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2. UMA DEFINIÇÃO DO TERMO “FICÇÃO CIENTÍFICA”

3.4 O CYBERPUNK

3.4.2 A carne que resta

Entretanto, é do título de um conto de 1983, escrito por Bruce Bethke, que o termo “cyberpunk” foi retirado. Tratando de alguns hackers adolescentes que conseguem invadir um sistema bancário e manipular a informação armazenada ali, o conto consegue realizar o contraste entre o hardware e o software de maneira simples e direta. Um deles, Michael, ameaçado pelo pai numa briga, usa sua habilidade para invadir o sistema bancário e apagar os dados do pai, suas economias, além de acessar outros sistemas computacionais e deletar as informações de seu emprego e pensão. Diante da fúria do pai, Michael explica que realizou cópias de segurança de todos os dados apagados – dados que conferem existência real ao indivíduo, de acordo com a lógica informática. Porém, essas cópias só podem ser recuperadas pelo próprio garoto, que tomou o cuidado de guardá-las em computadores espalhados pela cidade, em lugares a que somente ele tem acesso. Trancado em seu quarto, o garoto consegue fazer seus pais reféns da própria informação eletrônica. Contudo, no dia seguinte, o pai arranca a porta do quarto do menino e mostra a ele montes de recibos, notas fiscais, documentos em papel, informação física, a garantia de sua persistente existência.

Mesmo tendo fornecido o título ao movimento e circulado durante os anos seguintes pelo terreno da FC, essa história não é a mais reconhecida como representante principal do cyberpunk. A obra de referência para pensar as características do movimento é justamente Neuromancer, de William Gibson, a primeira da trilogia Sprawl, que inspirou a escrita do roteiro para o filme Matrix. Neuromancer estabeleceu alguns princípios seguidos posteriormente pelos autores desse gênero.

Case é um hacker que tentou enganar as pessoas erradas. Roubou algo de seus empregadores e foi pego. Seu castigo foi totalmente corporal:

Danificaram seu sistema nervoso com uma microtoxina russa dos tempos de guerra. Amarrado a uma cama de um hotel em Memphis, seu talento queimando mícron a mícron, alucinou por trinta horas.

O estrago foi minucioso, sutil e profundamente eficiente.

Para Case, que vivia até então da exultação sem corpo do ciberespaço, foi a Queda. Nos bares que frequentava no seu tempo de cowboy fodão, a postura da elite envolvia um certo desprezo suave pela carne. O corpo era carne. Case caiu na prisão da própria carne. (GIBSON, 2008, p.18)

No trecho acima é possível perceber um apanhado de algumas das principais características do cyberpunk. Em primeiro lugar, o sistema nervoso é comparado a um sistema maquínico que pode ser “danificado” com o uso de elementos técnicos que possuem a capacidade de alteração permanente, e mais, um elemento técnico “dos tempos de guerra”, construído com a intenção de destruição do humano. Em segundo lugar, a tendência a acreditar em um corpo destacável que, durante a imersão no ciberespaço, se torna desnecessário e impossível. O repudio à matéria corporal e a exaltação do virtual, o não-

físico, são elementos patentes aqui, juntamente com a esperança de se retirar do corpo tudo aquilo que não é carne e enviar esse apanhado para o ambiente virtual, deixando o resto, o corpo. Em terceiro lugar, a prisão representada por essa carne que existe na alienação e no excesso da realidade corporal. A carne como prisão - uma ideia fundamental no cristianismo - é também o expoente da tese sobre a obsolescência do corpo34.

O corpo só pode ser considerado prisão caso constitua parte de um todo divisível em que outras partes desejem liberdade. A possibilidade de separar mente e corpo, nos moldes propostos por Hans Moravec nos anos 1980 (falarei sobre isso mais adiante), é o sonho platônico do cyberpunk realizado na literatura. Sonho que parte também das ideias de Norbert Wiener sobre a cibernética, nos anos 40, “não só o pensamento, mas tendencialmente toda a performance do ser humano [...] fosse representável com oportunas técnicas digitais e reproduzível em outros suportes” (FELICE; PIREDDU, 2010, p.187). Um sonho que também tem relação com a velocidade e com o que Csicsery-Ronay chama de trhrill (emoção, excitação, arrepio), quando explica que na obra de Gibson, o thrill é tudo o que resta à humanidade: aquilo que a cibernética pode oferecer como possibilidade de criação e poder (McAFFREY, 1991, p.191).

A velocidade proporciona esse thrill quando entendemos o ciberespaço e a potência guardada por ele. Quando Case compara a sensação de tomar octógonos e ficar “doidão” com estar dentro da matrix, é possível captar o papel da velocidade no corpo do ciborgue que, neste caso, é o corpo imerso no ciberespaço, capaz de ignorar o mundo físico por completo:

Você podia se jogar numa deriva em alta velocidade e deslizar, totalmente focado mas separado de tudo, e todos ao seu redor dançando a dança dos negócios, interagindo informações, dados encarnados nos labirintos do mercado negro (GIBSON, 2008, p.31)

Csicsery-Ronay explica que no tipo de condição criada no ciberespaço, “a única maneira de viver é na velocidade”, porque ela substitui “afeto, reflexão, e cuidado, que necessitam espaço e ócio e relaxamento; portanto não há famílias, nem arte, nem um artesanato de materiais naturais” (McAFFREY, 1991, p.192), ou seja, a velocidade de processamento da máquina se torna a velocidade de um corpo que precisa acompanhá-la para se contextualizar.

Além disso, a fragmentação do humano nos moldes da informação eletrônica é parte crucial do cyberpunk. A inteligência artificial em Neuromancer, Wintermute, ilustra essa questão, quando uma de suas faces é encontrada por Case e explica a diferença entre o todo e

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A esse respeito, ver também “Prosthetics, Robotics and Remote Existence: Postevolutionary Strategies”, do artista performático Stelarc, texto famoso onde ele afirma que “um corpo bípede com respiração aeróbica, visão binocular e um cérebro de 1,400cc” talvez não seja uma forma biológica adequada. Disponível em <http://www.jstor.org/stable/1575667>, acesso em 23 fev. 2014. Tradução de minha responsabilidade.

cada uma de suas partes, que são fragmentos representativos da entidade total que, por sua vez é parte de um todo maior, e assim por diante.

Seu erro [...] está em confundir o mainframe Wintermute [...] com a entidade Wintermute [...] Eu, se podemos dizer que tenho um “eu” – isso começa a ficar um tanto metafísico, entenda [...] o que você acha que é Wintermute é apenas parte de outra, digamos, entidade potencial. Eu, vamos dizer assim, sou meramente um aspecto do cérebro dessa entidade. (GIBSON, 2008, p.141)

Enquanto Case, ou qualquer outro cowboy do ciberespaço, encontra na matrix inúmeras extensões de sua alteridade, modos de existência e possíveis saídas da prisão da carne, a entidade de IA Wintermute funciona como um protocolo infinitamente maior de regulação de uma parte do ciberespaço. Essa transformação do humano e da inteligência em protocolos informáticos é uma das facetas do pós-humano, que através da tecnologia – principalmente as disponíveis em escala de massa – está sendo redefinido.

E quando tudo o mais quer ser retirado, resta a carne. O sonho cyberpunk se realiza nesse resto, uma demonstração da obsolescência do corpo realizável na redução à carne. Atribuir uma função a esse resto é uma maneira de reutilizá-lo, tornando-o uma “boneca de carne” e tirando-o da condição de lixo, que seria o destino daquilo que sobra. Molly explica a Case como isso funciona em suas últimas consequências. “É uma piada, para começo de conversa, porque assim que eles plantam o chip disjuntor, parece um dinheiro mole de ganhar. Às vezes você acorda ralada, mas é só. Você está só alugando a sua carne.” (Ibid., p.170) Uma maneira de ganhar dinheiro, possibilitada pela realização desse sonho emancipatório. Por ser um espaço conceitual, o ciberespaço recolhe a porção ideal de um corpo que deseja se libertar da constrição da carne. Um “excitante e dinâmico reino de possibilidades” (ROBERTS, 2003, p.68) e veículo veloz de transporte do humano ao pós-humano.

Essa versão do pós-humano é denominada por Antonio Caronia de “corpo disseminado” e constitui uma das vertentes de um sujeito que se conecta com “dispositivos, medidores, sensores, que fazem mover os avatares em nossa tela [...] através de uma tecnologia, mesmo sem sua presença real, em uma dimensão virtual” (FELICE; PIREDDU, 2010, p.191). Aqui, o virtual é colocado como sinônimo de uma gama de possíveis oferecidos pela técnica capaz de estender o humano para além das configurações preexistentes de sua realidade. Para Caronia, o pós-humano, além de questionar o homem cultural e social, questiona, através das conexões com o virtual e da virtualização do sujeito, o homem biológico como limite para seu corpo.

Para Sheryl Vint, o cyberpunk provê na alucinação o abrigo para a consciência descorporificada que pretende aniquilar a carne, mostrando que o “mundo do ciberespaço é o mundo consumado do dualista Cartesiano: no ciberespaço você é a mente, movendo-se sem

esforço além das limitações do corpo humano.” (VINT, 2007, p.103). Para que se possa “ser a mente”, é necessário livrar-se da carne, e aí reside o significado do sonho cyberpunk. “Sonho”, com o significado de desejo e também no sentido de irrealizado. Pois a carne segue desempenhando papel imprescindível na composição do todo, por exemplo, quando Case recebe seu castigo de ser proibido de entrar na matrix, é na carne que as toxinas são injetadas e podem agir, a carne materializa essa prisão porque nunca se deixou escapar da mente. E mesmo quando, dentro do ciberespaço, o sujeito vaga pelas diversas possibilidades imateriais, a mente separada é um sonho impossível, pois o corpo também é composto pela mente, pelas características de uma nuvem de virtuais pairando ao redor da porção física. “Mesmo o desejo de transcender seu corpo, está enraizado em sua necessidade corporal de ficar alto” (Ibid., p.107)

A noção de “carne” no sonho cyberpunk significa aquilo que é dispensável e acessório, onde a mente é privilegiada e prevalece por ser separável de seu resto, isso também fica claro na terminologia utilizada em inglês, que escolhe “meat” no sentido pejorativo – termo usado para se referir à carne morta ou o como alimento, parte comestível de um animal – ao invés de “flesh” – que designa a carne viva, humana. Já neste trabalho a carne é uma porção indispensável do corpo; uso o mesmo termo propositalmente, pois falo do mesmo corpo, porém com uma diferença de valores. No híbrido proposto aqui, o conceito de carne se diferencia da carne cyberpunk, pois significa o material e o não-material do corpo, sendo um termo essencial para a composição do todo. Portanto, aqui, um híbrido não pode ser separado em carne e mente, ou corpo e alma, mas pode ser dividido em partes que serão todas elas carne. Como diria Zaratustra, a alma é um aspecto do corpo.

À consciência descorporificada, afirma Vint, falta uma conexão com a realidade material, o espaço da ética (Ibid., p.122) que comporta as idiossincrasias do físico - do desejo - que não sofrem uma transvaloração no ciberespaço. Não afirmo aqui que seja uma inversão ou perda de valores, mas creio ser uma mudança inevitável no transporte do plano material para o cibernético. O sonho não se concretiza, pois mesmo dentro da realidade virtual, o corpo sente e deseja e, no fim das contas, Case e Molly são incapazes de deixar completamente sua realidade física. Penso o corpo, também, como a realidade material do objeto computador, ou algum equivalente, que pode sustentar uma porção do humano como a mente, que faz o papel da carne quando imersa no ciberespaço, pois se mostra capaz de desejar e sentir, principalmente tendo em mente o romance The Accord, a ser analisado mais adiante, talvez o maior herdeiro do sonho cyberpunk dentre as obras em análise adiante.

A mudança do corpo realizada pela tecnologia é encarada por Vint como a transformação do ciborgue que precisa integrar ou “incorporar aquela ferramenta em sua imagem corporal” para que possa ser utilizada com sucesso. Contudo, “os computadores não apenas modificam nossa imagem corporal como também influenciam nosso modo de pensamento e percepção” (Ibid., p.119), tornando o ciborgue uma figura capaz de quebrar os dualismos opositores, como corpo/máquina, carne/técnica ou físico/não-físico. Para o ciborgue proposto pelo pós-humano, o outro não está naquele corpo diferente, o esteticamente inferior na hierarquia que começa pelo homem branco ocidental heterossexual – mulher, negro, de sexualidade não ortodoxa, deficiente, obeso –, mas em todo o ser com o qual consegue estabelecer relações e extensões e compor seu rizoma, podendo ser encontrado tanto na realidade virtual quando na realidade atual.

Portanto, quando Deleuze discute as diferenças e semelhanças entre o virtual e o atual (ambos reais), explica que a questão do virtual pode ser vista como uma questão de tempo. O virtual pode simultaneamente anular o tempo e mostrar sua contemporaneidade, ele é a realidade no “tempo menor do que o mínimo de tempo contínuo pensável” (DELEUZE; PARNET, 1998, p.173), numa incerteza ou indeterminação próprias da potência. Uma questão de velocidade, também. A névoa de virtuais que envolve o atual é dele inseparável, dando-lhe as possibilidades de atualização e individuação. Parnet, em resposta a isso, coloca o processo de individuação como a troca entre atual e virtual que ocorre no plano de imanência, a formação de circuitos. (Ibid., p.175) Para ela, o virtual é o efêmero que permite a cristalização no plano de imanência. Por outro lado, o presente, antes de ser efêmero, é uma medida na linha temporal que marca a definição do atual, que se conserva quando o menor tempo contínuo pensável é imediatamente (sem mediação) seguido por outro, e outro; enquanto o efêmero (presente) passa. (Ibid., p.178)

Talvez nesse sentido, o corpo no cyberpunk possa ser a troca entre atual e virtual, em que a carne sente o efêmero, o thrill; e também o presente, o desejo, dor. Uma herança deixada pelo cyberpunk que, ao reforçar o dualismo cartesiano por um lado, também conseguiu, em sua lógica da integração explorada por Sterling e Csicsery-Ronay, chegar ao veredicto de que a carne permanece necessária, pois é seu protagonista, seu objeto de problematização. A carne que resta poderá ser sempre um resto, porém jamais descartada, sob pena de aniquilação do humano. O sonho cyberpunk, que idealiza essa separação na qual a carne é vista unicamente como suporte físico e descartável da alma, mas também mostra que a carne virtual é plástica e pode conter e desdobrar a dor, tenta transformar o ciberespaço no contêiner da totalidade da experiência: “ – Certo - Bobby disse, começando a pegar -, então o

que é a matrix? [...] o que é o ciberespaço? – O mundo – Lucas disse.” (GIBSON, 2008, p.152)