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2. UMA DEFINIÇÃO DO TERMO “FICÇÃO CIENTÍFICA”

3.2 DE GERNSBECK AOS ANOS 60

3.2.1 As revistas – A Pulp Fiction

No início do século XX, com a popularização do papel barato feito de polpa (pulp) de madeira, a literatura de massa ganha outra perspectiva de mercado14 e tanto as histórias românticas, quanto Westerns e histórias de detetive passaram a ter mais produção e procura dos leitores. O formato de revista foi historicamente um grande impulso tomado pela literatura de FC por duas prováveis razões principais: sua perspectiva de alcance (o baixo custo do material favorecia a divulgação de larga abrangência) e o espaço oferecido a autores e leitores que pode ser considerado mais democrático em relação aos volumes em formato livro, que precisam ser divulgados e promovidos comercialmente.

Entretanto, as publicações literárias barateadas já eram populares desde os Feuilletons (França, 1836), os Penny bloods Britânicos (1837) e os Pamphplet Novels Americanos (1839), conforme pontua Marie Léger-St-Jean.Nessa primeira metade do século XIX, o custo desse tipo de publicação era mantido baixo através de métodos como a serialização do material publicado, que garantia também a continuidade da venda entre os leitores de classe baixa, e seu conteúdo ficcional que evitava a taxa do StampAct – cobrada sobre material impresso nas colônias britânicas que deveriam ser publicadas num papel produzido em Londres.

Os Penny Bloods ingleses saíam tanto em periódicos como em publicações autônomas, com cerca de 8 páginas, em formas de serialização que vinham desde o século XVIII e permitiam que os custos permanecessem baixos tanto para os consumidores quando para os editores. O conteúdo dessas histórias era recheado de humor ou política, até o momento em que algo sangrento acontecia – daí seu título envolver a palavra “sangue”.15No caso dos Feuilletons franceses, as histórias eram publicadas diariamente durante cerca de um ano e, posteriormente, reunidas em um volume com a história completa, ou quase completa. Por outro lado, os Pennybloods eram publicados semanalmente em periódicos, tipicamente em torno de 15 a 50 números, ou mesmo durante um ano – quando muito bem sucedidos. Já os Pamphlet Novels (também conhecidos como Dime Novels) americanos eram publicados tanto semanalmente em periódicos literários quanto em volumes completos.16

No caso das publicações no formato serializado em periódicos do século XX, Atterby aponta que representaram muito na formação da FC posterior, por alavancar sua leitura entre a

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As publicações pulp começaram em 1880, com a revolução das publicações de revistas, porém não voltadas para a FC nem para as massas, mas com circulação reduzida e preço relativamente alto. (CLUTE;NICHOLLS, 1993, p.979)

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Disponível em: <http://www.priceonepenny.info/index.php>, Acesso em 19 ago. 2014. 16

LÉGER-ST-JEAN, Marie. Texto apresentado na ESSH (European Social Science History Conference) de

2012, disponível em: http://www.academia.edu/1702239/Mid-

19th_Century_Cheap_Novels_Speeding_Towards_Global_Mass_Transmedia_Culture> Acesso em: 19 ago. 2014.

massa e possibilitar uma diversidade de experimentações literárias: “as revistas permitiram o desenvolvimento de temas, formas e técnicas novas surpreendentes [e] independência artística”, sendo como “um pequeno filme independente em oposição a um blockbuster de Hollywood, que precisa atender às expectativas da audiência mais abrangente possível [...] e sem esses esforços iniciais, o gênero não seria o que se tornou” (JAMES;MENDELSOHN, 2011, p.46-47). Sendo assim, muitos dos temas e estratégias da FC na ativa hoje podem ser encontrados nas revistas dedicadas a ela a partir da década de 1920, quando essas publicações proporcionaram um lugar de pretensa liberdade criativa e literária debaixo do guarda-chuva da FC.

Nem todas as revistas publicavam apenas FC, havia também revistas dedicadas a outros temas que publicavam histórias de FC regularmente. Clute e Nicholls consideram uma lista delas em sua Enciclopedia of Science Fiction na entrada magazines. Algumas revistas como The Argosy (1882 – 1978, dedicada a ficção em geral), The Strand Magazine (1891 – 1950, que publicava autores como Agatha Christie e Leo Tolstoi) e Pearson’s Magazine (1895 – 1939, especializada em ficção em geral, discussões políticas e artes) publicaram histórias de autores como Edgar Rice Burroughs, H.G. Wells e Conan Doyle, incluindo ilustrações com a finalidade de gerar apelo visual ao público (ROBERTS, 2005, p.175). Segundo Rabkin, Hugo Gernsback começou suas publicações de revistas científicas, que eram dedicadas ao rádio e à eletrônica, com reimpressões das obras de Verne e Wells (RABKIN, 1983, p.220), para, mais tarde, em 1926, fundar a primeira revista de FC com alguma longevidade17, Amazing, cujo primeiro número traz a definição do termo scientifiction, de vida curta e já citado neste trabalho.

Na época das PulpFictions a FC passou a ser vista como literatura de massa e popularmente direcionada, pois não era definida em função da opinião dos críticos de arte, mas construída por e para fãs. Alguns autores, como Wells, nesse contexto, escreviam tanto para a massa quanto para o público de classe média, pois seus temas diziam respeito a quase todas as esferas sociais, principalmente porque no início da era pulp, a tecnologia estava mostrando sua potência (tanto de guerra, quanto de arte e medicina), colocando as reflexões sobre a Ciência na ordem do dia.

Portanto, além do aspecto econômico das publicações pulp, havia a questão da Ciência como parte do cotidiano e por isso a FC atingiu altos índices de publicações e popularidade. Notadamente, por ser uma literatura lida e escrita por fãs e, portanto, poder ser popularmente

17 Richard Bleiler aponta em The Enciclopedia of Science Fiction a primeira revista dedicada ao tema como sendo Thrill Book, de 1919, que no mesmo ano deixou de ser publicada. (CLUTE;NICHOLLS, 1993, p.1222)

produzida, teve sua qualidade literária reduzida aos olhos da crítica. Contudo, para Gernsback e John Campbell – dois dos principais editores de FC pulp –, esse fator parecia aumentar a qualidade da FC, pois ela devia ter um caráter educativo, mostrando ao público as possibilidades da Ciência e tecnologia, melhorando a visão e entendimento do mundo através da leitura de seus textos, tornando as pessoas mais tolerantes. (ROBERTS, 2003, p.68). Para Campbell e Gernsback, a celebração da Ciência através dessas revistas deveria formar e incentivar o leitor a refletir sobre a influência dos avanços tecnológicos no cotidiano.

Essa ferramenta educativa, segundo Brian Attebery, não devia ser óbvia, mas operar a modelagem do indivíduo através das técnicas literárias de eficácia já comprovada, a aventura, o mistério e o romance (JAMES;MENDELSOHN, 2011, p.33). A proliferação da FC a partir dos anos 20 e 30 se deve muito a essa estratégia, e também à conexão entre literatura e cotidiano. Segundo Bould e Vint, “o começo da FC como um novo tipo de literatura ocorreu no contexto de um mercado expansivo de revistas [...] a marca de Gernsback buscou enfatizar conexões entre as histórias que ele publicava e o mundo tecnológico que se revelava ao redor delas.” (BOULD; VINT, 2011, p.41)

Alguns autores como John Clute e Brian Aldiss, citados por Roberts, questionam esse didatismo, culpando-o talvez por uma FC que, de 1926 até 1936, foi orientada para o público adolescente e rebaixada por ter se tornado uma forma de arte popular. Roberts, porém, pensa que isso significa “interpretar mal tanto o próprio gênero quanto a força de seu desenvolvimento em um fenômeno cultural de massa no século XX” (ROBERTS, 2005, p.177). Essa é uma postura comum na visão acadêmica da literatura de FC, vista geralmente como entretenimento, muitas vezes equivalente a um passatempo assim como jogos de videogame, animações em vídeo ou revistas em quadrinhos, na atitude de julgar essas formas de arte como menores frente à alta cultura. Contudo, é importante notar que, seja de teor juvenil com cenas de aventura, lutas e romance; seja com a promessa de uma visão precisa e correta da Ciência e tecnologia como principal foco da obra (hard SF); ou mesmo pendendo para as Ciências sociais que visam a discussões filosóficas a partir do uso do elemento técnico pelo homem, a FC deve muito de sua força histórica às revistas.

Alguns dos títulos conhecidos de revistas de FC são Amazing Stories (1926 – 2005), Astounding Science Fiction (1930 – presente), Galaxy Science Fiction (1950 – 1980), The Magazine of Fantasy & Science Fiction (1958 – presente), Isaac Asimov's Science Fiction Magazine (1977 – presente), Wonder Stories (1929 - 1955), Astounding Stories (1930 - 1933), Astonishing Stories (1940 - 1943), Marvel Science Stories (1938 - 1952). Segundo Attebery, a

fórmula lançada por Gernsback em Amazing Stories foi seguida pela grande maioria das revistas seguintes, que trazia dentro de um mesmo número basicamente os mesmos personagens (algumas vezes trocando de nome), em cenários recorrentes, temas familiares e aventuras repetidas (JAMES;MENDELSOHN, 2011, p.36-37).

Nelas, encontram-se espalhadas publicações de autores como Marion Zimmer Bradley, Ursula K. le Guin, H.P. Lovecraft, A. E. Van Vogt, Theodore Sturgeon, Poul Anderson, Octavia Butler, Orson Scott Card, Kim Stanley Robinson, entre tantos outros. Muitos desses autores fizeram suas primeiras publicações em revistas, pois ali havia um espaço reservado também para iniciantes. Isaac Asimov teve sua primeira publicação de FC (“Marooned Off Vesta”) em Amazing Stories em 1939. E. E. Doc Smith publicou sua primeira série (Skylark Three) também em Amazing Stories em 1930. Robert Heinlein começou sua carreira escrevendo para Astounding Science Fiction e outras revistas, histórias que formariam em 1941 a famosa série Future History. Ray Bradbury começou publicando o conto “Pendulum” (1941) na revista Super Science Stories. Greg Bear fez sua primeira venda, “Destroyers” (1967), para a revista Famous Science Fiction. As revistas pulp, portanto, representam um lugar extremamente frutífero. Muitos autores passaram a publicar livros e conquistar visibilidade a partir das oportunidades encontradas nas revistas. Além disso, foi durante a era das revistas que a FC ganhou o nome e a conotação que carrega até hoje, uma literatura popular, embora não sirva para todos.

De acordo com Attebery,

O tipo de ficção publicado na revista revelava seu parentesco com a ciência popular e as fórmulas ficcionais mais obviamente do que suas fontes literárias, o desenvolvimento dos personagens era superficial e os roteiros geralmente eram tenuemente disfarçados de westerns, mistérios ou romances de mundos perdidos (JAMES;MENDELSOHN, 2011, p.34)

Segundo o autor, portanto, grande parte das histórias de FC na era das revistas apresentava pretensão científica ao invés de utilizar conhecimento baseado em pesquisa. E, embora Gernsback tenha afirmado no primeiro número de Amazing Stories utilizar a FC como ferramenta educativa visando a ensinar os leitores a pensar sobre o futuro, tanto ele quanto outros editores que seguiam o mesmo rumo aceitavam histórias em que o enredo não necessitava do elemento técnico para existir, ou seja, histórias que Suvin classificaria como tendo trocado o tapete voador pelo foguete espacial.

Devido ao fato de as revistas oferecerem espaço aberto para qualquer autor proposto a escrever FC, muitos escritores aproveitaram esse formato para a experimentação. Stanley Weinbaum, por exemplo, trouxe os primeiros alienígenas simpáticos da

FC(JAMES;MENDELSOHN, 2011, p.35); escritoras como Catherine Moore e Lilith Lorraine, utilizaram esse espaço para conquistar um lugar predominantemente masculino (BOULD; VINT, 2011, p.50-53); Robert Heinlein estabeleceu o padrão de herói racional que salva o dia com seu conhecimento e que foi seguido durante muito tempo na FC pulp mesmo fora das revistas (JAMES;MENDELSOHN, 2011, p.37-38); Edgar Rice Burroughs criou a famosa série Tarzan of the Apes – onde um bebê é criado por macacos na África – que rendeu mais tarde 26 volumes (ROBERTS, 2005 p.180-181); E. E. Doc Smith lançou um dos primeiros exemplos da Space Opera e ajudou a definir o gênero (BOULD; VINT, 2011, p.46).

Sendo assim, é possível perceber a importância desse início do modo FC proporcionado pelo formato, facilidade e baixo custo do material, aceitação do público, grande alcance e abertura de oportunidades a novos autores, características sem as quais provavelmente a FC seria outra. Essa fase é muito respeitada dentro dos círculos de FC ainda hoje, por esses motivos, e não apenas numa atitude saudosista e nostálgica, mas também numa demonstração de respeito pelo pioneirismo daqueles que souberam iniciar um modo de pensar totalmente centrado em um aspecto da humanidade tocado somente tangencialmente por outros artistas.