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2. UMA DEFINIÇÃO DO TERMO “FICÇÃO CIENTÍFICA”

2.3 O ALIEN, AS VIAGENS E OS ROBÔS

referida acima, quando ele afirma o caráter especulativo do modo FC. Se um autor precisa mostrar como é/seria possível a existência ou veracidade do elemento de especulação imprescindível para o bom funcionamento da obra, Huxley descreve, por exemplo, esses condicionamentos dos embriões ao calor e à posição invertida, que consistem em ligar o sofrimento do corpo ao frio por choques térmicos e à posição normal pelo corte da circulação de pseudossangue, partes do chamado Processo Bokanovsky. O processo Bokanovsky realiza a explicação do elemento especulativo possível na obra, que no primeiro capítulo é detalhado para que o leitor possa adentrá-la inteirado do funcionamento de sua lógica interna.

Visto que a própria Ciência baseia seu discurso em hipóteses e teorias continuamente testadas e recorrentemente derrubadas e que o modo FC deve utilizar-se desse discurso viabilizando-o dentro da obra, é pela via da possibilidade e não da “verdade” que ele entra no espaço literário. Schmidt pontua essa questão quando revela um de seus critérios para escolher as publicações da revista Analog: “Acontece ocasionalmente que uma história tem uma boa ideia, mas parece mais a leitura de um tratado científico do que uma história.”13 Sendo assim, o editor rejeita as histórias em que o autor se preocupa com a veracidade dos processos utilizados na obra, afinal de contas, embora não desapareça, quando encontrado num texto praticamente científico, o estranhamento perde a potência que deve ter na FC.

Visto dessa forma, o estranhamento se torna a desterritorialização que aumenta o território no mundo literário e estende-o até que cubra também o mundo não-literário (DELEUZE; GUATTARI, 2004, p.20). A literatura é criadora de linhas de fuga, das quais faz parte o novum, estabelecendo pontes que se sustentam entre estes dois mundos eliminando o abismo entre eles. Através dessas linhas de fuga percebemos que tal abismo nunca existiu realmente, ao menos não com a função de separação; através da desterritorialização e reterritorialização do estranhamento e da cognição (e essa correspondência não é necessariamente de um para um, mas pode e deve ser misturada para que as linhas de fuga atuem), é possível que um texto de FC, seja ele literário ou não, desenvolva a nova perspectiva de que fala Roberts (2003, p.16) e que se refere à maneira de olhar e construir o humano através das visões de suas possibilidades.

2.3 O ALIEN, AS VIAGENS E OS ROBÔS 13

A definição da FC como modo de produção estético de cunho explicativo e que se utiliza do discurso factível, realista ou pseudorracional para explicar aquilo que de outro modo seria visto como fantasia serve como base para separá-la de outras produções encontradas no mesmo campo. É importante atentar também para o conteúdo desse modo de fazer, que não necessariamente o diferencia de outras produções, por não ser sua exclusividade, tampouco a ele condiciona sua existência, porém com o passar do tempo tornou-se característico da FC. De maneira geral, é possível perceber que muitos autores apontam dois grandes temas dentro da FC: (a) a viagem e (b) o encontro com o outro. Esses temas podem ainda ser subdivididos em (a1) a viagem espacial, (a2) a viagem no tempo (a3) a viagem interior, (b1) o alien e (b2) os robôs.

Para Roberts, a viagem extraordinária é o tema principal da FC desde seus primórdios (herdando essa temática, também, das histórias de viagens medievais, segundo o mesmo autor), podendo ser dividida em “viagem pelo espaço” e “viagem pelo tempo” (ROBERTS, 2005, viii). A viagem no espaço na FC é geralmente realizada através do universo, com a descoberta e colonização de corpos celestes. É a forma historicamente mais (re)conhecida e popular da FC, encontrada desde Edgar Allan Poe (The Unparalleled Adventures ofone Hans Pfaal, 1835), passando por autores como E. E. Doc Smith (desde 1946), A. E. Van Vogt (desde 1943), Samuel Delany (desde 1968), assim como Asimov, Clarke e Heinlein, entre centenas de outros, povoando e ajudando a formar toda a história da FC até autores contemporâneos como Greg Egan, Ken McLeod, Ian MacDonald, numa imensa lista de um ramo da FC que dispensa exemplos neste momento.

Já dois exemplos clássicos de viagem pelo tempo são The Time Machine (H.G. Wells, 1895) e Looking Backward ‘2000-1887’ (Edward Belamy, 1888). No primeiro deles, o protagonista viaja no tempo para um futuro remoto em que a humanidade se transformou completamente e se dividiu em duas espécies totalmente diferentes: os Eloi – seres evoluídos e frágeis, que vivem na luz e na superfície do planeta; e os Morlock, seres aracnoides e predadores, que vivem nas profundezas do subsolo e saem durante a noite para caçar suas presas, os Eloi. O mesmo protagonista continua sua viagem no tempo para uma era em que o humano deixou de existir, mostrando assim a solidão do destino de um planeta habitado por um grupo de crustáceos e um eterno sol vermelho.

Em Looking Backward ‘2000-1887’, Edward Belamy conta a história de um jovem que após cair em sono profundo acorda 113 anos mais tarde no mesmo lugar onde adormeceu

e descobre os EUA transformados em um país socialista, vivendo uma realidade utópica de igualdade social. Entretanto, apesar de sua viagem ao futuro ser revelada no fim das contas apenas um sonho, assustando o protagonista que por causa disso deveria acordar e voltar à realidade desigual e degradada de 1887, outra virada acontece quando é revelado que a verdadeira viagem teve como destino real o fim do século XIX e o viajante pode despertar tranquilo no ano 2000, seu efetivo presente. Até hoje a obra é usada como referência para falar das utopias socialistas, tendo inspirado outras na mesma linha e criado uma espécie de escola após sua primeira publicação (Ibid., p.120)

A viagem pelo tempo encobre também as histórias alternadas/alternativas, ou de universo alternado, que mostram o presente do autor, porém como resultado de uma diferença no curso da história conhecida. Um exemplo é The Man in the High Castle (1962), de Philip K. Dick, onde a Alemanha e o império japonês venceram a guerra, a escravidão continua e o mundo é completamente dominado pelos países vencedores. Nesse caso, como na viagem pelo tempo em geral, Dick realiza a desestabilização da estratificação mnemônica dos fatos no leitor através da “atenção cética da história como construção narrativa.” (SEED, 2011, p.112)

As viagens dentro da FC servem como veículo de distanciamento tanto para o leitor como para o autor. Este último consegue enxergar e relativizar sua realidade temporal e espacial, dando lugar ao surgimento do novum, ferramenta utilizada para provocar o mesmo distanciamento no leitor. É possível, através de uma viagem no espaço ou no tempo, perceber o caráter discursivo do eixo político-histórico-social vivenciado no presente e possíveis caminhos a serem seguidos a partir dessa tomada de consciência. Por isso, muitas vezes as viagens tornam-se interiores, nas quais o personagem (e o leitor) realiza uma visita a seu espaço interior, através dessa leitura. O tema denominado como “espaço interior” (Inner Space) foi um termo corrente durante a New Wave, em contraste com o conhecido “espaço exterior” (Outer Space) que se referia às explorações do universo fora do planeta Terra (CLUTE; NICHOLLS, 1993, p.866).

J.G. Ballard é um dos autores que explora o espaço interior através dos diálogos com a psicanálise e o surrealismo. Em Cocaine Nights (1996), ele apresenta um narrador que busca seu irmão preso em Estrella De Mar, uma cidade tecnologicamente avançada que oprime e torna letárgicos seus habitantes, mostrando uma sociedade que, por um lado tem acesso ao progresso e, por outro, não se beneficia dele. A busca pelo irmão, o encontro com a violência e criminalidade na cidade, as reflexões a respeito da culpa, das proibições sociais e da ambiguidade da moralidade, realiza um diálogo direto com o tema da repressão elaborado por Freud em O Mal-estar na Civilização (FRANCIS, 2001, p.159). Quando Ballard escreve seu

manifesto “Which Way to Inner Space?” em 1962, afirma que o verdadeiro espaço a ser conquistado está aqui mesmo, na Terra, o espaço interior (TATSUMI, 2005, p.334) e, assim, sua obra é muitas vezes analisada sob esse prisma. Embora a viagem interior não seja um tema exclusivo da FC, é possível identificá-la muitas vezes presente como resultado de seus deslocamentos.

O segundo grande tema identificado no modo FC, o encontro com o outro, pode se dar de diversos modos. Os outros mais conhecidos são o alien e o robô (personificado de alguma maneira) e são objetos úteis para a realização da literatura da diferença, principalmente por realçarem o aspecto subjetivo da realidade do Eu numa perspectiva relacional. O alien, segundo Seed, pode tomar três formas distintas: “pode se referir a seres surpreendentemente diferentes, algumas vezes de outros planetas; pode se referir a um estranhamento social [...] ou ainda pode se referir a uma qualidade da própria narrativa” (Ibid., p.27). Por ser um elemento da diferença, o alien como ser diferente é construído com base na referência do Eu e, portanto, as formas tomadas por ele são em sua maioria facilmente reconhecíveis no universo desse Eu, mesmo quando não humanoides, como o oceano inteligente em Solaris (Stanislaw Lem, 1961), ou ainda o planeta vivo em Natural History (Justina Robson, 2005), ou a bactéria fatal em The Andromeda Strain (Michael Crichton, 1969).

Sendo assim, os seres de outros planetas são ora temíveis e assustadores quando mostram a pior face do ser humano, como os marcianos em The War of the Worlds (H.G.Wells, 1898) que chegam para destruir impiedosamente a Terra causando terror e devastação, ora superiores em inteligência e mais evoluídos, como a criatura com corpo redondo e um pescoço comprido em A Martian Odissey (Stanley Weinbaum, 1934), que não pode ser classificada como nada conhecido na Terra, mas consegue realizar cálculos matemáticos e aprender a língua inglesa. Os referenciais acumulados constroem esse outro, pois, do contrário, ele seria irreconhecível. A vida inteligente fora da Terra, buscada pelos físicos e astrônomos, ainda não se revelou dentro desses padrões, porém talvez já o tenha feito fora da lógica da diferença, tendo sido assim indetectável.

Cabe aqui lembrar uma famosa anedota da história da comunicação, quando em 1938, na véspera do dia em que se comemora o Halloween, Orson Welles fez através de uma emissora de rádio uma adaptação da obra de H.G. Wells, lendo ao vivo algumas partes da narrativa, deixando em pânico (exagerado pela descrição midiática) a população norte- americana. Talvez essa história tenha menos relação com a presença e figura do alien no imaginário social do que com os demais medos provocados pelo avanço tecnológico- científico em ascensão na época. Contudo, é importante perceber o quando um expectador

tem a capacidade de se desestabilizar diante da figura do outro, pois o terror provocado por ele ou sua posição na linha evolutiva estão sempre em diálogo com o presente do humano, sua força física ou inteligência, sua forma e sua zona de conforto.

Coloco os robôs dentro do grande tema do encontro com o outro porque são capazes de significar o domínio da produção técnica apresentada no formato humano, tocando esse humano em seu íntimo sem que – somente à primeira vista – ele seja ferido em seu íntimo. A palavra “robot” vem da peça R.U.R – Rossum’s Universal Robots – do escritor tcheco Karel Čapek, onde seres artificiais são criados para realizar trabalho físico, sujeitos ao sentimento de cansaço e outras emoções humanas, revelando-se destrutivos quando conseguem aniquilar a raça humana, no epílogo da peça. Porém, um robô como Robbie, de Asimov, servil e fiel, mostra que o ser humano pode depender da tecnologia e nela confiar inclusive seu valor considerado mais precioso, a vida. É também Asimov que prevê o risco da confiança na tecnologia por sua capacidade de superação humana em termos de força e inteligência, quando em 1942 publica as já mencionadas três leis da robótica definidas para proteger a humanidade da ação maléfica desse outro que se aproxima tanto do Eu a ponto de desejar ferir seu semelhante.

3 PERCURSO ENTRE HISTÓRIAS

Antes de oferecer o olhar aproximado das obras determinadas para análise, é relevante encontra-las na linha to tempo. Por serem obras publicadas a partir dos anos 90, período considerado pós-cyberpunk, dedico algumas páginas a relatar brevemente, apoiada em historiadores da FC, seus períodos históricos desde o início do século XIX, apesar de muitos autores considerarem o início do modo FC, como prática, antes. Adam Roberts e Brian Stableford, por exemplo, encontram precursores das obras de FC nos séculos XVII e XVIII, nas histórias de viagens extraordinárias ou as viagens imaginárias de autores como Francis Bacon (1627), Tommaso Campanella (1623), Jonathan Swift (1726), Francis Godwin (1638), John Wilkin (1638), Voltaire (1752), entre outros, embora essas histórias apelassem mais para a fantasia e o sonho do que para as explicações possíveis de que fala Schmidt. Darko Suvin fala da Utopia de Thomas Morus (1516), mesmo não tratando Utopia e FC como necessariamente conectadas ou interdependentes.

Optei pela divisão histórica que segue por me dedicar a um trabalho focado na FC contemporânea, pensando que o período de maior relevância para pensar esse assunto acontece partir do trabalho de Mary Shelley, Frankenstein (1818) e não por desacreditar na existência do modo FC em períodos anteriores. Como já pontuado, o termo “ficção científica” surgiu em 1926, um século após a obra de Shelley, contudo, aquilo que se pensa como FC a partir dessa denominação de Gernsbeck, com muitas das definições e condicionamentos dados desde então, pode ser aplicado à história do Dr. Frankenstein e a inúmeras outras obras publicadas antes disso. Algumas décadas mais tarde, nasceram Julio Verne e H.G. Wells, importantes autores que ajudaram a definir muito do que se escreveu depois, principalmente por terem dedicado a maior parte de sua obra à ficção especulativa, cada um a seu modo.

Na necessidade de definir um ponto inicial para a históia, proponho partir da obra de Shelley, seguindo para Verne e H.G. Wells e, a partir de então, entrar no século XX até o presente. Utilizo a divisão histórica de Adam Roberts (2005) e Edward James e Farah Mendelsohn (2011), por encontrar nela os períodos seccionados a critério dos movimentos em cada época, ao contrário de autores que preferem dispor a linha temporal dividida por décadas. E, por fim, o objetivo de apresentar um panorama breve da história da FC até o presente está em relatar alguns dos principais temas e autores que construíram esse modo de pensamento, dando base para a reflexão sobre o que acontece hoje nessa área das artes, especialmente a literatura.