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2. UMA DEFINIÇÃO DO TERMO “FICÇÃO CIENTÍFICA”

2.2 A MÁQUINA LITERÁRIA

O elemento experimental “what if...?”, que tenho chamado aqui de novum, apoiada em Suvin, aposta na especulação dentro desse modo de fazer, expressando toda a gama de possibilidades que uma obra de arte é capaz fecundar, engendrar, problematizar. Assim como o rizoma de Deleuze e Guattari, que aponta para o livro como uma multiplicidade e multiplicável exponencialmente, “o Uno que se torna dois” (DELEUZE; GUATTARI, 2004, p.13), agenciamento de territorializações e desterritorializações. A FC é o espaço onde a exploração dessas possibilidades na criação de ideias fractais é múltipla; o questionamento do humano tem seu lugar privilegiado e as perguntas ressaltadas com a leitura de cada obra – seja ela literária, cinematográfica, visual – parecem ser “o que é o humano?” e “quais os limites da tecnologia?”

Questões postas não com o intuito de serem resolvidas ou respondidas, mas de funcionar como nódulo problematizador ou gatilho para outras questões ainda, como “onde o humano se une à tecnologia?”, “onde o humano pode se separar da tecnologia?”, que no extremo são a mesma. Além disso, para Deleuze e Guattari, o livro (e quando falo do livro tenho em mente não o livro físico como objeto ou obra literária, mas tudo aquilo que ofereça uma leitura e uma escrita; aquilo que posso chamar de “livros possíveis”) é rizoma e, portanto, agenciamento (Ibid., p.13). E agenciamento remete a máquina, pois ele funciona em um conjunto de partes colaborativas. Um agenciamento funciona na conexão criativa de suas partes, e na conexão com outros agenciamentos, que por sua vez funcionam na conexão criativa de suas partes e assim por diante.

Uma máquina precisa ligar-se a outra(s) máquina(s) para entrar em funcionamento. São máquinas compostas por linhas que não param de se cruzar e remeter umas às outras, constantemente criando novas linhas, num movimento fractal contínuo que pode ter início e fim, porém esse início ou fim se dá no corte e não na genealogia. As ideias de rizoma e de máquina estão intimamente ligadas. O livro e o Mundo Zero compõem rizoma quando são máquinas interconectadas, que necessitam uma da outra para funcionar. A noção fundamental aqui é de que a máquina-livro não opera a imitação do mundo, nem sua reprodução. A ideia de que arte (os livros possíveis) é vida e funciona junto com ela, inseparavelmente, depende da operação de uma desterritorialização e a reterritorizlização da vida dentro do rizoma livro- mundo. Como encontramos no modelo de Deleuze e Guattari,

o livro não é a imagem do mundo segundo uma crença enraizada. Ele faz rizoma com o mundo, há evolução a-paralela do livro e do mundo, o livro assegura a desterritorialização do mundo, mas o mundo opera uma reterritorialização do livro, que se desterritorializa por sua vez em si mesmo no mundo. (Ibid., p.20)

Sendo assim, as questões colocadas na literatura, especificamente as questões da FC propostas aqui, são as linhas de composição desse rizoma livro-mundo. O rizoma nunca está pronto, embora possa ser cortado ou renascer a qualquer momento, portanto essas questões não poderão ser resolvidas num trabalho dissertativo de tese, nem pretensamente sanadas aqui. O objetivo deste trabalho é entrar nesse rizoma por meio da reflexão sobre tais questões e criação de outros rizomas e pequenos mapas que mostrem os caminhos da carne junto ao elemento técnico na literatura de FC selecionada para este corpus.

O estranhamento cognitivo serve como estratégia de funcionamento da máquina livro- mundo, ou da máquina espaço-literário–mundo-zero. Há duas maneiras de se pensar essa máquina. A primeira delas é hierárquica e vê o livro inserido no mundo, subordinado ao

sistema mundano e buscando dentro da obra representações para os acontecimentos que ocorrem fora dela. Embora não se possa sair totalmente dessa forma de lidar com a literatura, gostaria de me distanciar dela o máximo possível, pois aplica um modelo arborescente de reflexão.

A árvore, segundo Deleuze e Guattari, fixa um ponto, um centro, sendo basicamente hierárquica em suas conexões e obedecendo a uma ordem sistemática previsível e simplista – embora não simples. Um sistema arborescente, portanto, se diferencia do sistema rizomático por ser devotado ao uno hegemônico. Enquanto, por outro lado, o rizoma também pode operar o uno desde que o faça voltado para a multiplicidade e, ao invés de se voltar para a ordem simplista, volta-se para a ordem complexa, o caos. Temos aí a segunda configuração da máquina. Enquanto num sistema arborescente o livro representa o mundo e, portanto, a arte imita a vida e a vida não toca a arte; num rizoma o livro tem independência do mundo, embora precise existir dentro dele, e oferece múltiplos centros de devires. Um rizoma é composto de platôs, que são multiplicidades conectáveis entre si e com outras; portas de entrada que, apesar de conectadas, não estão presas a outras portas, embora sejam codependentes como um conjunto. Isso mostra que um rizoma como o livro-mundo fornece tantas maneiras de leituras quantas forem realizadas e, sendo assim, oferece o híbrido definido aqui como porta de leitura deste corpus.

Dentre as denúncias feitas por Deleuze e Guattari está a crítica ao dualismo, principalmente o cartesiano, que conhecidamente separou mente e corpo como entidades independentes através do cogito ergo sum. Porém a utilização de dualismos é aceitável quando fornece a inexatidão necessária para se desbancar outros dualismos e chegar-se finalmente ao “PLURALISMO = MONISMO” (Ibid., p.32). Essa fórmula será aqui aplicada para pensarmos o híbrido como, a um tempo, plural e uno. Se por um lado preciso de peças diferentes em natureza para formar a máquina do híbrido, por outro, necessito que ele seja reconhecido como uma entidade completa e que possa ter um só nome. Embora essas partes da máquina sejam distintas conceitualmente, ou seja, a carne se diferencia do elemento técnico, proponho que separá-las significa a morte do híbrido. Isso pode ser feito apenas mediante a quebra dos dualismos opositores excludentes, do tipo mente x corpo, real x irreal, humano x máquina, com sua transformação em relações complementares de diferença, nas quais um elemento apoia o outro sem prescindir dele e também sem confundir-se com ele.

É possível encaixar o termo “estranhamento cognitivo” nessa transformação de relações, pois é uma expressão formada por dois elementos que, pensados separadamente ou num contexto de dualismo, se tornam opostos. Entretanto, mudando a chave para uma relação

de complementaridade, o estranhamento se torna conhecimento quando significa aquilo encontrado pela frente e somente pode ser estranhado aquilo que foi percebido, ou seja, que foi conhecido.

Contudo, como qualquer diferença, esse estranhamento cognitivo somente pode ter força se operado como uma máquina que precisa da outra para funcionar: a máquina da semelhança. Por exemplo, um leitor de O admirável mundo novo, de Aldous Huxley (1932) pode verificar isso ao perceber que a diferença entre o mundo do espaço literário construído pela obra e o mundo do leitor – do qual a obra faz parte – coexiste com a assustadora semelhança entre esses mundos. Nesse momento também é possível entender que não são mundos separados ou separáveis, novamente encontramos a codependência: obra e mundo não podem existir separadamente, embora sejam elementos diferentes; o mundo contém a obra possibilitando sua existência e sendo irreversivelmente transformado por ela.

A semelhança, por exemplo, de uma obsessão pela felicidade que em O admirável mundo novo culmina na manipulação genética dos seres humanos a fim de livrá-los de diferenças entendidas socialmente como defeitos que, por sua vez, geram infelicidade. Obsessão também trabalhada pela “hipnopedia”, uma pedagogia do sono que condiciona, por exemplo, bebês da casta inferior Delta a odiarem flores e livros através do sofrimento do corpo, para que na idade adulta as massas sejam felizes ao aproveitar somente atividades pagas, sem sentir falta dos prazeres gratuitos. Ou condiciona embriões das castas inferiores a gostarem do calor para que sejam felizes trabalhando nas minas dos trópicos, a sentir prazer na posição de cabeça para baixo para que gostem de trabalhar consertando aviões-foguete em pleno voo. Afinal de contas “é o segredo da felicidade e da virtude: amarmos o que somos obrigados a fazer” (HUXLEY, 2009, p.44). Ainda, a utilização da droga “soma” oferece os efeitos de um ansiolítico moderno, eliminando o sofrimento do corpo, causado por uma situação extrema.

Embora a “hipnopedia” ou o “soma” ou mesmo a manipulação genética para a padronização completa da humanidade sejam práticas mais populares e difundidas no espaço literário da obra de Huxley do que no Mundo Zero no qual essa obra se localiza, constituindo assim a dissonância de que fala Mendlesohn entre ambos os mundos, a busca cega pela felicidade não está longe da realidade do espaço não-literário, que é “literarizável” e passível de leitura, sendo que uma leitura e literarização possíveis desse mundo se materializam em O admirável mundo novo. Encontramos então um ponto de intersecção entre a diferença e a semelhança que forma esse estranhamento cognitivo acusado por Suvin.

Ainda é possível aplicarmos a O admirável mundo novo a definição de Schmidt referida acima, quando ele afirma o caráter especulativo do modo FC. Se um autor precisa mostrar como é/seria possível a existência ou veracidade do elemento de especulação imprescindível para o bom funcionamento da obra, Huxley descreve, por exemplo, esses condicionamentos dos embriões ao calor e à posição invertida, que consistem em ligar o sofrimento do corpo ao frio por choques térmicos e à posição normal pelo corte da circulação de pseudossangue, partes do chamado Processo Bokanovsky. O processo Bokanovsky realiza a explicação do elemento especulativo possível na obra, que no primeiro capítulo é detalhado para que o leitor possa adentrá-la inteirado do funcionamento de sua lógica interna.

Visto que a própria Ciência baseia seu discurso em hipóteses e teorias continuamente testadas e recorrentemente derrubadas e que o modo FC deve utilizar-se desse discurso viabilizando-o dentro da obra, é pela via da possibilidade e não da “verdade” que ele entra no espaço literário. Schmidt pontua essa questão quando revela um de seus critérios para escolher as publicações da revista Analog: “Acontece ocasionalmente que uma história tem uma boa ideia, mas parece mais a leitura de um tratado científico do que uma história.”13 Sendo assim, o editor rejeita as histórias em que o autor se preocupa com a veracidade dos processos utilizados na obra, afinal de contas, embora não desapareça, quando encontrado num texto praticamente científico, o estranhamento perde a potência que deve ter na FC.

Visto dessa forma, o estranhamento se torna a desterritorialização que aumenta o território no mundo literário e estende-o até que cubra também o mundo não-literário (DELEUZE; GUATTARI, 2004, p.20). A literatura é criadora de linhas de fuga, das quais faz parte o novum, estabelecendo pontes que se sustentam entre estes dois mundos eliminando o abismo entre eles. Através dessas linhas de fuga percebemos que tal abismo nunca existiu realmente, ao menos não com a função de separação; através da desterritorialização e reterritorialização do estranhamento e da cognição (e essa correspondência não é necessariamente de um para um, mas pode e deve ser misturada para que as linhas de fuga atuem), é possível que um texto de FC, seja ele literário ou não, desenvolva a nova perspectiva de que fala Roberts (2003, p.16) e que se refere à maneira de olhar e construir o humano através das visões de suas possibilidades.

2.3 O ALIEN, AS VIAGENS E OS ROBÔS 13