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2. UMA DEFINIÇÃO DO TERMO “FICÇÃO CIENTÍFICA”

3.4 O CYBERPUNK

3.4.1 O paradoxo da integração

A partir dos anos 80, a tecnologia das telecomunicações começou a se expandir rapidamente no mundo desenvolvido. Com a popularização dos cabos de fibra ótica, das máquinas de fax, das transmissões via satélite e a invasão computacional nas atividades diárias, a relação do modo FC com o Mundo Zero se torna um tanto mais estreita. Essa característica da época, segundo Bruce Sterling, diminui consideravelmente o abismo entre as chamadas Ciências humanas e as exatas, permitindo uma nova aliança a ser formada e tornada evidente entre a contracultura dos anos 80 e a tecnologia. A contracultura dos anos 80 exalta a tecnologia dos efeitos especiais, dos hackers e técnicos de computador, juntamente com a música agressiva e marginal e um retorno às raízes praticado pela chamada juventude rebelde (STERLING, 1988, xii). Assim, nasce o termo “cyberpunk”, unindo a Ciência cibernética como tema central, à atitude punk como cenário e contexto estético (JAMES; MENDELSOHN, 2011, p.67).

Entre os críticos do entusiasmo exagerado pela Era da Informação, Theodore Roszak (1986) pontua os perigos da adoração cega pela ideia que a palavra “informação” passou a expressar a partir da Segunda Guerra, quando foi redefinida por seus teóricos com base em sua importância para os interesses militares e corporativistas. Ele denuncia aquilo que chama de “culto da informação” como equivalente, através do computador, ao emblema de salvação que significavam as relíquias da Cruz na Idade da Fé (1986, x). Enquanto, anteriormente a essa época, a informação servia para auxiliar na produção de mercadoria, após a criação do UNIVAC33 durante a guerra, o processamento de dados passa a ter outro valor e a partir dos anos 70 a informação se torna a própria mercadoria – uma das mais valiosas no mercado (Ibid., p.20). Por outro lado e simultaneamente, a palavra começa a se aplicada de maneira indistinta a qualquer sinal transmitido de um lugar a outro que possa ser recebido e lido por terminais, apagando a diferenciação entre ela e o conhecimento. Ou seja, para Roszak, o conteúdo do que está sendo comunicado tem sua importância diminuída, uma mudança que confere à informação neutralidade e incontestabilidade que a coloca num lugar intocável.

O autor ressalta que as tecnologias econômica e espacial existentes nos anos 80 devem sua criação e aprimoramento à Segunda Guerra, além de serem financiadas por instituições e corporações de ordem militar. De fato, o maior temor expresso pelo autor é a união entre o

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O primeiro computador disponível comercialmente. O UNIVAC I – Universal Automatic Computer – foi entregue ao escritório do censo Norteamericano em 1951. Foram produzidos 46 UNIVACS. Foi criado pelos mesmos designers do ENIAC, o primeiro computador eletrônico construído. Sua memória tinha capacidade para 12000 caracteres, guardados em 10 unidades de memória. O computador media cerca de 7,6m x 15m. Fotos de seus componentes e trabalhadores operando-o podem ser encontradas em <http://www.computer- history.info/Page4.dir/pages/Univac.dir/>. Acesso em jan. de 2015.

militarismo e a nivelação dos valores entre informação e conhecimento, por dispensar o pensamento crítico e agrupar ambos no mesmo patamar prático. Isso, porque a mais alta tecnologia jamais está presente nas casas da população e nas escolas, mas restrita aos espaços militares. O computador se transforma em uma supermáquina quando, após a Guerra, a palavra “memória” começa a ser empregada para indicar sua função de armazenamento de dados, passando também a retratar um suposto modelo da mente humana (aqui, equivalente ao cérebro), segundo o qual esta é reduzida a armazenamento e processamento de informação. Por outro lado, a mente humana é concebida como inferior dentro dessa lógica do pensamento matemático, pois tem capacidade reduzida de armazenamento e perde informações com mais facilidade em comparação com a Inteligência Artificial.

Além disso, a high tech, como modelo de sociedade, apresenta duas camadas quase totalmente sem trânsito de uma para outra, pois precisa manter a classe dos empresários, inventores e engenheiros distante da classe dos trabalhadores de produção, praticamente inviabilizando a possibilidade de comunicação, visto que a informação não pode substituir completamente a indústria e sustentá-la sozinha (1988, p.54-56). Assim, pode-se dizer que a “idolatria tecnológica” de que fala o autor (Ibid., p.73) cria uma espécie de abismo tanto entre as pessoas quando entre o homem e as máquinas inteligentes: o primeiro discrimina entre aqueles que possuem conhecimento suficiente para criá-las e programá-las e os que, quando muito, conseguem operá-las em suas funções mais simples; o segundo, talvez de natureza e consequências mais profundas, faz distinção entre a carne – perecível, frágil e propensa ao esquecimento – e a inteligência artificial – detentora de grande capacidade de armazenamento e processamento de dados. O autor, defendendo-se constantemente da possível acusação de ocupar uma posição tecnofóbica que rejeite completamente as máquinas inteligentes, concluírem favor uma aceitação crítica dessas máquinas, afirmando que “o computador imita tão engenhosamente a inteligência humana que pode abalar nossa confiança quanto aos usos da mente. E é a mente que deve pensar sobre todas as coisas, incluindo o computador.” (Ibid., p.79)

O conhecido prefácio de Bruce Sterling para sua Mirrorshades: the cyberpunk anthology, tomado muitas vezes como um manifesto pelo cyberpunk, trata de mostrar como esse movimento pôde ocorrer dentro da FC, sem romper com suas premissas. Ele afirma que o cyberpunk liga-se à tradição da FC ao ser visto como uma literatura das ideias, embora seja também extremamente apegado ao estilo da produção artística. A mudança de foco na contracultura dos anos 60 para os anos 80 mostra que a tecnologia ocupa um lugar tão íntimo

no humano, a ponto de não pode ser considerada exterior a seu corpo. As histórias desse movimento apresentam principalmente “circuitos implantados, alterações genéticas, interfaces entre o cérebro e o computador e inteligência artificial” (MINYARD, 1998, p.403). E, no entanto, apontam o reconhecimento de que a perda da dominação mundial pelos EUA talvez não possa ser resolvida com soluções tecnológicas. A explosão do ônibus espacial Challenger em 1986 e a ameaça de uma guerra nuclear iminente, agora vinda de qualquer lugar e não mais somente partindo de potências, entre outros fatores, contribuíram para o que alguns enxergam como pessimismo na literatura de FC durante esta época.

Redefinindo a própria natureza do self, as tecnologias apresentadas no cyberpunk funcionam como invasores, realizando a integração entre corpo e tecnologia, entre Ciência e humanidades, de uma forma até então praticamente ausente na FC. Essa integração também é detectada por Csicsery-Ronay, quando afirma que por um lado o cyberpunk pretende a negação das “boas maneiras, da história, da filosofia, da política, do corpo, da vontade, do afeto”, enquanto, por outro lado, mostra que tudo é poder, subcultura, consciência, meios técnicos, elaboração tecnológica e simulação (McAFFREY, 1991, p.182). Misturando essas linhas até então opostas, o cyberpunk tem seus grandes aliados no movimento e na velocidade, pois o estático não tem lugar nessas histórias que exigem uma leitura ao mesmo tempo atenta e veloz. A estética das ruas entulhadas de publicidade entra também nos escritórios de hackers, uma mistuda de fiação, placas-mãe, comida e cinzas de cigarro. A entrada no ciberespaço é também a entrada da tecnologia no espírito, o realismo se torna contraditório. É assim que, segundo Hollinger, a saturação de imagens e a conquista da imagem eletrônica enfatiza a superfície e confere a ela profundidade (Ibid., p.212)

Segundo Csicsery-Ronay, Sterling talvez estivesse, antes de mostrar o estilo visionário que rompe fronteiras ou que integra a alta e a baixa cultura, simplesmente nomeando o cyberpunk para fazer a diferenciação entre a New Wave e essa nova geração de autores, numa linha que deixa claro o contraste entre o já consagrado, e também antiquado, e o novo, o atual, o Hype. (Ibid., p.184) Para Sterling, porém, isso é formulado da seguinte maneira:

Os cyberpunks são talvez a primeira geração FC a crescer não apenas dentro da tradição literária da ficção científica, mas em um mundo verdadeiramente ciência- ficcional. Para eles, as técnicas da hard SF – extrapolação, instrução tecnológica – não são apenas ferramentas literárias, mas uma assistência à vida diária. São um meio de entendimento, e altamente valorizado. (STERLING, 1988, xi)

Visto dessa forma, o movimento cyberpunk, se torna uma manifestação estética imbricada no cotidiano, lapidada pelo estilo da própria vida em movimento constante de velocidade crescente.

A união entre a cibernética e o estilo punk dá seus frutos numa implosão quase onipresente do Mundo Zero. Em primeiro lugar, Csicsery-Ronay aponta que a própria cibernética configura um paradoxo, por ser ao mesmo tempo o triunfo do humano sobre o risco e o aumento da dominação do capitalismo sobre o humano; enquanto o punk é a reflexão sarcástica do social, abusando do barulho e de uma estética que desvaloriza o sanitário e o conformismo, sendo ao mesmo tempo uma proposta grandemente filosófica. “Cyber/punk – a dupla pós-moderna ideal: uma filosofia maquínica que pode criar o mundo em sua própria imagem e liberdade auto-mutilatória, que é essa imagem rosnando em retorno”(McAFFREY, 1991, p.186). Essa implosão que resulta da união entre termos paradoxais em si, mas mutuamente complementares, é causada por linhas de estudo e práticas que realizaram a mudança de foco do macro para o micro, numa escala inédita. Por exemplo, a microbiologia, a miniaturização do armazenamento de dados, a inteligência artificial, entre outros, que implicam a necessidade da definição de novos tipos de fronteiras perceptuais e cognitivas. (Ibid., p.188)

A FC agora encontra as barreiras a serem quebradas no corpo social e individual, a integridade do corpo é despudoradamente violada. Carregando a herança do gênero horror, a FC traz para o cyberpunk o resquício do medo, ilustrado na loucura e na alucinação (Ibid., p.189): qualquer coisa pode ser uma imagem holográfica, uma miragem, uma visão deturpada da realidade. Um dos contos mais famosos do movimento é “The Gernsback Continuum” de William Gibson, que trata exatamente dessa questão. Na história de abertura da antologia de Sterling, publicada pela primeira vez em 1981, o narrador em primeira pessoa se autodefine como um profissional mediano da arte de “fotografar o que não está lá” (STERLING, 1988, p.4), e recebe a tarefa de fotografar uma arquitetura futurista dos anos 30. Chegando ao local, percebe que a arquitetura mostra aquele futuro não realizado completamente, com veículos flutuantes, enormes rodovias e, inclusive, habitantes “brancos, loiros e [...] provavelmente [...] com olhos azuis”, promessa do futuro ariano (Ibid., p.9).

Com o título “The Airstream Futuropolis: The Tomorrow That Never Was”, associado facilmente ao Futurama da General Motors, o lugar mostra ao fotógrafo os anos 80 de “sonhos quebrados” (Ibid., p.5). É interessante Gibson mostrar esse “amanhã que nunca foi” na imagem de veículos voadores, um sonho anterior ao cyberpunk e que na época dos anos 80 foi desconstruído e saiu de moda no pensamento popular – fato representado também pela explosão do Challenger –, principalmente, porque foi um sonho explorado e alimentado pela produção de FC da época pulp, daí a referência a Hugo Gernsbeck no título do conto. O narrador reflete: “os foguetes nas capas das pulps de Gernsback haviam caído em Londres na

calada da noite, gritando. Após a guerra, todos tinham um carro – sem asas – e a prometida autoestrada para dirigir” (Ibid., p.5).

As alucinações do fotógrafo são resultado da ingestão de uma pílula e da penetração em uma “membrana fina” que separa dois universos diferentes: a realidade presente dos anos 80 e um universo espaço-tempo alternativo, um continuum, em que as fantasias tecnológicas dos anos 30 seguem presentes. Preocupado com essas visões alucinatórias, imanentes no contexto dessa arquitetura, o narrador busca conselho com um amigo especialista em visões de UFOs e outras visões polêmicas, consideradas por muitos alucinações. Ele consegue entender então que “o principal era não se preocupar. Através do continente, diariamente, pessoas mais normais do que eu jamais aspirei a ser viam pássaros gigantes, pés-grandes, refinarias de petróleo voadoras” (Ibid., p.8). Aconselhando a si mesmo, na tentativa de obter calma, ele mostra que a alucinação é parte integrante do cotidiano e que a loucura é a invasão do corpo na era das incertezas perceptivas e cognitivas.

É possível, porém, exorcizar esses “fantasmas semióticos”, como denomina seu amigo, com um tratamento de imersão na realidade presente e, por isso, o fotógrafo corre para a banca de jornal mais próxima e reúne tudo o que consegue sobre a crise do petróleo e a ameaça nuclear, afim de submergir em sua própria realidade “quase distópica”. O dono da banca, ao perceber a reunião de catástrofes iminentes nas mãos do cliente, exclama: “Em que diabo de mundo vivemos, hein? [...] mas poderia ser pior, huh?”, ao que o narrador responde: “É isso mesmo [...] ou ainda pior, poderia ser perfeito.” (Ibid., p.11) O universo alternativo de Gernsbeck é comparado com a realidade dos anos 80, com respeito à ambiguidade do desenvolvimento tecnológico: por um lado, o futuro perfeito conquistado com o domínio da tecnologia significaria o triunfo do regime totalitário e o apagamento das diferenças; por outro, o presente, embora imperfeito, é também um resultado do domínio da técnica, com catástrofes talvez não muito diferentes das visões do narrador, apenas outras.

É possível, portanto, enxergar no cyberpunk uma efetivação da desconstrução da ideia de sujeito, através de uma quebra um pouco mais profunda das oposições entre o humano e a máquina, o artificial e o natural, que faziam parte da FC até então, porém mantendo protegidos os lugares hegemônicos do homem e seu corpo. Dessa forma, Veronica Hollinger acredita que o cyberpunk faz borrar as fronteiras entre o orgânico e o inorgânico até um ponto além do reconhecimento, sendo também uma maneira de visualizar a integração sem volta entre o homem e a máquina. Apesar dessa quebra inicial de fronteiras, o desejo de transcendência o coloca de volta dentro de uma tradição romântica (McAFFREY, 1991, p.206) que acredita na separação platônica entre as ideias e o material. Ocorre, então, um

(des)equilíbrio entre a possibilidade dessa transcendência oferecida pela tecnologia e o perigo de uma absorção total do self nesse processo.

A tecnologia que pode realizar essa transcendência parece ser capaz tanto de efetivar a desejada separação entre corpo e mente, quanto oferecer existências alternativas ao humano, baseadas em modelos diversos não necessariamente corporais, visto que o corpo começa a perder sua credibilidade. Essa questão aparece, como observado por Hollinger, no conto “Pretty Boy Crossover” (1985) de Pat Cadigan. Na história do “menino bonito”, existe a possibilidade de se destilar o corpo até a pura informação, chegando à imortalidade através de uma existência puramente eletrônica. Pretty Boy, no entanto, não deseja realizar essa destilação. Para ele, seu amigo Bobby, já transformado em informação, está perdido; acreditou na explicação de que “os sentidos são aumentados depois que você faz a mudança”. Bobby está numa tela, olhando para Pretty Boy e exclama com satisfação: “Você não precisa mais morrer [...] É bonito aqui. Os sonhos podem ser tão reais quanto você quiser que sejam.” (DANN; DOZOIS, 2002, p.70) Ser um menino bonito é um status valioso pois todos querem vê-lo e possuí-lo, isso é tudo o que importa para Pretty Boy, porém a única maneira de garantir a eternidade dessa beleza é transformando-se num avatar/ciborgue através dessa técnica. A promessa da satisfação de todos os desejos da sociedade de classe média norte- americana é possível, “nunca envelhecer, nunca se cansar, nunca é a última chamada, nada acontece a não ser que você queira que aconteça.” (Ibid., p.71) A ausência do tempo e a ausência da dor.

Contudo, Pretty Boy percebe a verdadeira vantagem em permanecer carne. Pensando que Bobby não faria falta a ninguém caso fosse desligado, descobre também que seu valor está no fato de que “eles” não podem possuí-lo realmente, desde que continue sendo um corpo físico: “Desde que ele tivesse carne para balançar e exibir e com que sentir, faria uma grande diferença para eles. Mesmo quando eles não o quisessem mais, ele ainda seria aquele que eles não conseguiram pegar.” (Ibid., p.79) Refere-se assim àqueles que insistem em convencê-lo a realizar a transformação, simbolizando a captura tecnológica de um corpo que insiste em se fazer presente através da carne e recusa ter retirado seu direito ao tempo, à dor, à sensação e àquilo que chama de “realidade”.