parte dos temas da FC, substituindo os tubos a vácuo e todos os aparatos que enfatizavam seu tamanho exagerado, agora não mais central nas histórias, que começam a se preocupar também com a inteligência artificial.

As revistas pulp seguiram suas publicações durante a New Wave, a revista Astounding passou a se chamar Analog e continuou a publicar Hard SF, ainda editada por Campbell até sua morte em 1971. A revista britânica New Worlds foi conhecida como lugar de “páginas enfadonhas e veneráveis” (JAMES; MENDELSOHN, 2011, p.53), onde diferentes vertentes da FC e da fantasia eram expressas, e aceitando histórias como “The Streets of Askhelon” de Harry Harrison, que demorou alguns anos para conseguir publicação, provavelmente por seu teor antiteológico. New Worlds publicou nessa época tanto autores tradicionais como Arthur C. Clarke, Brian Aldiss e John Bruner, quanto inovadores como J. G. Ballard, exemplificando

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E a primeira mulher em 1963, Valentina Tereshova; além disso, as aeronaves do programa Apollo também participam dessa corrida e, em 1969, três homens pousam na lua em um módulo da Apolo 11 (Neil Armstrong, Edwin Aldrin e Michael Collins).

a mistura de escolas e estilos literários que ocorria na FC. A revista começou em 1936 e persiste até hoje29.

Alguns temas começaram a surgir entre as discussões e preocupações sociais, como as ameaças representadas pela poluição ambiental e pela superpopulação, por exemplo, impulsionadas pela força do movimento ambientalista (a WWF surgiu nos anos 60 e o Greenpeace, nos anos 70). Uma obra muito famosa do fim dos anos 60, The Population Bomb, de Paul Ehrlich (1968) trata do problema da fome num mundo superpopuloso, ressaltando a importância do cuidado com esse aspecto social. No prólogo da edição de 1975, Ehrlich pontua:

O controle populacional é a regulação consciente do número de seres humanos para atender as necessidades não somente de famílias individuais, mas da sociedade como um todo [...] Estamos hoje envolvidos em eventos que levam à fome e à catástrofe natural; amanhã poderemos ser destruídos por eles [...] (EHRLICH, 1975, p. xi-xii)

A antologia Ruins of Earth, organizada por Thomas Disch (1971), traz histórias de diversos autores, entre eles, Philip K. Dick , Kurt Vonnegut Jr., Harry Harrison e J. G. Ballard, pontuando os problemas trazidos pelo progresso científico e tecnológico, como a superpopulação, industrialização e urbanização. A publicação é comentada até os dias atuais por trazer histórias de tom sombrio a respeito dos caminhos tomados pela humanidade. Ao contrário, em Ecotopia (1975), Ernest Callenbach oferece uma visão otimista do uso da tecnologia, numa profecia da solução dos problemas da humanidade através da criação de um ecossistema estável sem poluição, sem crescimento urbano e com a sacralização das árvores.

Outra famosa história sobre a superpopulação foi escrita por Harry Harrison em 1966, intitulada Make Room! Make Room!. Durante uma conversa entre Sol, um engenheiro aposentado, e Shirl, uma concubina, surge a pergunta sobre porque existe tanta gente nos EUA e porque muitos deles não partem para outros países, já que a água ali é escassa. “O que todas essas pessoas estão fazendo aqui e por que não vão para outro lugar se não há água suficiente?”30 (HARRISON, 1973, p.96) Sol explica a situação de alguns países, tratando-se de quantidade de habitantes e sua alimentação:

Ou você prefere ir para a Rússia talvez? Ou a China? Eles estão tendo uma Guerra de fronteiras há 15 anos que é uma maneira de manter a população baixa [...] A Dinamarca talvez. A vida é ótima lá, se você conseguir entrar, ao menos eles comem regularmente, mas têm uma parede de concreto atravessando a Jutlândia e guardas na praia que atiram à primeira vista [...] (Ibid., p.96)

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A revista tem seu website constantemente atualizado em <http://www.newworlds.co.uk/>

30Disponível em <http://0-media-cdn.foolz.us/ffuuka/board/tg/image/1366/55/1366556582392.pdf>, acesso em 03 março 2014.

A obra de Harrison é estabelecida em 1999 (terminando com o réveillon do ano 2000), e mostra uma visão da progressão do crescimento populacional baseada nos dados da época do crescimento em quantidade de habitantes, indústrias e lixo de cidades como Tóquio, Nova Iorque e Calcutá, por exemplo, citadas na introdução da edição original, que foi escrita por Ehrlich.

O feminismo, como movimento cultural, encontra nas artes em geral possibilidade de manifestação, tendo achado espaço na FC durante a Golden Age, com autoras como Ursula K. Le Guin, Juanna Russ, Marge Piercy, Alice Sheldon, Carol Emshwiller, Judith Merril e C.L. Moore. Até então, as mulheres participavam da produção de FC literária, porém sem demonstrar solidariedade de gênero ou preocupação com as causas feministas, essas posturas aparecem no pós-guerra dos países europeus e nos EUA. As antologias de Pamela Sargent são conhecidas por colocarem em evidência as mulheres que contribuíram para a FC desde a época até os anos 90, especialmente Women of Wonder (1975), More Women of Wonder (1976), The New Women of Wonder (1978).

Umas obras mais conhecidas desse contexto é The Female Man (1975), onde Joanna Russ desenvolve quatro versões do que poderia ser a mesma mulher, morando em quatro universos ficcionais diferentes. Janet vive no planeta Whileaway, habitado somente por mulheres; Jeaninne é uma bibliotecária que, num mundo de 1969 em que a Grande Depressão nunca acabou, está dividida entre ceder à pressão social para o casamento e a certeza de que isso não trará felicidade; o mundo de Jael vive numa constante guerra entre homens e mulheres; e finalmente Joanna habita um mundo muito similar ao planeta terra nos anos 70.

Com a utilização de toda a carga do termo “humanidade” que, em inglês é expresso na palavra “mankind” (formada por “man” - “homem” e “kind” - “tipo”) Joanna demonstra a razão do título e como é possível que exista um “homem feminino” na sua história:

O homem, se supõe, é a própria medida da humanidade. Anos atrás fomos todos homens das cavernas. Então há o homem de Java e o futuro do homem e os valores do homem ocidental e o homem existencial e o homem econômico e o homem freudiano e o homem na lua e o homem moderno e o homem do século XVIII [...] existe a humanidade [...] Se somos todos humanidade [mankind], consequentemente para mim [...] eu também sou um homem e de jeito nenhum uma mulher, pois honestamente quem já ouviu falar da mulher de Java e da mulher existencial e dos valores da mulher ocidental e da mulher científica e da mulher alienada do século XIX. (RUSS, 1975, p.101)

Assim, Russ mostra o jogo de poder por trás de uma Ciência pretensamente neutra, mas que nas entrelinhas aponta seu foco de estudo para a metade da espécie humana, deixando a outra metade como secundária e numa análise extrema relegando-a como marginal ou inumana.

Ursula K. Le Guin publicou em The Left Hand of Darkness (1969) a história de um planeta chamado Winter, planeta em que jamais houve uma guerra sequer e onde os habitantes não têm gênero definido, mas podem trocá-lo de acordo com a circunstância. Já em The Dispossessed (1974), o foco é a oposição entre Anarres, a lua de regime anarquista, e Urres, o planeta de regime capitalista, em analogia aos EUA e à União Soviética. Os habitantes de Urres insatisfeitos com o regime político do planeta têm o direito de morar em Anarres com a condição de não interferir nesse planeta e a história contada na obra é a de um cientista que tenta realizar o diálogo entre os dois mundos em função de passar os obstáculos encontrados na elaboração de sua teoria sobre o tempo. Além disso, a autora também se engajou no tema colonialista, como na obra The Word for World is Forest (1976), em que os humanos invadem o planeta Athshe desmatando florestas, escravizando os nativos e estuprando suas mulheres, mostrando uma humanidade futura ainda presa aos preconceitos de gênero e raça e despreocupada com questões ambientais, valorizando o poder e o capital.

Além da entrada de movimentos sociais no espectro da FC, alguns autores marcaram suas carreiras e a história literária com obras importantes nessa época. É o caso de Frank Herbert, com a obra Dune (Analog, 1963 – 1965), que traz um futuro de 10190 anos em que o universo está amplamente colonizado pelos humanos, com cenário principal no planeta desértico Arrakis. A saga traz a droga melange, que possibilita o aumento da consciência, do tempo de vida e da saúde e, por ser muito rara - encontrada somente em Arrakis -, acaba também se tornando moeda de troca. A obra teve 5 sequências escritas por Frank Herbert e mais 9 escritas por seu filho, Brian Herbert. É algumas vezes comparada a Star Wars ou The Lord of The Rings (ROBERTS, 2003, p.40) em razão da maneira como contextualiza uma saga num ambiente espacial próprio, mesmo sendo uma space opera não convencional. Assim, se tornou uma obra muito importante na FC desde a New Wave até os dias atuais, tanto por sua longevidade quando pela maneira como incluiu aspectos religiosos e filosóficos.

Na Inglaterra, Anthony Burguess lidava com a construção da linguagem ao escrever The Clockwork Orange, em 1962. Para Burguess, o cenário futurista era repleto de violência e crime, onde a punição deve ser pior do que o erro, e criado em cima de palavras que constroem a “Nadsat”, a gíria com a qual se comunicam os personagens. São palavras derivadas do russo e que ocupam um glossário final de 6 páginas da edição brasileira, disponíveis também online31, estritamente necessárias para o entendimento geral da história.

31 Organizado por Scott McDonald et. al. disponível em <http://visual-memory.co.uk/amk/doc/nadsat.html>, acesso em 03 março 2014.

O anti-herói Alex e sua gangue vivem um cotidiano de atividades que envolvem o uso de entorpecentes, seguido de brigas e assaltos, até o momento de sua prisão. Ali, Alex é sujeito a um tratamento que o condiciona a passar mal fisicamente quando exposto a uma situação de violência e que, após sua saída da prisão, faz aos poucos com que se encaixe aos padrões sociais.

J G Ballard, também na Inglaterra, foi um dos principais expoentes da New Wave (RABKIN, 1983, p.267), escrevendo obras que exploravam as Ciências sociais e psicológicas. No começo de sua carreira escreveu 3 romances de catástrofe: The Drowned World (1962), The Burning World (1964) e The Crystal World (1966), cada um deles com um contexto diferente de mundo modificado. Já em The Atrocity Exibition (1970) é encontrada uma série de histórias previamente publicadas em revistas, que trabalham o espaço interno de um médico que sofre um colapso mental. A coleção traz em seus títulos nomes como Ronald Reagan, Jackeline Kennedy e Marilyn Monroe, associados a sexo e morte, além de outras histórias que misturam paisagens internas e externas, muitas vezes de difícil separação.

Philip K. Dick também foi um autor que explorou a manipulação da realidade, mostrando sua dependência da percepção, que pode ser facilmente alterada (ROBERTS, 2005, p.240), além de denunciar o estrago feito pelas grandes corporações e governos autoritários. Durante a New Wave, publicou romances importantes de sua carreira como Ubik (1966), que mostra o que acontece quando a tecnologia regride ao invés de progredir, com aparelhos que voltam ao seu estágio anterior e personagens que se sentem deslocados nesse cenário; ou Do Androids Dream of Electric Sheep? (1968), uma crítica à desumanização realizada pela tecnologia robótica, pelos meios de comunicação e pela mídia, e que mostra o caçador de androides, Rick Deckard, envolto numa busca que o faz encontrar tanto androides humanizados quanto humanos desumanizados.

Antes desse período, o corpo era pouco discutido na FC, pois o foco era mais voltado para as viagens e aventura espaciais, a guerra e o apocalipse. Com exceção dos robôs e do alien, os temas diziam pouco respeito à individualidade, embora o encontro com o alien fosse uma representação da alteridade presente em todos os temas. Na época da New Wave, contudo, Bould e Vint apontam que “a FC também começa a imaginar um futuro em que se pode alterar o corpo à vontade, desprendendo assim a subjetividade da corporificação” (BOULD; VINT, 2011, p.138). Isso ocorre porque algumas minorias passavam a se manifestar, principalmente o feminismo problematizando a noção do gênero, mas também porque, com a produção de DNA artificial, o uso de órgãos artificiais, a produção em

laboratório da vida humana, ocorre a percepção de que a tecnologia humana estava ficando cada vez menor em tamanho e maior em alcance, abrangência e potência de transformação, além de mostrar sua invisibilidade, e o corpo passava a se mostrar passível de uma intervenção mais profunda do que aquela mostrada em histórias como a pioneira Frankenstein. Nesse contexto, também, a FC começa a demonstrar mais evidentemente sua simpatia pelas ideias cartesianas de separação do corpo e mente, com a intervenção tecnológica funcionando como gatilho para efetivar essa transformação, num prelúdio do que seria, pouco mais tarde, o cyberpunk.

James Tiptree, Jr (pseudônimo de Alice Sheldon) coloca essa questão em “The Girl Who Was Plugged in” (1974), uma história considerada pré-cyberpunk. Após tentar suicídio, P. Burke é socorrida e contratada por uma empresa para controlar remotamente o corpo de Delphi, cultivado a partir de embriões modificados em um decantador placentário e posteriormente dotado de implantes controladores. P. Burke está conectada a Delphi, controla seus movimentos, sente suas sensações, está fora de seu próprio corpo. E, contudo, ainda não o deixou. A explicação da narradora consiste em determinar o local onde as sensações do corpo ocorrem: para ela, o cérebro. Ou seja, P. Burke está ligada a Delphi através de conexões remotas, mas está tão próxima a ela a ponto de negar ser qualquer coisa ou pessoa além de Delphi.

Como esperado, acontece um contratempo e Delphi/P. Burke se apaixona por um ser humano comum (Paul), não controlado remotamente, e começam os problemas de aceitação, pois há o temor de que um ser humano sem “componentes metálicos” – e que faz parte de um movimento contra o uso de robôs – seja incapaz de amar um ciborgue. P. Burke está de tal maneira dentro de Delphi que acaba por esquecer suas próprias condições de sobrevivência, deixa de comer, dormir e se movimentar, criando inclusive pústulas na pele. Pouco a pouco,